Por dentro da História: Os últimos anos do regime fascista português

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Revolução dos Cravos – RTP

Por Nuno Rebocho, Por dentro da África

Os anos 60 em Portugal foram de enorme sufoco. Os jovens estavam em aberto confronto com uma ditadura ferrugenta, com horizontes mais que abafados, enfronhada numa sanguinolenta guerra colonial desdobrada em três frentes. Levantava-se a juventude forçada a um não desejado combate, a miséria das populações grimpava, pelas fronteiras escoava uma migração clandestina, escapada das incorporações militares e da extrema pobreza a que o garrote salazarista condenava um povo que se recusava a aceitá-lo. Sobretudo, os que – como eu – tinham conhecido os mais abertos horizontes de África (em Moçambique, onde cresci e me eduquei e que a necessidade de continuar os estudos em Portugal forçara a transportar-se para o Portugal europeu) aspiravam sobremaneira a um clima de liberdade.

Para aguentar a caduca ditadura, uma variante do mussoliniano fascismo (o corporativismo), o salazarismo socorria-se de feroz repressão: a onipresente polícia política (PIDE, abreviatura de Polícia Internacional de Defesa do Estado), com o seu cortejo de “informadores” (bufos) que tudo espionavam e as suas masmorras (Fortes de Peniche e de Caxias, os campos de concentração nas colônias), aliada a uma censura prévia (o lápis azul) que cerceava o pensamento, calava as palavras consideradas inconvenientes e subversivas, amoldava as gentes a uma doutrina política e a uma mais que retrógrada religião impingida por um patriarca ultraconservador e companheiro de escola do ditador. Era uma apagada e vil tristeza que vestia o país, travava o desenvolvimento cultural e econômico, esmagava as tímidas veleidades industrialistas. Quem se opunha, apodrecia nas prisões ou no exílio ou procurava lutar numa perigosa clandestinidade, defrontando os esbirros policiais que não hesitavam em prender e torturar, nem vacilavam perante o assassinato dos opositores.

A juventude estudantil cavalgava a contestação ao regime, tornando-se cada vez mais veemente nos seus protestos. A ameaça das incorporações militares que produziam contingentes para as guerras coloniais animava a resistência e convidava-a a enveredar pela luta armada contra o regime imposto. A desesperante situação dos trabalhadores, entre os quais grassava o desemprego e onde granjeavam os baixos salários, vivia um poderoso movimento grevista, desafiador da brutal repressão: prisões e cargas policiais. A oposição política procurava organizar-se, aglutinando-se em agrupamentos políticos que intentavam ultrapassar o crivo fascista, apesar de serem proibidos os partidos políticos, de serem presos e deportados os seus dirigentes ou mesmo assassinados (caso do general Humberto Delgado, ex-candidato à Presidência da República, entre muitos outros).

Todas as correntes adversas ao poder totalitário eram proibidas – desde os dissidentes do regime, aos católicos progressistas, aos republicanos democratas, socialistas, anarquistas e comunistas. Só era autorizado um único partido, a União Nacional, e – para enquadrar tudo isto – havia os “sindicatos nacionais corporativos”, as “corporações” que estruturavam a organização social e política do regime, a organização paramilitar para a juventude (a “Mocidade Portuguesa”, a qual as gerações mais jovens eram obrigadas a integrar). E havia uma “milícia” – a “Legião Portuguesa”.

Foi neste ambiente que, dando os primeiros passos de aprendiz da escrita, integrei os movimentos de literatura juvenil, incorporei as tertúlias literárias do tempo e me deparei com o encerramento pela PIDE da Associação de Escritores, em 1963, como represália do tradicional Prêmio Literário escolhido ter sido atribuído a em escritor angolano (Luandino Vieira) então preso no Campo de Concentração de Tarrafal (em Cabo Verde). Era na altura responsável por uma associação de estudantes e ligara-me a uma coletividade de provenientes das colônias portuguesas em África, a Casa de Estudantes do Império, verdadeiro alfobre de militantes independentistas (foram seus dirigentes, entre outros, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade).

A ativa participação nos protestos contra o encerramento da Associação Portuguesa de Escritores naturalmente atraiu as atenções do Partido Comunista Português (clandestino) que me recrutou. Se não entrasse em consenso com esse partido, teria sido enviado para a ex-URSS para receber um curso de formação de funcionário clandestino. Aconteceu que as divergências profundas com o PCP importaram na minha adesão às teses maoístas. Militei então na Frente de Ação Popular (FAP) quando as grandes inundações de 1966 provocaram enormes destruições nos bairros degradados, nos bairros de lata e nos casebres. As associações de estudantes espontaneamente se mobilizaram no socorro às populações afetadas, desafiando a repressão e as tentativas de encobrimento da realidade intentadas pela mordaça da censura.

