Pele negra, sem máscaras brancas: A atualidade de Frantz Fanon

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Frantz Fanon – Divulgação

Por Marcos Augusto Ferreira, Por dentro da África 

Deivison Mendes Faustino é sociólogo, fez mestrado em Ciências da Saúde (Epidemiologia), mas retomou à sociologia, entusiasmado pelas reflexões de um dos mais importantes intelectuais do século 20. O interesse, além de uma tese de doutorado, resultou no livro Frantz Fanon – Um revolucionário particularmente negro, lançado no início de 2018 (Ciclo Contínuo Editorial).

“Venho de um movimento negro que era muito envolvido, também, com a militância teórica, havia reflexão sobre a atuação política. Fazíamos grupos de estudo e aí ‘conheci’ Fanon”, diz.

Naquela época, envolvido com o hip hop, ele se tornou Deivison Nkosi: “A gente lia Malcom X e não queria usar o nome do opressor – o sobrenome dos negros na América é o do senhor de escravos e não o das nossas famílias. A gente tinha essa percepção. O Paulo virou Mano Brown, o Genival virou Gog… Eu andava com o grupo Rotação, de Santo André, que depois virou Kilombagem, e todo mundo foi pesquisar nomes. Conheci um congolês e ele me sugeriu Nkosi. Explicou que era guerreiro, em quimbundo, mas que também existia no zulu e em várias línguas banto. Às vezes, significa tigre. Gostei. Depois, soube que no candomblé de Angola a divindade da guerra é Nkosi (no candomblé de iorubá é Ogum)”, conta.

Deivison Faustino durante entrevista – Por dentro da África

Professor adjunto e pesquisador do Núcleo Reflexos de Palmares e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp– Campus Baixada Santista), Deivison Faustino apresenta a trajetória multifacetada e complexa de Frantz Fanon: psiquiatra, filósofo, cientista social e militante anticolonial.

Nascido em 1925, em Fort-de-France, capital administrativa da Martinica, no Caribe, território sob a administração francesa, Fanon imaginava-se um cidadão francês, mas sofreu grande impacto quando se mudou para Paris e percebeu que na capital era ‘apenas’ um negro, pouco aceito como cidadão.

Mais tarde, no continente africano, integrou a Frente de Libertação Nacional da Argélia e se envolveu em movimentos anticoloniais. Esses conflitos estão no centro da formulação do pensamento de Fanon, presentes em suas reflexões, principalmente nas obras Pele Negra, Máscaras Brancas (1952) e Os Condenados da Terra (1961).

Nesta entrevista, concedida na sede do NEAB, em Santos, em julho deste ano, Deivison fala sobre colonialismo e a atualidade do pensamento de Frantz Fanon, que morreu em dezembro de 1961.

PDA – Em uma espécie de prefácio, você cita trecho de A Tempestade, de Shakespeare, parte de um diálogo entre Próspero e o escravo Calibã. Onde está o ponto de encontro entre Deivison, Frantz Fanon e Shakespeare?

DF- Interessante isso, porque Shakespeare é o autor que ajuda a parir a modernidade. Um autor que está num momento em que a Europa começa a perceber uma ideia de humanidade, o humano como sujeito de si. Ao mesmo tempo, é a época dos “descobrimentos”. Há pesquisadores que sugerem que o nome Calibã vem de Caribe ou de Caraíba, que é o primeiro local que os europeus chegam nas Américas. O dilema do Calibã é o dilema desse encontro da Europa com os não europeus, um encontro de estranhamento, pois o europeu não vê os outros povos como humanos.

Na sociedade moderna, quando se começa a discutir igualdade e liberdade, quando a razão começa a ser colocada como pressuposto para substituir a fé, no exato momento que a ideia de liberdade está posta, o europeu encontra o outro, para o qual liberdade e igualdade não valem. Calibã é a expressão do índio, do africano e de outros povos. Em ‘A Tempestade’, ele é o filho daquela terra e é subjugado. Aliás, a gente começa a contar a nossa história a partir da chegada do primeiro branco, sob a ótica do “descobrimento”, anulando outras humanidades que existiam aqui.

Shakespeare acaba revelando um dilema da modernidade: você tem uma percepção de sujeito da história, só que esse sujeito é branco e quando ele encontra o outro, não vê este outro como sujeito, mas apenas como objeto. Calibã vira escravo, as magias e os saberes são usados para subordinação dele, inclusive a língua. Na cultura ocidental, a língua, a fala, é muito importante. Quem tem o poder da fala na sociedade ocidental é o europeu, o branco. Para se comunicar, Calibã tem que aprender a língua do branco. Esse é o dilema da universidade: se você não cita um autor europeu, não é considerado, seu TCC está fora. Se você não domina os saberes da Europa, você não é considerado alguém culto. Aliás, a própria norma culta não é quem se comunica melhor, mas quem domina a escrita europeia.

