Por Osmany Porto, Por dentro da África
Dakar, Senegal – A África é um continente pleno de riquezas naturais e que tem logrado à políticas de sucesso, muitas delas reconhecidas internacionalmente. No entanto, os problemas sociais persistem e as instituições têm dificuldade para se consolidar. Parcerias recentes de países emergentes estão contribuindo para a configuração de um novo cenário das relações internacionais na África, cujos efeitos são percebidos até nos governos locais. A China passa a liderar uma onda de investimentos, marcada por projetos de exploração de recursos naturais e a construção de infraestruturas. A Turquia e o Brasil seguem o mesmo caminho, mas em menor escala. A ação brasileira, desde o governo de Lula, distingue-se por incluir também uma dinâmica de transferência de conhecimento na área das políticas de agricultura e saúde.
As organizações internacionais, por seu turno, empenham-se na promoção dos Objetivos do Milênio e almejam o erradicação da pobreza. Com o objetivo de construir e reforçar as instituições nos diferentes níveis do Estados, estas insistem em soluções baseadas nos princípios da “boa governança” e encorajam a disseminação de “boas práticas”. Nesta nebulosa de inovações, recomendações e transferências, encontra-se o Orçamento Participativo, uma política pública destinada a incluir os cidadãos no processo de alocação orçamentária.
Desenvolvida na cidade de Porto Alegre no Brasil em 1989 e consagrada como “boa prática” pela ONU em 1996, o Orçamento Participativo vem ganhando força na África. Na América Latina os efeitos do Orçamento Participativo estão associados ao estímulo à participação política e ao controle social, a inversão de prioridades nas políticas públicas, o aumento da transparência política e a promoção de justiça social. Na África Subsaariana esta política de governança participativa se enraíza a partir de 2003 quando municípios do Senegal e dos Camarões passaram a desenvolvê-la. A expansão do Orçamento Participativo no continente se traduz numa forma de construir a democracia, a partir da base dos Estados: os governos locais.
O Orçamento participativo: tendências na África subsaariana
A internacionalização do Orçamento Participativo entrou num processo de crescimento vertiginoso. Em 2010, um relatório da Agência Alemã de Cooperação (GIZ) contou cerca de 1500 experiências, ditas genuínas, de Orçamento Participativo no mundo. No continente africano a proliferação desta política de governança participativa atingiu 162 casos. Países como Camarões, Madagascar, Moçambique e Senegal abraçaram a ideia e desenvolveram experiências avançadas, tendo em vista aumentar amplamente o número de experiências em escala nacional.
O professor Yves Cabannes, da University College London, estima que, em cinco anos, os casos dobrarão e que, em dez anos, podem aumentar ainda mais, alcançando cerca de 1000 experiências. As evidências sugerem que foi atingido um ponto de não retorno na expansão dos Orçamentos Participativos na África.
A confluência de uma série de fatores favoreceu a ancoragem dos Orçamentos Participativos na África. A vontade política das autoridades locais tem sido indispensável para o sucesso e perenidade do Orçamento Participativo. A cooperação internacional, por seu turno, estimula o intercâmbio e oferece suporte técnico. A Organização das Nações Unidas e o Banco Mundial têm promovido encontros regionais e publicado material técnico para auxiliar as novas práticas. Além disso, a cooperação internacional ajuda a sustentar financeiramente determinados programas de Orçamento Participativo. As Organizações Não-Governamentais também são fundamentais no treinamento de quadros. Na África francófona ENDA-Tiers Monde, baseada no Senegal, e ASSOAL, nos Camarões, trabalham como catalisadores formando novos especialistas em Orçamento Participativo, propiciando maior autonomia para as experiências mais recentes. A participação dos cidadãos e da sociedade civil, por fim, é fundamental, pois dá vida e energia aos processos.
Algumas experiências inovam por associar a participação ao uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), uma combinação que parece se tornar incontornável nos dias atuais. No Africités (realizado em dezembro de 2012 em Dakar, no Senegal), foram apresentados três casos representativos desta realidade. Na região do Kivu do Sul na República Democrática do Congo, um projeto piloto de Orçamento Participativo, sustentado pelo Banco Mundial, inseriu a participação por meio de mensagens SMS. O cidadão por meio do telefone celular pode obter informações sobre o andamento das políticas públicas, votar em prioridades de infraestrutura e monitorar o processo orçamentário. Em Yaoundé, Camarões, ocorre uma prática semelhante que foi recentemente emulada em Nairóbi no Quénia.
O uso da tecnologia contribuiu para incluir na vida política a população que vive em regiões distantes, muitas vezes isoladas em localidades rurais, observa Boris Weber do setor de governança do Instituto do Banco Mundial.
