Ulrich Schiefer, Por dentro da África
‘La filosofía que elude el problema del mal es cuento de hadas para niños bobos’, Nicolás Gómez Dávila
Grandes partes do continente africano sofreram com a devastação de vários séculos de caça aos escravos, impulsionada pelos poderes que dominavam o comércio transatlântico e executada pelos seus aliados africanos. Esta onda destrutiva foi seguida, em menor escala, pelos massacres durante a conquista colonial, pelas guerras anticoloniais e pelas guerras civis daí resultantes. Todavia, a destruição sistémica das sociedades agrárias africanas, não obstante alguns percursores, ganhou um novo impetus e novas formas desde a segunda metade do séc. XX, com a onda de modernização externamente induzida (Cf. Sigrist 2001, Schiefer 2002).
Como se mede o progresso na destruição? A destruição é facultada pelos complexos desenvolvimentista e humanitários – ambos super-visados, cada vez menos disfarçada, pelo complexo militar – e implementada, muitas vezes sem consciência, por estranhas alianças entre os operadores do desenvolvimento das sociedades civis internacionais e os seus rebentos africanos.
A demolição é levada ao seu fim último por facções militantes das “elites” africanas, ávidas pelo controle dos fluxos internacionais, a qualquer preço, com qualquer método, e com poucos escrúpulos. Estas tentativas de conquista do poder, sempre absoluto, que asseguram o controle dos fluxos e as inerentes apropriações, completam o ciclo de destruição das únicas partes das sociedades africanas verdadeiramente produtivas que ainda podem assegurar a vivência e sobrevivência dos seus membros (Cf. Milando 2007). Deste modo, tentam completar a parte destrutiva do projeto continental, externamente induzido e financiado, da modernização, que foi, embora sob signos políticos diferentes, constitutivo, ao nível discursivo, como forma de acesso ao poder das burocracias urbanas pós-coloniais.
O processo histórico de industrialização do “mundo ocidental”, imitado ou simulado, com mais ou menos sucesso, em diferentes partes do mundo, destruiu as sociedades agrárias, com a consequente “libertação” da sua mão-de-obra. Esta foi submetida (a custo de muito sangue e repressão) e integrada na produção industrial. Assim, a destruição das sociedades agrárias tradicionais tornou-se numa suposta necessidade do progresso. Desta forma, a destruição funciona como impulso de modernização, com semi-autonomia, mesmo em lugares e sociedades onde a industrialização não acontece, nem parece plausível num futuro próximo. A destruição é aceita como um mal necessário, não importa o preço. A industrialização e a criação de riqueza e bem-estar são tidos como efeitos mágicos, desde que as receitas dos magos sejam bem aplicadas.
Para determinados grupos das “elites africanas”, e não só, a ficção de modernização permitiu a apropriação de riquezas, desde que se executassem ou se deixassem executar por outros, pelo menos, as suas componentes destrutivas. Mesmo estas, não são levadas a cabo com muita eficácia, o que se fica a dever a alguma relutância das “elites modernizantes” em destruir as suas sociedades de origem, por um lado, e à incompetência generalizada, por outro. Isto transforma a destruição das sociedades agrárias mais num fenómeno de efeitos secundários cumulativos, que resultam num estrangulamento lento com erupções violentas, não deixando, no entanto, de ser efeitos do projecto modernizador. As guerras – inclusive os massacres modernos, cuja eficácia não depende da modernidade do arsenal (Cf. Hatzfeld 2004) – não são fases lamentáveis extraordinárias, fora do processo histórico, nem meros obstáculos ao progresso, quase fora da história. São parte constitutiva e integrante do mesmo processo e não deixam de ter os seus reflexos na esquizofrenia do discurso sobre África.
Na medida em que se evaporam as últimas ideias minimamente realistas sobre o “desenvolvimento africano”, as produções ideológicas desta vasta área de (des-)conhecimento ficam cada vez mais contorcionadas (Cf. Milando 2005). Para falar de desenvolvimento africano, hoje, é preciso ter (muita) fé, estar num estado (profundo) de negação, ser dotado de uma estrutura mental (bastante) simplificada, estar ao (considerável) soldo das agências que ainda vendem esta marca de produto, ou pertencer às “elites nacionais” que se encontram sentadas em cima de jazigos de recursos cobiçados pelos ricos. Combinações não são infrequentes.
