Natalia da Luz, Por dentro da África
Tripoli, Líbia – Os conflitos armados abrem feridas na estrada de uma nação. Nesse caminho, as crianças são as mais atingidas, as mais vulneráveis. Durante a revolução na Líbia, em 2011, Carel de Rooy, responsável pela UNICEF no país, desembarcou no norte da África para administrar um trabalho humanitário que prioriza não apenas a integridade física e psicológica, mas a educação da infância, que cresce junto da democracia.
– O UNICEF começou nas fronteiras com o Egito e Tunísia e depois entramos em Bengazi (a porta para a revolução). Esse primeiro contato foi basicamente para o fornecimento de água potável e vacinação. Em seguida, lidamos com o apoio psicológico e atendimento às crianças traumatizadas – conta Carel em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, lembrando que o trabalho também inclui um programa de conscientização em relação às minas terrestres e material bélico, que já feriram e mataram muitas crianças líbias.
Sobre as minas, o especialista holandês radicado no Brasil, que conhece mais de oitenta países e já trabalhou como oficial residente do UNICEF em sete explica que há mais de seis meses não se registrou nenhum acidente envolvendo crianças. O maior desafio pela frente, agora portanto, é melhorar a qualidade da educação dos líbios. E neste processo, o trabalho dele sugere ações que levam em conta a cultura e o cenário político do pais.
UNICEF na Líbia
Em 2005, o UNICEF saiu do país porque a política da instituição era estabelecer programas apenas em países de economia média e, segundo o Banco Mundial, a Líbia era classificada como um país que estava acima desta média. Ao lado de Seychelles, a Líbia possui o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do continente africano. Carel conta que a instituição retornou em 2011 com o programa humanitário por conta da revolução que, em 17 de fevereiro de 2011, depôs o ex-ditador Muammar AL Gaddafi (que ficou 42 anos no poder). Desde então, a presença da instituição se tornou necessária.
– A ideia agora é buscar intervenções concretas que possam auxiliar as crianças que estão na escola. Aqui, elas aprendem pouco porque a qualidade do ensino ainda é muito baixa. Apenas 9% das crianças, por exemplo, vão à pré-escola. No caso do Brasil, existe uma lei para que elas sejam matriculadas aos 4 anos – diz o hidrogeólogo, fazendo elogios ao senador brasileiro Cristovam Buarque, entusiasta da ideia. A lei 11.700/2008 (de Cristovam) garante que toda criança terá vaga garantida na escola pública mais próxima da residência, a partir dos 4 anos de idade garantida na escola pública mais próxima da residência, a partir dos 4 anos de idade.
– O jardim de infância é fundamental para a criança se desenvolver. Estamos estabelecendo normas e iniciando a capacitação dos professores, a partir de um estudo, já publicado, que envolveu 4.800 escolas, com 65 variáveis – explica o especialista em saneamento básico, completando que o objetivo, agora, é terminar o plano de investimentos para melhorar as facilidades existentes na educação básica, como bibliotecas e laboratório de idiomas.
Grande parte da população que fora educada durante os últimas décadas não fala outra língua além do árabe. Esse comportamento é muito comum porque, nas escolas, era proibido (por ordem do ex-ditador Gaddafi) o ensino do inglês. Carel ressalta que, apenas nos últimos anos de governo, as pessoas passaram a aprender inglês em escolas especiais ou fora do país.
As consequências da guerra para as crianças
Especialista em hidrología e hidro-geologia tendo feito seus estudos de pós-graduação na Espanha e na Holanda, Carel já esteve em outras regiões países que ele considera mais perigosas para as crianças como Iraque, Cáucaso, e o Sudão.
– Apesar de ter sido uma ditadura atroz, não se compara com a ditadura de regiões como a América Latina. Na Líbia, há muita gente que foi massacrada e colocada na prisão durante décadas, mas, em números absolutos, é um cenário menos dramático. No mundo árabe, existe aquela história da família estendida, quando o irmão ou outro membro assume a proteção da família.
Nas zonas de conflito, as crianças são as vítimas mais vulneráveis. Estima-se que hoje existam cerca de 250 mil crianças nessa situação em todo o mundo. Segundo relatório da ONU publicado em outubro, entre janeiro de 2012 e agosto de 2013, apenas na República Democrática do Congo, cerca de mil crianças foram recrutadas por grupos armados do país.
