Por Fabiana Gelard, Por dentro da África
Uma bola pode ser feita de meia, papel, saco plástico… Para o gol, apenas dois chinelos servem de trave. E eles riem, correm e brilham sob o sol. Um time com camisa e outro sem; ou todos sem camisa. O importante é que cada um sabe para quem passar a bola, cada um sabe quem são seus parceiros. E a bola rola…
Do outro lado da rua, corpos giram no ar. Estrelinhas e saltos mortais fazem os olhares assistirem ao mundo de outro ângulo, por um breve momento. Por uma fração de segundo, os pés parecem tocar o céu e gargalhadas se misturam aos sons da favela.
Quem disse que brincadeira de criança na favela é só “polícia e ladrão”? Temos Bolts, Rafaelas, Izaquias, Martas… Temos atletas, médicos, engenheiras, temos tantas possibilidades… Mas quem nos vê? Quem enxerga além dos muros da favela?
Um sai, vira fenômeno! Vira o rei! Vira a rainha do tatame e, por um momento, aqueles corpos têm valor! “Olha, como ele é bom! Como ela é boa!” Esquecem todos os demais! Para tantos outros e outras os dias seguirão até a bola perder o brilho e o céu parecer distante. Viram sonhos… Apenas sonhos de criança guardados em algum lugar da memória cansada da luta diária.
Para muitos, somos somente corpos… Uma massa de corpos que, hoje, ganha o brilho das medalhas. Todos os outros dias somos somente corpos… Corpos negros caídos no chão, refletidos nos metais das armas dos policiais; corpos negros desejados pelo desejo vil de sexo fácil, enfeitados com purpurinhas e paêtes de um carnaval qualquer…
Corpos negros que varrem sua casa, fazem sua comida, tomam conta dos seus filhos… Só corpos. Uma massa sem rosto, sem sonho, sem vontade. Você não vê?
Outras bolas rolarão, outras pernas saltarão! Novas crianças, novos sonhos, novas possibilidades surgirão! Ainda que por um breve momento, ainda que numa brincadeira de criança. E então serão mais do que corpos, mais do que estatística, mas do que massa, mais do que favela… Eles serão!
Fabiana Gelard é aluna da UNILAB, de São Francisco do Conde