As agências com projecção internacional já mudaram o seu discurso, isto é: o “combate à pobreza” mal disfarça a nova estratégia de contenção para reduzir os fluxos intercontinentais de migrantes, nesta fase mal desejados; “a guerra global contra o terrorismo” justifica a penetração pelas agências de segurança internacionais; “a segurança energética” permite o combate aos rivais pelos recursos naturais.
O conjunto destas agências, embora frequentemente em conflito, criou nas últimas décadas, aparelhos com um peso considerável e com interesses próprios que condicionam muitas decisões (geo-) estratégicas e não só.
A destruição do potencial produtivo das sociedades agrárias movimenta cada vez mais populações. Ondas sucessivas de camponeses abandonam as suas terras e procuram uma existência, cada vez mais precária, na periferia das cidades: migrações internacionais enchem as cidades dos países vizinhos; guerras civis deslocam populações inteiras; deportações forçadas completam ou substituem genocídios. O denominador comum destes movimentos reside na cessação da produção agrícola pelos camponeses, que não é compensada por um aumento de produtividade dos restantes, que ficam no campo, tal como aconteceu nos países que modernizaram e industrializaram a sua agricultura com sucesso.
Quando as deslocações são forçadas, e assumem contornos internacionais, podem, em certas conjunturas políticas, despoletar intervenções muito específicas que figuram sob a designação de “campos de refugiados”.
No fenômeno “campo de refugiados” as sociedades modernas, industrializadas, ocidentais, projetam alguns dos seus medos básicos. Estes medos, resultantes dos seus traumas mais fundamentais, sobrepõem-se e, muitas vezes, confundem-se com medos ainda mais antigos. O medo pós-neolítico da fome que acompanha a ascensão da agricultura, o medo que resulta da separação mais ou menos violenta das pessoas dos seus meios de produção agrícola, a destruição do contexto imediato social da família extensa e da comunidade aldeã, a perda do contato imediato com a natureza, a hiper-concentração num espaço confinado.
Estes processos da ascensão da agricultura nos últimos dez milénios, e, especialmente, da industrialização dos últimos cinco séculos, muitas vezes interrompidos por ondas de destruições maciças, tanto do parque industrial e habitacional, como das populações, operam uma deslocação sutil do ser moderno.
A eterna dependência da vida humana de forças alheias, a “Condição Humana” (Cf. Arendt 2001), já sofreu uma trans-locação: A Natureza, a Fortuna, Deus, o Destino e a Sorte foram substituídos por entidade patronal, sistemas financeiros, mercados mundiais, e a globalização.
Para a vivência e sobrevivência moderna, já é considerada “normal” a submissão do ser humano, até física, às exigências da disciplina do processo industrial, inclusive dos seus derivados noutras áreas das sociedades, bem como a separação (até visual) dos processos de produção para os que não estão directamente neles envolvidos. Note-se a falta de preocupação de muitos cientistas sociais com a produção real.
Os efeitos da modernização foram, em algumas sociedades, mais bem-sucedidos, compensados por um aumento considerável de consumo, e, não menos importante, por uma promessa pelo menos da existência física – protecção contra violência, contra fome, doença e outros infortúnios – (a famosa “segurança humana”) supostamente garantida por instituições supra-societais.
A entrega às instituições impessoais dos destinos pessoais não acaba completamente com a religiosidade (Cf. Eliade 1957), mesmo que o pecado tenda a desaparecer do discurso público pós-moderno, nem com a solidariedade imediata. Todavia, contribui para a sua deslocação e transformação. Uma dimensão da solidariedade humana é transfigurada, desta forma, em mais um caco do caleidoscópio da expansão das sociedades industrializadas.
O complexo humanitário constitui a configuração organizativa, material e ideológica deste impulso. A sua forma e os seus formatos de intervenção são derivados de, e copiam ou imitam, outras intervenções do mundo moderno sobre partes menos modernas ou menos fortes.
Historicamente, não obstante alguns percursores, a Europa pós Segunda Guerra foi o terreno onde as organizações humanitárias ganharam volume, peso e experiência e onde foi desenvolvido o modelo específico do formato de intervenção “campo de refugiados”. Um espaço bastante destruído, com a capacidade organizativa das sociedades diminuída, sob controlo (e administração) militar, com milhões de deslocados e refugiados dependentes de recursos externos provenientes de grandes distâncias. A disponibilidade destes recursos e da capacidade de transporte resultou do aumento da produtividade estimulada pela guerra nas zonas mais industrializadas, cujo território não foi directamente envolvido e, portanto, não destruído pelo conflito.