PDA – Certamente, Shakespeare não tinha noção disso, mas onde entra o Fanon nessa relação?

DF – Shakespeare não tinha essa noção, mas uma coisa interessante da arte é que ela joga na nossa cara aquilo que somos. Ele acaba captando algo que só podemos entender agora porque naquela época isso não estava posto. É interessante porque leio muito Shakespeare e quando lia ‘A Tempestade’, acabava torcendo para o Próspero morrer, porque tudo sempre acaba em tragédia. Mas essa história não, você tem um desfecho que é muito interessante, se você pensar a arte como verossimilhança da vida, Shakespeare foi muito verossímil: se o desfecho fosse favorável ao Calibã, ele estaria vendendo algo irreal para a gente; na verdade, quem vence essa batalha é o Próspero, não o escravo. É um momento de subjugação do outro pelo europeu. O que a gente faz com isso? Fanon percebe essa relação de subordinação que está presente, inclusive, no conhecimento (‘a colonialidade do saber’), pois o conhecimento válido é o do europeu, os outros são desvalorizados. Agora, para sair disso, não basta apenas valorizar os saberes negados e ignorar os europeus.

PDA – O saber europeu é importante, o problema é a negação dos demais, é isso?

DF – Sim, mas no meu processo de contraposição a isso, preciso dos meus saberes e também me permitir apropriar dos outros saberes. Uma provocação que o Fanon faz é que talvez o saber não seja do europeu: só há a Europa porque tem África, Ásia… O dilema do Fanon é que a saída não está na rejeição do saber europeu, embora ele rejeite o nosso. A saída está em descolonizar esse saber, perceber que não é total, não responde a tudo. Isso é importante para Fanon porque você está numa época em que há um movimento de negritude que percebe a negação dos saberes negros e que pensa em contrapor isso valorizando os saberes negros na contraposição aos saberes brancos. Fanon diz: é importante valorizar o que foi desvalorizado, mas não basta, é necessário descolonizar a forma de pensar e isso implica, inclusive, desracializar aquilo que o europeu chamou de europeu. Se a gente pensar a dialética: ela não é do Platão, não é grega, é humana. Para formular a dialética, Platão precisou se apropriar de um saber que está no Egito, na Pérsia, na Mesopotâmia… Então, quando o europeu diz que a universalidade é europeia, a nossa tarefa é desracializar essa noção e não rejeitar.

PDA – Você fala em descolonizar uma forma de pensamento para que outras formas de pensar sejam valorizadas e não se crie um saber hegemônico. De qualquer maneira, está falando da razão, razão que ao longo de séculos é posta como superior à emoção e serve, inclusive, para justificar a colonização, a superioridade do europeu sobre o africano, por exemplo.

DF – Essa é uma contribuição muito interessante do Fanon e pouco compreendida. Em primeiro lugar, o colonialismo pressupõe a negação da humanidade do colonizado, seja o indígena, o negro, o árabe, o chinês… Só que essa negação tem dois lados. De um lado, toma os saberes europeus como universais. Para Fanon, todos os povos têm na sua cultura razão e emoção, têm técnicas, saberes, e também arte, religião, crenças, medos… elementos que são humanos.

O colonialismo racializa essa dimensão humana e deixa de percebê-la nos colonizados. Se a gente pensar na história do Ocidente, desde o Renascimento, passando pelo Iluminismo, por exemplo, são momentos importantes, os europeus estão pensando o que é o ser humano. E eles oferecem grandes contribuições para a humanidade ao fazerem perguntas que não haviam sido feitas, por exemplo: pensar a razão como ideia de um pressuposto humano. Só que o primeiro problema que o Fanon coloca é que, devido à história da Europa, à medida que o europeu formula a pergunta (O que é o humano?), vê apenas um pedaço do humano na humanidade. Percebe como humano apenas a razão. Mas temos sentimentos, impulsos, virilidade, corpo…

Só que a Europa – e isso vem desde a Grécia, passa pela Idade Média e chega ao Renascimento intocado – tende a separar razão e emoção, corpo e alma, espírito e carne, sensível e inteligível. Essa separação chega ao ponto de, no Iluminismo, apenas um pedaço dela ser entendido como expressão humana. O corpo vira algo da natureza e a razão aquilo que é da humanidade. A humanidade é razão. Só que há um problema, porque a gente continua a ter corpo, desejos, impulsos, subconsciente. Você separa na teoria, mas não na prática.