Neste ínterim, fui um dos organizadores da manifestação do Primeiro de Maio de 1966 no Rossio de Lisboa. Quando sobre ela se abateu a repressão policial, um grupo de jovens montou a defesa para me permitir escapar à intervenção dos polícias. Nesse grupo encontrava-se a minha futura mulher, com quem viria a casar oficialmente na cadeia, já preso pelos esbirros da PIDE. Nas tentativas de reunificar os grupos maoístas, reminiscentes da FAP entretanto desbaratada pelas prisões dos seus principais dirigentes, fui contactado para participar no assalto ao Banco de Portugal em 1966, o que recusei apenas porque não levei a sério o plano para que fui convidado. Apesar disso, viria a ser disso acusado pela PIDE, sendo uma das acusações que me foram imputadas pelos tribunais plenários fascistas.

Antônio Salazar – Foto – Arquivo Wikipedia

Nos dias de namoro fui ocasionalmente detido, juntamente com a que viria a ser minha mulher, por nos temos beijado em público quando nos despedíamos na estação de comboio, nos subúrbios de Lisboa. Para a moral salazarenta, os beijos públicos eram expressamente proibidos, o que de resto estava assinalado nos jardins públicos.

A vigilância policial cercava-me cada vez mais. E numa noite, quando regressava a casa depois de mais um encontro clandestino, vi uma brigada policial entrar na pensão onde estava hospedado. Fugindo à detenção, passei à clandestinidade, esgueirando-me para a cidade do Porto onde, adotando nome suposto, procurei reorganizar a desmantelada FAP. Estava nessa função quando a minha presença no norte de Portugal foi denunciada por um “provocador” (um informador da PIDE infiltrado na organização): uma noite, vindo de um encontro clandestino, a casa onde me refugiara foi assaltada por brigadas da PIDE e pela Guarda Nacional Republicana. Fui preso com uma dezena de companheiros (20 de Dezembro de 1967). A documentação apreendida falava por si.

Torturado e espancado, fui posteriormente levado a Tribunal Plenário e condenado a três anos e meio de prisão maior, mais medidas de segurança renováveis (o regime salazarista podia prolongar indefinidamente as prisões, não precisando para tanto apresentar qualquer fundamento. Se o quisesse, as medidas de segurança poderiam converter-se em prisão perpétua, o que de fato quase se verificou, pelo menos num caso – o de Edmundo Pedro).

Fui, à data da minha detenção, o preso político mais jovem do regime português e integrei o primeiro julgamento político do caetanismo, que sucedeu à ditadura de Oliveira Salazar depois que este caiu da cadeira. Os três anos de cadeia transformaram-se em cinco anos de prisão… até que o regime de Marcelo Caetano acabou com as chamadas medidas de segurança.

NO REGIME DA FARSA

Quando ao fim de prolongada ditadura (quarenta anos), Oliveira Salazar caiu de uma cadeira quando se encontrava de férias no fortim de S- João do Estoril e sofreu uma hemorragia cerebral, o seu regime teve de enfrentar complicado problema: encontrar um substituto de ditador com o mínimo de sobressaltos para a clique fascista instalada no poder. Foi então escolhido Marcelo Caetano sem qualquer eleição (as existentes ao longo das quatro décadas foram todas ferozmente controladas, viciadas e feitas com marginalização das oposições impedidas de se organizarem por apertadíssimas legislações) e encenada uma farsa para que o enfermo ditador nunca tomasse conhecimento de que já não era o todo absoluto dono do poder – o que só foi possível dada a rigorosa censura exercida. Até ao falecimento de Salazar não houve qualquer notícia que desse a entender que o velho ditador fora afastado do poder e ele próprio continuou a residir no retiro da sua mansão governamental, rodeado de todas as cortesias, quando abandonou o internamento hospitalar.

A minha prisão, implicando que fosse considerado “indigno do serviço militar”, evitou que fosse incorporado nos contingentes enviados para as guerras coloniais. Assim, sendo refratário e faltoso ao recrutamento, fui banido de vez das forças armadas.

Foi nesta ambiência que cumpri os primeiros anos de cadeia: era mesmo proibido aos presos políticos encostarem-se às paredes quando no recreio do pátio do forte de Peniche onde estavam detidos. As leituras eram rigorosamente controladas, o número de livros em cada cela limitadíssimos (apenas cinco), proibidas consultas de estatísticas (mesmo as oficiais), as visitas familiares altamente vigiadas e em parlatórios com um vidro a separarem os presos das famílias (outras visitas eram interditas). O regime prisional era, contudo, um alívio relativamente ao período de interrogatórios policiais, mais violentos quando praticados contra operários e camponeses: apesar de tudo, os intelectuais e estudantes eram sujeitos a menores sevícias físicas – geralmente, os intelectuais apenas eram submetidos a tortura do sono ou da “estátua” (o preso era impedido de se sentar). Só em casos extremos, os intelectuais eram submetidos a outras torturas físicas (fui um desses casos) ou eram injetados de pentotal para lhes serem arrancadas “confissões”.