Os impulsos políticos, geo-estratégicos e humanitários dos poderes vitoriosos confluíram no sentido de assegurar a sobrevivência física das populações da Europa ocidental, bem como o seu controle político e o controle físico dos seus movimentos. A sua realização encontrou uma infra-estrutura em parte já construída por estados totalitários e modelos organizativos de “campo” praticados por diferentes organizações militares. As ciências (militares e outras) já começavam a produzir conhecimento sobre o tratamento de seres vivos concentrados em espaços confinados, nomeadamente alimentação, higiene, controle, doenças e logística. A desconstrução dos alimentos nas suas componentes químicas e a preocupação com as “calorias” teve a sua origem nesta época.
A reconstrução relativamente rápida, e o sucesso da (re-) integração dos refugiados e deslocados nas economias e sociedades, permitiram um abandono relativamente rápido dos campos. A sua função foi verdadeiramente transitória, o que contribuiu bastante para o mito deste formato de intervenção, que, ainda hoje, não obstante inúmeros exemplos contrários, é concebido como medida curta, concisa e limitada para suprir uma necessidade temporal, uma característica que, aliás, é partilhada com o “projeto” de desenvolvimento e de intervenção social.
A intervenção “campo de refugiados” encontra, em Africa, e não só, realidades bem diferentes das sociedades originárias.
Nas sociedades agrárias africanas a extra-determinação dos destinos individuais e coletivos aparece na configuração “natural”. O bem-estar, ou o mal-estar, depende diretamente das forças da natureza, manifestas como forças espirituais que podem, em certa medida, ser influenciadas e manipuladas. O intra- e o extra-psíquico são (percebidos e compreendidos de forma) bastante diferentes das sociedades industrializadas ocidentais; o privado e o público divergem do significado que lhe é atribuído noutras sociedades; a diferença do tempo natural e do tempo social não se separou do tempo do sonho (Cf. Agamben 1998).
O controle, o acesso e a utilização dos recursos (naturais e outros) dependem das relações sociais. O plano da sociedade, i.e., a alocação dos recursos, faz parte da estrutura social.
As sociedades ainda podem funcionar sem instituições supra societais, pelo menos desde e enquanto essas últimas as tolerem (Cf. Sigrist 1994). Nestas sociedades, a concentração do monopólio de violência no Estado é, se existe, uma ideia nova e estranha, pois a violência intra, inter ou trans-societal tem, como tudo, origens espirituais, e está historicamente, altamente regularizada e ritualizada – mesmo que hoje em dia as motivações e a origem das armas tenham explicações mais básicas. Para estas populações, cuja leitura do social é feita através de padrões étnicos de pertença, a distinção entre poder armado do Estado ou contrapoder(es) armado(s) é muitas vezes ténue.
Muitas das populações que se encontram em campos de refugiados passaram por uma experiência traumática. Dada a percepção do (individual) psíquico e do espiritual, constitutiva destas sociedades, os traumatismos situam-se mais fora do que dentro do indivíduo, tal como o Ocidente o concebe. Numa sociedade que funciona mais com o sentido de vergonha do que com o sentido de culpa, os traumas que se baseiam em experiências sofridas por indivíduos não são, contudo, traumas individuais.
São localizados nas relações entre as pessoas e a natureza, e entre as pessoas, sendo ambas impregnadas por forças invisíveis, mas nem por isso menos reais. Rapidamente afetam o comportamento do indivíduo em relação ao seu grupo de referência, o que implica um enfraquecimento das relações, por exemplo, intra-e inter-familiares; o que pode, se um número suficiente for atingido, debilitar partes consideráveis de sociedades e causar manchas no tecido da quase ubiquidade da alegria, cuja ausência, normalmente, é um indicador forte de traumas já sofridos ou iminentes.
A deslocação em si, se não for causada ou acompanhada por atos violentos que causam medos profundos e desestruturantes (Cf. Scheper-Hughes, Bourgois 2004), não corresponde necessariamente a um trauma, dada a elevada mobilidade da populações e das características das sociedades de fracos recursos. O estado plasmático pelo qual as sociedades muitas vezes passam, antes e durante as fugas maciças, muitas vezes choca com os (des-) equilíbrios dentro das sociedades, entre os seus membros e entre o mundo real e espiritual.