– Em regiões onde essa situação é mais evidente, a estratégia nossa é não brigar em público com o governo, porque, com uma relação mais tensa, o dialogo chegaria ao fim e não seria possível continuar o nosso trabalho. Também por isso, a UNICEF tem muita cautela em fazer anúncios sobre os temas de escravidão infantil e recrutamento de crianças para a guerra, não nos ausentamos da mídia mas evitamos o sensacionalismo e buscamos soluções estruturais como políticas públicas e legislação para abordar estes assuntos.
Para ele, nesse momento, alem da Síria e os países limítrofes a este, a região mais tensa é a fronteira com Uganda, Ruanda, República Democrática do Congo e República Centro-Africana. Por lá, há uma forte presença de milícias, onde é possível encontrar violações extremas.
Em 30 anos de trabalho dedicados às políticas para a infância, Carel lidou com situações de abusos, violações e escravidão. Ele afirma que tudo isso é seríssimo mas que felizmente o número de crianças atingidas, comparado ao contingente atingido por outras necessidades, é bem menor, a exemplo da vacinação para conter um surto.
– Tomamos cuidado para equilibrar as nossas ações para não deixar de lado problemas que possam atingir um número muito maior de crianças.
A soberania nacional e a lembrança do caso do Iraque
– Fizemos uma análise para ver até que ponto os direitos das crianças estavam inseridos no currículo da Líbia e agora reorganizaremos os quadros profissionais, mas sempre respeitando a soberania nacional porque não podemos estabelecer regras sem interação. Quando servi no Iraque, eu estabeleci um comitê iraquiano para que eles próprios delimitassem o que era preciso ficar e o que era necessário sair do currículo pós-guerra.
Para isso, a equipe dele possui especialistas do mundo árabe que conhecem o contexto religioso, cultural e social do país, lembrando que o trabalho após uma revolução é de reconstrução da identidade, e a experiência das Nações Unidas no Iraque serviram como um exemplo para as relações futuras.
– Eu vi o que aconteceu no Iraque, quando a ONU foi quase expulsa e a cooperação internacional foi comprometida. Foram mais de 100 mil mortes de civis e uma política que, definitivamente, não deu certo. Na Líbia, lutamos contra o risco de não haver tempo para consolidar a nova ordem porque eu acredito que é preciso tempo para realizar coisas tangíveis que mudem, de fato, a vida das crianças.
Em março de 2003, os Estados Unidos e aliados invadiram o Iraque com a justificativa de estabelecer a democracia (que ia de encontro à ditadura de Saddam Hussein) e de combater as “armas de destruição em massa”. O ditador foi deposto, julgado e condenado à morte, processo que teve o apoio de muitos iraquianos, como lembra Carel. Por outro lado, eles viram suas estradas e campos de petróleo tomados pelos soldados e empresas Ocidentais que privatizaram a matéria-prima que movia a economia iraquiana.
– Ninguém gosta de ter o seu país invadido, principalmente, sabendo da agenda norte-americana, que não necessariamente era benéfica a maioria dos Iraquianos. Na Líbia, o ditador foi morto, mas rapidamente o novo governo conseguiu estabelecer eleições com apoio da comunidade internacional. O contexto e bem diferente, houve apoio militar externo mas sem a permanência de forcas armadas exteriores no país – conta Carel.
Futuro para as crianças e juventude
Carel já esteve em regiões de pobreza extrema como na Nigeria e presenciou disparidades econômicas arrepiantes como no Gabão . Experimentou a rica cultura musical da África Ocidental e a beleza das savanas do lado Oriental. Passou por comunidades que nunca haviam feito contato com um homem branco e viu crianças “rindo da cor da minha pele branca”. Na Líbia, ele ajuda a traçar um futuro para a infância.
– Existe muito entusiasmo, esperança, energia. Quando comparamos Líbia, Tunísia e Egito, temos uma proporção muito grande de jovens com expectativas surrealistas, achando que o país vai melhorar do dia para a noite – acredita, ressaltando que o golpe de Estado no Egito e o tumulto no Mali dificultaram o acesso a algumas partes do país. Mesmo assim, os programas avançam.
– A Líbia tem um potencial econômico muito maior do que os vizinhos que viveram a Primavera Árabe. O maior acervo no entanto não e o petróleo nem o gás mas sim a sua população (a sua infância), dai a relevância em investir na educação.
Por dentro da África