Os “julgamentos” eram viciadas encenações conduzidas por togados da absoluta confiança do regime: limitada a palavra dos réus (por vezes, as audiências no tribunal eram interrompidas por pancadaria dado que os agentes policiais enchiam a sala). Por norma, os “julgamentos” apenas colavam sobre os réus as “sentenças” previamente congeminadas pelo regime ditatorial. Ou seja, os “julgamentos” eram uma farsa, um simulacro de justiça. Na cadeia, antes do julgamento, casei oficialmente no dia 2 de Maio de 1968, porque a PIDE proibiu que o casamento se efetuasse a 1 de Maio.

Os detidos políticos procuravam resistir nas cadeias a este estado de coisas. Os levantamentos e greves de fome sucediam-se: participei em cinco greves de fome, fui espancado na cela, tive visitas da família e de advogados interrompidas pelos vigilantes carcereiros, éramos castigados com o chamado “segredo” (fui o penúltimo prisioneiro a sofrer tal castigo – encerrado durante dias num cubículo às escuras, sem cadeira nem cama, sem visitas, sem contatos de qualquer espécie). Em 1971 a Anistia Internacional quis apontar-me como o “preso político do ano”, o que, por informação errada recebida, recusei: cuidava que a A.I. era uma criação da CIA. Em meu lugar, foi designado o militante do PCP então detido, Antônio Graça.

Com a morte do ditador Salazar, Marcelo Caetano intentou inculcar um “rosto humano” no regime: abrandou a censura, mudaram os nomes das estruturas mais odiadas no regime (a PIDE mudou a designação para DGS. Direção Geral de Segurança, a União Nacional para Ação Nacional Popular), abriu a ANP a uma franja social-democrata, criando-lhe uma “Ala Liberal”, aboliram-se as medidas de segurança prisionais, que escandalizavam a opinião internacional. O marcelismo parecia animar os desejos democráticos da população, mas foi sustido pelas suas contradições internas e pelas guerras coloniais sem soluções políticas. Não expurgou outros aspectos caricatos do regime vigente: por exemplo, a minha filha mais velha não pôde ser registrada com o nome de “Liberta” por tal ser proibido. Em último recurso, ficou a chamar-se Suzana!

As lutas prisionais e a pressão da opinião pública fizeram que se registrassem importantes melhorias no regime carcerário e o sistema das abjetas medidas de segurança foi abolido, pelo que em Setembro de 1972 fui colocado em liberdade. Dos presos então libertados (sem alguma vez ter requerido liberdade condicional) fui um dos dois que se recusaram a pagar a “portagem” exigida pelos carcereiros para a saída da prisão. Recordo que lhes respondi: “se não paguei para ser preso, não pagarei para ser posto em liberdade”.

O movimento estudantil estava escaldante, apesar dos assassinatos cometidos pela polícia política – caso do estudante Ribeiro dos Santos. O movimento grevista em ascensão, começando a surgir nos sindicatos fascistas direções eleitas democraticamente. A imprensa regional (de que fiz parte) fazia-se um bastião da luta democrática, desafiando a censura. No Primeiro de Maio de 1973 fui preso pela segunda vez, com minha mulher, mas fui libertado poucos dias depois. Nas forças militares, os oficiais milicianos começavam a revoltar-se: verificou-se uma primeira tentativa de golpe de Estado (frustrado: em Março de 1974, levantamento do quartel das Caldas da Rainha).

Estava na lista dos 60 nomes a ser presos a 28 de Abril de 1974, nas chamadas “detenções preventivas do Primeiro de Maio”. A revolução de Abril, pondo cobro ao regime ditatorial, evitou que tivesse sido preso pela terceira vez.

Os que lutaram contra a ditadura apenas foram os que as condições permitiram que fossem mais conscientes. Os verdadeiros resistentes, os verdadeiros heróis, foram a massa do povo sofredor que, estoicamente, suportou a exploração e a opressão, sem se poder defender, sem sequer poder protestar.

*Antônio de Oliveira Salazar (1889 – 1970) foi um estadista nacionalista português que, além de chefiar diversos ministérios, foi presidente do Conselho de Ministros do governo ditatorial do Estado Novo.

*Estado Novo foi o regime político autoritário que vigorou em Portugal durante 41 anos sem interrupção, desde a aprovação da Constituição de 1933 até a Revolução de 25 de abril de 1974.