O estado plasmático é criado quando uma quantidade excessiva de energia é projetada sobre uma sociedade com que esta não consegue lidar, fraturando-a e transformando-a numa massa aparentemente amorfa, que suspende as estruturas básicas e rompe com as ligações normais entre os atores e com os padrões e as normas de comportamento. As pessoas perdem a orientação, perdem a capacidade refletiva e são controladas por medos e outras emoções fortes e básicas.
As semelhanças com um estado de formigas em migração talvez ultrapassem a mera isomorfia (Cf. Hölldobler, Wilson (2009). O que realmente distingue as sociedades humanas, “o cultural” desaparece temporariamente. A regressão e redução a alguns comportamentos absolutamente básicos de cada indivíduo ou grupo permitem deslocações e migrações relativamente complexas, como o estudo de formigas claramente demonstra. A diferenciação em “trabalhadores” e “guerreiros”, a salvação da cria e de alguns bens básicos, a fuga “instintiva”, desordenada ordenada, a procura de um novo refúgio, funcionam como capacidade básica de sociedades constituídas – humanas e outras.
A redução ao biótico, resultado e operador, da energia que produz o estado plasmático, prepara as populações para os últimos produtos da bio-política internacional ainda no seu estado da mecânica.
A perda dos direitos ao enterro (burial rights) pode desestruturar mais do que a perda de uma casa. Desde tempos imemoráveis, a fuga, mais ou menos desordenada, e o reagrupamento posterior constituem capacidades das sociedades para lidar com guerras e outros actos violentos e destruidores.
O que constitui novidade são os níveis de armamento e a capacidade de organização modernos, especialmente os meios de comunicação, a abrangência territorial de actos violentos, a projecção de interesses e forças internacionais sobre territórios, o controle real ou assumido por entidades peri-modernas (“Estados”) e a densidade demográfica em condições climáticas cada vez menos favoráveis, o que dificulta o encontro de terras para o reagrupamento e a retoma da agricultura.
O exercício do poder, como praticado durante a ocupação colonial efetiva, não extinguiu o exercício do poder africano; nem tão pouco as suas práticas, as suas tradições, os seus padrões e mecanismos. O pós-colonialismo não consistiu na apropriação de uma administração pública colonial por “elites” africanas: ressurgiram os mecanismos de conquista e do exercício de poder que já tinham existido no passado. Conquista por força militar, manutenção da dominação através do medo e da repressão, alianças inter-étnicas, alianças com forças exteriores, e uma forte componente espiritual entrelaçada com legitimações genealógicas reais ou fictícias que procuram uma legitimidade pelas autoridades étnicas, e também, inter-étnicas e trans-societais. A dominação política é política, a submissão ritualizada e simbólica.
A interação econômica entre as estruturas de dominação e as sociedades limitavam-se à tributação direta dos súbditos, ao controle e tributação do comércio a longa distância e à apropriação dos recursos naturais. A economia das sociedades agrárias propriamente dita não era objeto de preocupação, nem de atuação das instâncias políticas. Ao contrário dos estados asiáticos, que muito cedo assumiram funções importantes na construção e manutenção das infra-estruturas – “estados hidráulicos” – (Cf. Wittfogel 1931) -, a assunção de “um projeto nacional de desenvolvimento” foi resultado das projeções do mundo exterior sobre as “elites nacionais”.
Estas, ou mais especificamente, pequenos grupos principais, identificaram-se com as ideias de modernização, ou pelo menos assim fingiram. Em troca, essas foram bem compensadas pelos esforços da modernização, reais ou fictícios, e conseguiram tributar os agentes internacionais do projeto modernizante continental que, também, lhes modernizou os aparelhos repressivos, entendidos como pilares do seu poder. O modelo não teve, no entanto, muito sucesso. Os herdeiros dos aparelhos da administração colonial, que passaram décadas a lamentar a “pesada herança colonial”, em muitos casos, não foram capazes de os gerir. Aumentam, cada vez mais, os exemplos onde as “elites nacionais” fragmentaram debaixo das projeções e pressões internacionais para engendrar, pelo menos, uma parecença a um “Estado nacional”, produzir “desenvolvimento” ou, já que isso não funciona, pelo menos, implementar estratégias de contenção das suas populações no seu interior.
O formato/pacote de intervenção “campo de refugiados” é aplicado em conjunturas em que as sociedades já deixaram de ser alvo dos esforços e da intervenção para o desenvolvimento, através de “políticas, programas e projectos de desenvolvimento”.
Após a declaração de uma “crise humanitária”, “situação de emergência”, “catástrofe natural ou humanitária”, ou outra semântica parecida, os atores do desenvolvimento fogem, as teorias de desenvolvimento são suspensas e os conhecimentos sobre as sociedades afetadas são anulados.
