Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – No centro da cidade do Rio de Janeiro, há um patrimônio da humanidade que guarda memórias de um dos períodos mais cruéis da história que liga o Brasil ao continente africano. Durante o Tráfico Transatlântico (séculos XVI até o XIX), cerca de 5 milhões de africanos escravizados foram trazidos para o Brasil. Entre os séculos XVIII e XIX, grande parte dos que chegavam sem vida, após a dolorosa travessia do Oceano Atlântico, era enterrada onde hoje está localizado o Instituto e Pesquisa de Memória Pretos Novos (IPN), local que pode fechar as portas por falta de verba.
-Aqui debaixo dos nossos pés, há corpos de bebês, jovens e adultos que foram capturados na África e trazidos para cá. Eles não suportaram os maus-tratos durante a viagem e foram enterrados aqui – contou, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, a diretora do IPN, Merced Guimarães, que, desde 1996, transforma o memorial em uma missão de vida.
Merced descobriu o sítio arqueológico em 8 de janeiro de 1996, mas só nove anos depois foi criado o instituto para estimular e promover a construção das memórias referentes à cultura africana e afro–brasileira. Merced, funcionários e amigos do IPN fazem isso por meio da formação e preservação do acervo, atividades culturais, cursos e reflexões sobre a história que liga Brasil e África.
Pretos Novos era o nome dado aos novos escravos que chegavam ao Rio de Janeiro pela região do porto e eram negociados no mercado de vendas, no Valongo. As ossadas, utensílios, argolas e colares encontrados são uma rica fonte de estudo que precisa ser preservada.
-Eu considero o Instituto Pretos Novos um portal entre o passado e o presente, entre o Brasil e a África. Quando a Merced encontra o sítio arqueológico, ela está abrindo uma porta para esse passado… Esse passado vem se presentificar trazendo a necessidade da compreensão de como a sociedade tratava os africanos, os afrodescedentes e os povos negros nessa perspectiva do mercado de escravos”, contou, em entrevista ao Por dentro da África, Blonsom Faria, antropólogo e pesquisador do IPN.
Para Blonsom, o meio acadêmico, em geral, considera o negro como partícipe da história só até 13 de maio de 1888 (data de assinatura da Lei Áurea); na condição de livre, ele é amealhado e suas necessidades continuam presentes ainda hoje. Para refletir e debater sobre todas essas questões tão imprescindíveis, o IPN tem um papel fundamental quando começa a implementar suas oficinas de história, sobretudo problematizando o papel do negro no pós-abolição. O instituto é hoje referência para formação dos professores, sobretudo para atender à lei 10.639/2003.
O IPN faz parte do circuito da herança africana no Rio de Janeiro e recebia via Cdurp, anualmente, uma verba da prefeitura de R$96 mil reais para manutenção de suas atividades. Com esse pequeno valor, os administradores fazem um verdadeiro milagre para manter exposições, realizar exibições de vídeo, cursos e ainda pagar diferentes profissionais.
Em março, a prefeitura não renovou o convênio e, agora, negocia uma nova forma de parceria para que esse memorial não feche suas portas. Por isso, Merced e amigos do IPN começaram a campanha IPN resiste. Pelas redes sociais, as pessoas mostram seu apoio à importância de manter o instituto em funcionamento.
-Até agora, o que está em conversa é a impressão de livretos do instituto, que são distribuídos gratuitamente, 8 mil reais emergenciais e o valor de 96mil para o custeio de 12 meses. Isso vai manter o espaço aberto, mas ainda precisamos de muita coisa… No ano passado, o museu recebeu mais de 15 mil pessoas. Com a revitalização da zona portuária, e a inauguração do VLT passando pela rua do IPN, a previsão é de aumentar esse número. O valor que recebemos é muito pouco para o tanto que fazemos e temos que fazer – ressaltou a diretora.
-Precisamos valorizar a memória da escravidão porque estamos em um país que sempre escondeu o que foi a escravidão… Aqui, sabemos o que não se deve mais fazer com a humanidade. Por isso não podemos aceitar esse descomprometimento do governo com um lugar que é único, sagrado para a nossa memória – destacou Merced.
Para conseguir esse irrisório custeio do governo, Merced também teve que aceitar outras condições da prefeitura, como o apoio à construção do Museu da Escravidão e Liberdade (MEL), uma obra da nova gestão.
-Para ter esse aporte, temos que, querendo ou não, estar vinculados a esse novo projeto da prefeitura, que pouco sabemos como será. Não tínhamos alternativa… O que recebemos não suporta as nossas necessidades – lembrou Blonsom.
Neste momento, a campanha “IPN Resiste”, incluindo núcleos internacionais, está unindo forças para que o instituto não encerre suas atividades.
-O IPN tem como premissa básica a gratuidade e qualidade se seus serviços; depois, a cobrança do dever de memória do Estado, até mesmo como uma forma de reparação para com esses africanos que aqui jazem.