Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Elas travam uma luta diária em suas comunidades, na agricultura, na política, nos negócios, na literatura. Elas são o coração de um continente com mais de 1 bilhão de habitantes que cresce, floresce, superando desafios encontrados no caminho. Nesse cenário de fragilidades e avanços, as mulheres têm uma importância inspiradora capaz de mover com progresso a África, que cresce 5% ao ano. Para propagar esse conhecimento, um documentário produzido por brasileiros compartilha histórias de representantes africanas que são verdadeiras heroínas da humanidade.
– Elas atuam cada vez mais como uma força produtiva e, principalmente, como liderança política. Elas sempre foram a base das tradições familiares e tribais africanas. Depois de algum tempo de repressão, elas tomaram o posto de líderes, saíram às ruas para lutar não só pelos próprios objetivos, mas pelos ideais de todo um continente. As mulheres africanas são perseverantes e idealistas – conta, em entrevista ao Por dentro da África, Mônica Monteiro sobre “Mulheres Africanas: a rede invisível”, documentário que estreou ontem nos cinemas do Brasil.
Apaixonada pela África, a proprietária da Cinevideo produz filmes, documentários e séries no continente (a empresa é responsável pela segunda edição da “Nova África”, exibida na TV Brasil). Antes de “Mulheres Africanas” tomar forma e ser dirigido pelo documentarista Carlos Nascimbeni, ela pensava em mostrar a atuação da mulher africana a partir de um ponto de vista amplo, diferente do exposto na grande mídia, onde os avanços africanos são ignorados em detrimento das tragédias.
– Viver aquele continente é uma experiência única, e totalmente diferente do que nós imaginamos, e eu queria dividir com as pessoas essa África que surge escondida do mundo, queria mostrar a força daquele povo, o desenvolvimento econômico do continente e, principalmente, a perseverança das mulheres africanas que estão transformando aquele território – conta
Cinco representantes e pilares do continente
O filme mostra Graça Machel, política e ativista, esposa de Nelson Mandela; Leymah Gbowee, vencedora do Prêmio Nobel da Paz; Mama Sara Masari, empresária de grande projeção na Tanzânia, Luisa Diogo, ex-Primeira Ministra de Moçambique, e Nadine Gordiner, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura. Elas são as vozes dessa obra que ratifica a influência, o poder e a importância da mulher em um continente tão diversificado e ainda pouco explorado por nós brasileiros. O privilégio de conhecer essas histórias ajuda a desvincular os estereótipos.
– Como por exemplo, a Leymah Gbowee, vencedora do Prêmio Nobel da Paz, como imaginar que uma mulher conseguiu a paz na Libéria? Só através da projeção de um Prêmio Nobel que é capaz de fazer com que a história ultrapasse os limites do continente – ressalta Mônica, mencionando que o seu maior desejo com o projeto é de que essas histórias inspirem outras mulheres ao redor do mundo.
A bravura, o comprometimento com a comunidade e o meio em que vivem são essências da maioria dessas mulheres que, do norte do Egito ao sul da África do Sul, erguem-se diante das desigualdades e injustiças. Em meio às milhares de línguas, às particularidades da religião e cultura onde vivem, elas fortalecem um coro contra os preconceitos, hasteando bandeiras não apenas em causa própria, mas em causa da África.
Carlos Nascimbeni, o diretor privilegiado por ter a oportunidade de interagir com mentes tão poderosas, conta que elas foram escolhidas por sua atuação nos países e pelo reconhecimento internacional. A rede invisível no título do filme é uma referência a uma grande teia formada por milhões de africanas que têm como missão prover a África. No documentário, ele destaca a atuação desta mulher comum que articula o tecido social africano e forma líderes locais sem as quais a sociedade não existiria.
– Luisa Diogo, por exemplo, foi escolhida pela atuação na reconstrução de Moçambique; Graça Machel, por sua história na luta pela libertação, educação e envolvimento na questão do casamento de jovens meninas; Sara Masasi, da Tanzânia, por atuar no comércio e da indústria, e ter sua voz em um país muçulmano; Nadine Gordimer, prêmio Nobel de Literatura, por ser uma grande escritora que não recuou na luta contra o apartheid, e Leymah Gbowee, Prêmio Nobel da Paz, por sua luta conta o tirano Charles Taylor e liderança das mulheres da Libéria para conseguir a paz – detalha o diretor, que começou o trabalho em 2011 e levou 14 meses para concluir a obra.
Carlos fala com um carinho nítido sobre o seu aprendizado durante as entrevistas e sobre um dos momentos mais marcantes: no Mercado de Kumasi, em Gana. Na ocasião, a equipe foi autorizada pela rainha da região; caso contrário, não teria como trafegar pelo imenso mercado.
– Em todos os locais, nosso produtor John Agyeman informava a autorização da rainha. Em determinado momento, eu me entreti com a fabricação de panelas e me perdi da equipe. Estava com uma das câmeras, e passou por mim um homem carregando um grande utensílio. A luz, a imagem, o ambiente me encantaram e saí atrás dele filmando (esta cena não está no filme). Em certo momento, ele virou-se e falou comigo, em inglês, muito bravo, perguntando o que fazia, filmando-o sem pedir licença. Eu, sem saber o que fazer, respondi apenas: Brasil; e complementei: Kaká, Ronaldo. Ele abriu um grande sorriso e foi embora. Para mim foi emocionante porque eu entendi na prática aquilo que já sabia, a enorme ligação afetiva que temos entre brasileiros e africanos.
Paradoxo: liderança e vítimas de violência
Apesar da importância para suas comunidades e para todo o continente, elas continuam sofrendo todo o tipo de violência, abuso e sendo vítimas de atrocidades sexuais. Pergunto a Carlos por que será que os homens protegem tão pouco as suas mulheres. Apesar de toda a garra, de todo o seu ativismo, elas ainda educam seus filhos sob um ponto de vista majoritariamente machista?
– Graça Machel trata indiretamente desta questão no filme quando fala do casamento de crianças. Ela diz que é preciso confrontar tradições e religiões. Dar oportunidades para que as mulheres escolham seus próprios caminhos. De qualquer forma, creio que este é um problema muito sério, especialmente em países como a África do Sul, e que certamente a mulheres têm um papel importante na solução a partir de suas comunidades, simultaneamente ao combate pelas autoridades – conta o diretor.
O futuro da África
Os estereótipos e as muitas teorias europeias desenvolvidas há séculos sobre a África e os africanos fazem um caminho inverso às potencialidades de um continente que detém os recursos para mover o presente e futuro. A África possui as maiores reservas minerais do planeta, como o petróleo, carvão, ouro, diamantes, coltan (mineral usado na indústria eletrônica). Um dos desafios está em equilibrar a exploração e a interferência externa com líderes responsáveis e políticas sociais que cuidem bem da educação, da saúde. A instabilidade, muitas vezes, é provocada por essa interação descompromissada.
– A África é a próxima fronteira agrícola. As savanas são uma promessa de produção de alimentos para o mundo todo. Há enormes reservas de água, uma população jovem e ativa, dados que, conjugados aos processos de estabilidade, eleições democráticas, reconhecidas por organismos internacionais, crescimento e produtividade, indicam para um futuro de esperança de todo o continente. Certamente este futuro não se manterá sem a atuação das mulheres, completou o diretor.