André Carlos Zorzi, Por dentro da África
A década de 90 não foi das melhores para o povo do Burundi, que sofreu com os conflitos entre Tutsis e Hutus, os dois principais grupos étnicos do país, e também com uma guerra civil que se iniciou em 1993 e durou cerca de 12 anos. Mesmo assim, é possível encontrar bonitas histórias envolvendo o esporte naquele período.
Dieudonné Kwizera era um grande corredor burundiano, com relativo sucesso em seu país na década de 1980 e início de 1990, quando ainda não existia um Comitê Olímpico no Burundi. Como tratava-se de um expressivo competidor da prova dos 800m livres, o COI cogitou dar a ele uma permissão especial para que pudesse competir nos jogos de Seoul-1988, e Kwizera chegou inclusive a se hospedar na Vila Olímpica. Porém, o Comitê recuou após reclamações do Comitê Sul-Africano, banido dos jogos, e que não queria que um atleta de um país sem Comitê pudesse participar.
A partir de então, o corredor gastou dinheiro de seu próprio bolso buscando fundar a entidade, e, em uma de suas viagens, encontrou-se com o Príncipe de Mônaco, Albert, que era membro do COI, e se articulou para ajudá-lo na criação do Comitê, que viria a ocorrer em 1993.
Mesmo depois de tanto esforço, seu sonho ia por água abaixo: Kwizera sofreu uma lesão no joelho, o que acabou impedindo-o de conquistar bons tempos para a classificação aos jogos de Atlanta-1996 nas provas dos 800m e dos 1500m, suas especialidades. Desta forma, viajou para a cidade estadunidense junto com a delegação, mas, para sua frustração, na condição de técnico.
É aí que Vénuste Niyongabo entra na história. Compatriota do fundador do Comitê, Niyongabo havia sido medalhista de prata na prova de 1.500m no Mundial do ano anterior, e tinha boas chances de conquistar um pódio nas Olimpíadas. Ele também disputaria a prova dos 5.000m, a qual tinha competido oficialmente apenas duas vezes em sua vida.
Em um ato de extrema generosidade, Niyongabo se solidarizou com Kwizera, que tanto havia batalhado para disputar uma Olimpíada, e cedeu sua vaga na competição dos 1.500m ao companheiro. Assim, deixou de lado a possibilidade real de ganhar uma medalha para realizar o sonho do veterano.
A princípio, Kwizera achou que não permitiriam que a troca ocorresse, já que os prazos para inscrições já haviam se esgotado, mas os juízes resolveram acatar o pedido. O atleta estava sem treinar há duas semanas, e ainda achava toda a situação muito difícil de acreditar, tanto que chegou a usar o dedo para esconder a pequena letra “C” (de participantes registrados como técnicos, ao invés de um “A”, como atletas) que constava em sua credencial para entrar nos vestiários.
Kwizera foi à pista e terminou na 5ª colocação de sua bateria, com o tempo de 3m41s45, e foi desclassificado logo na primeira fase, campanha certamente bem abaixo da que seu colega poderia realizar, mas não menos honrosa.
Em seguida, era a vez de Niyongabo ir à pista, na prova em que não era favorito. Para sua sorte, o recordista mundial da época, o etíope Haile Gebrselassie, havia se machucado e não participaria da disputa.
Por volta de 11m06s, o burundiano conseguiu ocupar a liderança, por breves segundos, mas, em seguida, foi ultrapassado por Bob Kennedy, atleta estadunidense que fez a torcida local ir à loucura e ofuscou o rápido feito do africano.
Aos 12m01s, Niyangabo deu um pique forte, e retomou a liderança, pouco antes de dar início à última volta. Ele abriu uma boa distância para o trio de corredores que o acompanhavam de perto até então, e reduziu o ritmo nos instantes finais, fazendo com que cruzasse a linha de chegada apenas vinte centésimos à frente do queniano Paul Bitok, medalha de prata, e menos de meio segundo à frente de Khalid Boulami, do Marrocos, complementando um histórico pódio 100% africano.
E assim era conquistada a primeira, e até hoje, única medalha do Burundi na história dos jogos Olímpicos. Poderiam ser duas, caso Niyangabo tivesse disputado também os 1.500m àquele ano, mas ele felizmente preferiu sagrar-se campeão em espírito olímpico.