O Orçamento Participativo na África também favorece a melhora da receita municipal. Especialistas, como Jules Dumas da ONG Assoal, e autoridades locais dos Camarões asseguram que o dispositivo permite incrementar a renda dos municípios. A constatação é de que, ao conhecer a destinação dos recursos públicos e o processo de alocação orçamentária, o cidadão se sente mais confiante para a contribuir com o pagamento dos impostos. A rápida difusão dos Orçamentos Participativos ao longo dos últimos produziu diferentes significados, êxitos e tendências no continente africano.
Rumo a um crescimento sustentável dos Orçamentos Participativos na África?
Os êxitos alcançados nos Africités contribuíram para tornar este espaço um centro para a discussão, reflexão e disseminação do Orçamento Participativo. Durante o evento, em Dacar, foi adotada a Carta Africana de Participação Cidadã, que “anuncia princípios diretivos e modalidades que definem as condições de exercício de uma cidadania mais ativa nas coletividades territoriais africanas”.[ix] Também criou-se o Observatório Internacional da Democracia Participativa na África, uma sucursal do OIDP de Barcelona, que teve, na sessão de lançamento, a participação de ministros do Senegal e mais de 150 expectadores de 16 países na África, Europa e América Latina.
E mais: o primeiro acordo de cooperação entre uma cidade africana e uma latino-americana, Yaoundé e Porto Alegre, foi assinado, tendo como testemunhas a Embaixadora do Brasil no Senegal, o Secretário Geral da Cidades e Governos Locais Unidos na África e o Secretário-geral da rede Metropolis. Desde a edição de 2009, experiências de Orçamento Participativo são premiadas, servindo de farol para as novas práticas. Na última edição, a Comunidade Rural Malgaxe de Ampassy Nahampoana foi laureada.
O Orçamento Participativo desta comunidade contribuiu para tornar a ação pública mais transparente, após um incremento significativo da receita derivado da descoberta de recursos minerais na região. O Madagascar, que vive uma conturbada situação política em seguida a um golpe de Estado ocorrido em 2009, pretende ampliar em escala, com a criação de 150 novas experiências. Nesta mesma perspectiva o Senegal cogitou tornar o Orçamento Participativo uma lei nacional. As iniciativas revelam um movimento dos governos locais para de alavancar a democracia a partir dos territórios.
É preciso, todavia, ser cuidadoso diante do incremento exponencial das experiências. O coordenador da ONG ENDA-Tiers Monde, Mamadou Bachir Kanouté, insiste que, ao expandir em escala, o Orçamento Participativo corre o risco de perder em termos de qualidade e reforça a necessidade de cautela. De fato, há muitas práticas que se proclamam orçamentos participativos, mas que são, na realidade, simples processos de consulta da população a respeito dos investimentos públicos, enquanto a prescrição de Porto Alegre sugere um papel mais ativo da sociedade no processo de definição orçamentária.
A implementação do Orçamento Participativo é uma ação pública ambiciosa, que envolve despesas significativas em termos de energia e recursos. Em muitos casos é preciso formar quadros, contratar consultores externos, mobilizar e envolver a sociedade no processo orçamentário. A despeito de muitos esforços, a durabilidade das experiências não é sempre garantida. Na América Latina, como na Europa, o ocaso de muitos Orçamentos Participativos foi sensível nos últimos anos. É preciso criar mecanismos que assegurem continuidade das experiências e sua autonomia.
Os casos de sucesso e de falência servem, ambos, para se tirar lições. É indispensável, neste sentido, capitalizar a aprendizagem e sintetizar a informação das práticas, por um lado, e monitorar as experiências, por outro, para assegurar sua qualidade e analisar sua evolução. Ademais, é preciso cuidar para que o Orçamento Participativo não se torne um avatar dos interesses econômicos privados internacionais ou refém contenções políticas locais. A introdução da nova política também deve zelar pela conservação das culturas locais.
O intercâmbio com regiões mais experientes, como a América Latina, é um elemento importante para aprimorar as políticas de governança participativa. Um primeiro passo foi dado neste sentido com um acordo criado entre uma cidade brasileira e outra camaronesa. A colaboração com núcleos de pesquisa, para desenvolver indicadores, também são elementos profícuos para facilitar a transferência, avaliação e observação das novas práticas.
Para agir no plano local é importante pensar de forma ampla e global e transcender as fronteiras do tempo e do espaço para promover políticas públicas sustentáveis.
Osmany Porto de Oliveira é doutor em Ciência Política, na Universidade de São Paulo e na Université de la Sorbonne Nouvelle/IHEAL e pesquisador do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Ele terminou sua tese de doutorado sobre a circulação internacional do Orçamento Participativo, para a qual ele realizou pesquisa de campo em cidades de diferentes países: África do Sul, Brasil, Equador, Espanha, França, Moçambique e Senegal. É autor de Le transfert d’un modèle de démocratie participative: paradiplomatie entre Porto Alegre et Saint-Denis, publicado pelas Éditions de l’IHEAL/CREDA em 2010.