Sociedades Agrárias Africanas: O milagre da vida, a maravilha da existência e a magia do poder

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Foto - Governo áfrica do sul
Foto – Governo da África do Sul


Por Ulrich Schiefer,
Por dentro da África 

(Artigo produzido em parceria com o Instituto Universitário de Lisboa)

Lisboa – As sociedades agrárias africanas sabem que a vida é um milagre – a dimensão espiritual manifesta-se na pura sensação da maravilha da sua existência. A ubiquidade da alegria tem a sua correspondência na onipresença das instâncias espirituais que dominam a natureza circunstante e, como consequência, também as sociedades e a vida das famílias e das pessoas.

Dado o baixo nível tecnológico dessas sociedades a ideia de “dominação da terra pelo homem” seria absurda – historicamente nem faz parte do pensamento. Os fenômenos que fazem mover o mundo são atribuídos a espíritos que vivem na natureza. Os antropólogos estudam os “cultos dos antepassados”; os (raríssimos) psicólogos da escola de Jung descobrem as manifestações do inconsciente coletivo; os missionários de todas a denominações combatem as crenças nos múltiplos espíritos e demônios, que tentam substituir pela crença num único deus e num único diabo; os psicólogos das escolas modernas tentam em vão estudar fenômenos que as sociedades entendem como extra-psíquicos e a psicologia moderna procura dentro das almas individuais, normalmente através de questionários, o que ultrapassa largamente a abrangência das suas teorias. Os economistas tentam compreender algo…

Os africanos que ainda vivem nestas sociedades experienciam o sagrado que os envolve e tentam lidar com os espíritos que os rodeiam e transmitem os seus conhecimentos às gerações seguintes.

A riqueza destas sociedades depende, portanto, das boas relações com os espíritos que são os donos da terra e dos destinos humanos. A riqueza é espiritual e social, e nestas dimensões, ilimitada, e também material, mas nesta dimensão limitada pela tradição e pela inveja dos outros. (E a pobreza não é a falta de bens de consumo, como as teorias económicas e as estatísticas baseadas nelas pressupõem).

A força de uma sociedade é uma força espiritual, a força de uma pessoa é igualmente espiritual, só que esta força não existe dentro do indivíduo (que, aliás, é uma invenção europeia do século XVIII) mas fora dele. As forças espirituais podem ser influenciadas através de rituais, na sua maioria secretos, e que exigem sacrifícios que podem ser materiais ou humanos.

Foto – USC – EDU

Através de contatos com os espíritos, as sociedades ocupam terrenos para o cultivo, defendem-se contra os vizinhos que cobiçam as suas terras, as suas vacas ou as suas mulheres, declaram a guerra e garantem a paz. É desta forma que procuram a saúde e o bem-estar dos seus e tentam infligir o azar, a doença e a morte aos seus inimigos. Conforme as características dos espíritos de cada sociedade, também podem procurar proteção na guerra, sorte na emigração ou até dinheiro ou poder político – o que nem todos facultam. Não é por acaso que os espíritos das sociedades acéfalas simplesmente não ajudam na aquisição de poder político.

A gestão espiritual dos recursos naturais

O acesso a todos os recursos é altamente regulado. A distribuição das terras para o cultivo é feita dentro de regras relativamente claras e por instâncias reconhecidas, que também resolvem eventuais conflitos. O acesso à água, quem pode e onde abrir poços e com que finalidade, e quem pode buscar água nestes, está codificado em regras tradicionais que são espiritualmente reforçadas através de rituais regulares.

A caça, de grande importância para muitas sociedades, segue igualmente regras muito específicas. Existem dias em que a caça é totalmente interdita, há épocas específicas para determinados animais e zonas determinadas. E é regulado quem pode ir a caça e quem não pode. A preparação da caça, seja individual, seja em grupo ou em coletivo, exige uma preparação espiritual e negocial entre todas as entidades envolvidas. Na distribuição da presa depois de caça com sucesso observam e manifestam-se as relações internas das sociedades – a distribuição da presa sem gerar conflitos é uma arte que exige muita experiência.

Em certas sociedades, a regulação de caça, especialmente da caça grossa, fica a cargo de homens ou mulheres velhos que herdam o cargo segundo a sucessão genealógica linhageira. O respectivo responsável, através de sonhos, comunica com os animais no mato e através de contato com os espíritos sabe sempre onde se encontram e se pode ou não autorizar a caça.

Existem zonas sagradas e dedicadas a certos espíritos, onde a caça é sempre interdita e que servem como “reservas naturais” – estas não devem ser confundidas com os parques naturais modernos introduzidos pelo colonialismo e pelos governos pós-coloniais no século XX.

Do mesmo modo, a pesca está sujeita a regras específicas e exige autorizações das instâncias competentes dentro de cada sociedade. As sociedades podem fazer acordos com grupos especializados de pescadores de outras sociedades cujos direitos e deveres são altamente regulados.