Na fase de crise aguda, as atividades reais dos atores importantes concentram-se na produção e resolução dos problemas entre eles, que nascem dos conflitos de interesses dos intervenientes internacionais, dos seus modos de intervenção, das suas agendas específicas, e, eventualmente, de algumas fações locais. Estes problemas multiplicam-se, através da complexidade da intervenção, em terrenos para onde são projetadas múltiplas forças externas. À margem da mêlée resultante, também se montam os campos de refugiados e se alimenta a população refugiada.
Se, e quando, a crise (humanitária) acabar, os operadores do desenvolvimento, cada vez com mais relutância, voltarão. Ao mesmo tempo, as teorias de desenvolvimento, também, costumam tentar reclamar a sua validade, normalmente depois de uma fase de “reconstrução” ou “reabilitação” (Schiefer 2002).
Dos formatos de intervenção externa no continente africano – em e para mais de um sentido, o “campo de refugiados” encontra-se entre os mais destrutivos, o que confirma, mais uma vez, o fato de que a modernidade destrói mais quando constrói do que quando destrói.
A defesa ritualista – mas nem por isso menos curta, a que depressa se chega, depois de passar por várias camadas de retórica habitual, deste modelo de intervenção – produz rapidamente uma auto-imunização performativa típica: “não podemos deixar morrer as pessoas”, o que esconde mais do que esclarece.
A suposta garantia de sobrevivência física dos seus habitantes, (contra a fome, a doença, e cada vez mais, contra a violência), paga-se, com um aumento de potencial de violência que aumenta, por sua vez, a capacidade destruidora e auto-destruidora das sociedades. E com uma queda da produção cujas consequências são igualmente nefastas. Cada família que deixa de produzir constitui um problema; cada cadete que escapa do controle social constitui um problema.
As características específicas dos campos de refugiados, as condições que esta intervenção cria para as populações acampadas, transformam-nos em incubadores de violência. Os campos produzem um ambiente onde as facções armadas que abundam no contexto africano, (muitas vezes com apoios de governos africanos e não só) facilmente podem recrutar pessoal, reforçando a espiral de violência e de destruição, e que eventualmente, leva a mais deslocações forçadas e requer mais campos de refugiados. O crescimento da violência por sua vez aumenta o potencial destrutivo, e dificulta o retorno à paz, como alias já observou Tacitus: “Inter turbas et discordias pessimo cuique plurima vis, pax et quies bonis artibus indigent.”
Os campos de refugiados, ao que parece, produziram um novo “estilo de vida” que atinge cada vez mais pessoas no continente africano (Cf. Mbembe 2001): o refugiado, categorizado com um estatuto específico, com algumas garantias internacionais, mesmo que precárias, algumas vezes até com oportunidades que a população fora do campo não desfruta, com uma hipótese, muito remota, de conseguir fugir para um país industrializado, ou com uma possibilidade de trocar de lado e conseguir um emprego numa agência qualquer que funciona a volta dos refugiados. Ele, ou ela, podem conseguir o estatuto de vítima, sendo vítima autêntica, oportunista ou perpetrador. Combinações não são infrequentes.
Existe, contudo, uma realidade dupla nos campos, de onde somente se revela uma parte à investigação e aos atores de intervenção: o campo durante o dia. O que é um campo de refugiados durante a noite, quando o pessoal das agências sai, só os refugiados sabem.
A razão pela qual muitos refugiados preferem ficar nos campos enquanto estes perduram, ou preferem procurar a sua sorte noutros destinos, em vez de voltar para as suas terras de origem, contrariando desta forma os pressupostos das agências internacionais, é uma questão para qual ainda não existem muitas respostas que, aliás, não se encontram nos próprios campos.
La pelea contra el mal es hoy de retaguardia. NGD
Bibliografia
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Sigrist, Christian, 1994, Regulierte Anarchie, Frankfurt, EVA
Sigrist, Christian, 2001 “La destruction de sociétés agraires en Afrique”, Cadernos de Estudos Africanos, N°1, p. 69-83.
Wittfogel, Karl August, 1931, Wirtschaft und Gesellschaft Chinas: Versuch der wissenschaftlichen Analyse einer grossen asiatischen Agrargesellschaft, Leipzig: Hirschfeld
Artigo desenvolvido pela parceria entre Por dentro da África e o Centro de Estudos Africanos do Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE-IUL