Yérsia Souza de Assis, Por dentro da África
A minha família, assim como muitas das famílias pretas do pós-abolição foram obrigadas a criar estratégias de coesão e resistência à sociedade brasileira pós-abolicionista, pois, abolir a escravidão no Brasil e em muitos lugares do mundo não pode ser considerado como marco de uma sociedade que não mais se via como racista e segregacionista.
Não. O Brasil pós-abolição é um lugar marcado por relegar as populações pretas os piores postos, em verdade, este Brasil optou por não oferecer nenhum tipo de função para os africanos e seus descendentes. No entanto, os povos pretos que aqui ficaram se valeram dos recursos possíveis para se manterem vivos e para sobreviver no caótico país que forçosamente estavam obrigados a residir. Dos recursos possíveis, a religião se tornou um lugar do exercício privilegiado da resistência e da manutenção da negritude afro-diaspórica, existem inúmeras pesquisas que apontam esses lugares, e os próprios terreiros com suas fundações de mais de um século são o elemento mais que real-oficial para nos dizer isso.
Entendendo estes fatos é que me considero uma Preta Nagô de sorte, pois, sou neta de José Francisco Mota de Assis e sobrinha-neta de Maria José Mota, mas quem seriam José e Maria José, para além de meu avô e minha tia-avó? Basicamente, eles são o fio condutor que pode demonstrar para nós a força que a ancestralidade negro diaspórica teve e tem no Brasil. Eles são a representação material e subjetiva do empenho e da competência revertida em eficácia e pertencimento para uma comunidade negra rural e para uma família inteira, os Mota e Assis.
Mas por que necessariamente eles ocupariam esses lugares? Eles estão posicionados no topo da pirâmide daquilo que chamo de prestigio ancestral, pois, pertence a eles a chave de manter a tradição/devoção e obrigação ao Culto de Santa Barbara (Iansã) que acontece todos os anos no povoado de Aguada, no município de Carmópolis, no Estado de Sergipe, nordeste do Brasil há exatamente 130 anos.
Esta festa/culto que leva o nome de Festa de Santa Barbara e Samba de Aboio (são dois nomes porque podemos considerar que são duas festas), acontece única e exclusivamente no final de semana da Páscoa mobilizando não só as famílias Mota e Assis, mas toda a comunidade de Aguada e os povoados circunvizinhos. Durante a celebração, as pessoas pagam promessas, ofertam presentes em devoção e agradecimento, e especialmente, dançam e celebram em devoção a Santa Barbara (Iansã) e a libertação dos escravos.
Talvez agora, o leitor perceba a minha necessidade de montar um cenário introdutório para explicar porque as famílias e os povos pretos foram protagonistas de diversos tipos de ações para a manutenção e preservação de qualquer vestígio que os ligasse com as suas origens.
Por que é uma festa nagô? Segundo os mais velhos – e aqui, a força da oralidade é vetor da memória e da pertença – apontam que a minha tataravó, chamada Maria da Soledade, africana escravizada chegada ao Brasil ainda na infância e saída do Porto de Luanda foi vendida para um Engenho de nome São João, situado no município de Japaratuba/Se.
Os mais velhos afirmam que se tratava de uma africana/angolana. Neste cenário, Maria da Soledade, ainda menina, encontrou na beira de um rio um corisco ou pedra caída do céu. Ela levou o Corisco para casa (senzala) e mostrou para a sua avó, que por ser uma senhora nagô, lhe explicou que aquele Corisco, na verdade, era Iansã e que a partir daquele momento seria necessário cultuar aquela Pedra/Artefato. Maria da Soledade junto com sua avó e depois com a família que vai constituir passou a celebrar anualmente a festa em Devoção e Obrigação a Iansã, Santa Barbara no “sincretismo” religioso. Em linhas muito breves, esse seria o lugar no qual a festa se origina.
Considero que nós somos muito habilidosos na sustentação e conservação dos nossos ritos devocionais a Santa Barbara (Iansã) e de alguma forma esta conservação se apresenta como um reflexo daquilo que foi/é vivido pelos povos pretos que constituem o Brasil, ou seja, mesmo partindo de um não-lugar na sociedade brasileira, os espaços de resistência, assim como é a festa de Santa Barbara e próprio espaço físico a ela destinado compõe um cenário de confronto para com todos os elementos racistas, segregacionistas, preconceituosos que circulam no cotidiano brasileiro.
Uma festa tal como a nossa completar 130 de existência sem interrupção é afirmar aos racistas que a nossa existência, a nossa fé, a nossa memória e nosso lugar são por excelência antirracista. É justamente por isso, que hoje eu posso sair de um lugar de memória de pertencimento negro-dispórica e ter um lugar. A gente sabe, caro leitor, que além de todas as outras expropriações, o lugar de pertença também nos foi negado, e eu, tive alguma sorte de, pelo menos, esse pertencimento afro-diaspórico ser real na minha trajetória, bem como, da nossa família Mota e Assis.
Este texto funciona assim, como mais um elemento da celebração da nossa festa que, neste ano, completa 130 anos. Este texto é veículo informativo para aquelas e aqueles que não têm acesso ou não conhecem as mil formas de/das resistências que os povos pretos afro-diaspóricos conseguiram empreender no Brasil nos mais diversos cantos. Este texto, é sobretudo, para demonstrar o meu orgulho em fazer/ser parte deste lugar e comungar com essas pessoas a possibilidade de uma trajetória menos dolorosa naquilo que toca ser preta e preto no Brasil. Eu sou hoje a sexta geração deste grande movimento de resistência ancestral, e que sorte a minha em poder me reconhecer como uma preta nagô.
*Yérsia é preta nagô, neta de Zé Paizinho, neta de uma Rendeira, filha de Professora, Ekédjí no Ilê Axé Omin Mafé. Doutoranda em Antropologia pela UFSC/NUER