Embora nas autorizações e nos acordos exista uma boa dose de boa-fé, os responsáveis das linhagens, mesmo em sociedades acéfalas, portanto, sem poder manifesto real, sem equipa armada que possa impor a sua vontade, dispõem de fortes sanções contra os infratores. Quem ignorar avisos e infringir as regras e quem seja reincidente pode ser castigado e tem que pagar multas. Se as infrações são graves, as instâncias espirituais podem ser mobilizadas contra eles e trazer o azar, a doença ou até a morte.

Himba women milk cows in the small village of Okapembambu in northwestern Namibia. The Himba diet consists of corn meal porridge and sour cow's milk. Like most traditional Himba women, she covers herself from head to toe with an ochre powder, cow butter blend.
Himba women milk cows in the small village of Okapembambu in northwestern Namibia. The Himba diet consists of corn meal porridge and sour cow’s milk. Like most traditional Himba women, she covers herself from head to toe with an ochre powder, cow butter blend.

A gestão de recursos naturais não é, naturalmente, confinada a uma única sociedade étnica. Especialmente em regiões onde vários grupos étnicos habitam as mesmas terras, através de acordos interétnicos são regulados os diferentes usos dos recursos que podem ser concorrentes ou complementares. Quando os usos dos mesmos recursos são concorrentes, o mecanismo mais habitual é a delimitação geográfica do terreno, onde à cada sociedade é atribuída o uso exclusivo de determinados recursos.

Quando o uso de recursos é complementar e corresponde a capacidades e a tradições específicas de cada grupo, são estabelecidas regras sobre cada passo de uso, de transformação e de troca, ou de venda. Muitas vezes os produtos complementares são trocados em proporções fixas que se podem manter estáveis durante longos períodos. Um exemplo: cultivadores de arroz podem autorizar a pesca em águas deles e trocar depois arroz contra peixe. Os pescadores podem pescar para o consumo deles e para troca direta com os habitantes da zona, mas não têm autorização de defumar peixe para a venda a longo prazo, que é um direito reservado às mulheres da terra.

O uso complementar ou concorrencial, mas regulado e acordado, de recursos naturais, muitas vezes constitui a base da paz entre grupos étnicos e pode ser o pano de fundo dos mecanismos de paz interétnicos que garantem em muitas regiões de África alguma estabilidade. As violações destes acordos ativam muitas vezes todo o arsenal diplomático e negocial das sociedades, que é sempre suportado por um substrato espiritual. E quando todas estas tentativas falham recorre-se a demonstrações de poder de cada grupo através de mecanismos vários.

Foto - biyokulule
Foto – biyokulule

Em muitas regiões, há ciclos de grandes festas, sejam elas étnicas, sejam interétnicas, que são organizadas com alguma regularidade. Estas festas que também se conhecem de outras regiões do mundo (por exemplo os antigos jogos olímpicos), proporcionam as oportunidades para resolver os conflitos antes que estes assumam proporções perigosas e, mais importante, servem para evitar potenciais conflitos através de negociações, porque “o sábio resolve os problemas antes que eles nasçam”. Estes esforços de diplomacia interétnica naturalmente encontram os seus limites quando forças exteriores se projetam sobre os territórios.

Em épocas críticas, caracterizadas por aumentos de tensões dentro e entre as sociedades, e conflitos reais ou potenciais entre facções das elites, pode observar-se muitas vezes, um significativo aumento das visitas dos velhos responsáveis das linhagens a outros grupos étnicos para negociações de paz – o que sempre implica visitas aos respectivos sítios sagrados.

Notas do autor 

Muitos velhos das sociedades agrárias, responsáveis de linhagens importantes de várias tribos, quando estavam em viagem que os levava a passar pela capital, costumavam visitar o centro de investigação onde eu trabalhava para tomar chá comigo. Da frequência e natureza destas visitas, mesmo que os assuntos que iam tratar com outros grupos étnicos nunca fossem diretamente mencionados – ninguém é mais discreto que um velho líder africano – facilmente se depreendia que havia problemas sérios algures. O contrário acontecia também. Um amigo, alto responsável militar, tomava regularmente o pequeno-almoço comigo. Quando ele não comparecia já sabia que havia problemas militares sérios com o país vizinho.

Mas como os velhos afirmam: os conflitos que muitas vezes são interpretados como conflitos étnicos, normalmente não nascem no campo onde podem ser controlados e geridos pelas sociedades agrárias, mas na cidade – de onde vem uma grande parte do mal.

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Captura de tela 2015-09-07 às 12.31.37Artigo desenvolvido pelo Curso de Estudos Africanos, do Instituto Universitário de Lisboa, para a parceria com o Por dentro da África. Saiba mais sobre o curso e a instituição aqui