Esse é o primeiro problema: a separação é fictícia. O segundo é que, ao dizer o que é o ser humano, o europeu só consegue falar de si próprio, uma visão narcisista, só consegue ver a ele próprio como humano. A razão passa a ser a expressão humana, mas essa humanidade está apenas na Europa. Para Hegel, por exemplo, a Europa é a expressão mais avançada da razão. Fanon vai dizer: isso não procede. Mas por que é possível essa formulação? Porque o europeu está vivendo o momento do colonialismo, todo esse desenvolvimento, desde o século 16, se dá sob o colonialismo. O desenvolvimento da razão europeia, da modernidade, a própria ideia das luzes, se desenvolve ao mesmo tempo em que a Europa está dominando o resto do mundo. Não pode reconhecer a humanidade no outro.

PDA – A ‘coisificação’ do outro para justificar a dominação. Fanon aborda muito a questão da ‘coisificação’ do negro, não é?

DF – Quando eu penso o ser humano, o negro não está, mas quando eu penso o negro, ele não é visto como humano, no máximo, é corpo. Para Fanon, há outro problema: se o europeu só vê a si próprio como razão e quando vê o negro é só como emoção, então a ideia de humanidade está sendo alienada, rasgada pelo colonialismo, pois humanidade é razão e emoção, juntos.

Quando o europeu identifica saberes dos negros, esses serão sempre associados ao corpo. Interessante, porque eu dou aula de História da África e quando pergunto sobre palavras associadas ao continente, até mesmo professores e militantes só conseguem dizer termos relacionados ao corpo: a negra é quente, o negro é forte, negro tem ginga, dança bem, tem ritmo etc. O que o Fanon está denunciando é que, mesmo que a divisão seja permeada por uma valorização do corpo, não se resolve o problema, pois o negro ainda é visto apenas como uma coisa presa ao corpo.

Outro problema é com o próprio branco. Fanon vai dizer que esse sistema beneficia, mas também aliena o branco da sua própria humanidade, pois ele deixa de se perceber como corpo: ele se percebe apenas como razão, tem uma percepção muito raquítica do corpo. Tanto que Heidegger (Martin Heidegger, filósofo alemão) vai dizer que a língua perfeita para a filosofia é o germânico, não consegue sequer pensar outras línguas europeias em que a filosofia fosse possível. Mas essa ideia vai perpassar todos os campos: você pensa em cientistas brancos, relaciona a tecnologia aos brancos etc. Fanon vai denunciar que é o oposto, não é possível só um lado.

Quando vejo a história da África, há um alto desenvolvimento das forças produtivas, mas que não é reconhecido. Se a gente pensar o Egito, quando não se pode negar a participação do Egito na história Ocidental, nega-se a negritude dos egípcios, como se não vivessem na África. No caso de outras civilizações africanas, quando não se pode esconder que essas civilizações têm desenvolvimento tecnológico ou técnico fantásticos, nega-se a humanidade dos feitos. Erich von Däniken escreve ´Eram os Deuses Astronautas?` e a pergunta que ele faz no meio do livro é: como podem povos tão atrasados desenvolverem tecnologias tão avançadas como as pirâmides? E a resposta é: não podem, só pode ser obra de ET. É a impossibilidade do africano ter desenvolvido tecnologia.

PDA – Devolvo a você duas perguntas que são títulos de capítulos do seu livro: Por que Fanon, por que agora? Há espaço para o Fanon no século 21?

DF – São perguntas provocativas, porque Fanon nasceu em 1925, mas escreveu o primeiro livro em 1952 e morreu em 1961, bem novo, aos 36 anos. Mas a obra dele circulou pouco. A partir da década de 1960, a obra dele passou a circular mais porque Sartre (Jean-Paul Sartre, filósofo francês) escreve o prefácio de ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’. Porém, tenho a impressão de que o prefácio circulou mais do que o próprio livro. Identifiquei muitos autores que, ao comentarem o Fanon, estão, na verdade, comentando o prefácio do Sartre. Apesar disso, Fanon vai influenciar muitos autores nas décadas de 60 e 70; depois, cai no esquecimento. Volta a ser lido no final do século 20, 1990, na Inglaterra, pelos estudos pós-coloniais ingleses e, principalmente, por pessoas que estão pensando a psicanálise e os estudos culturais britânicos. A primeira pergunta é provocativa, para pensarmos porque ele foi tão pouco estudado e agora se torna um autor que, apesar de ainda não ser sistematicamente estudado nas universidades, passa a despertar interesses.

Archivo del diario Clarín. Fotografía publicada en 1983 en la revista dominical del periodico ilustrando un artículo sobre el poeta, en Buenos Aires, Argentina

PDA – Qual sua impressão sobre isso?

DF – É que ainda há um colonialismo sobre o Fanon no Brasil. Para você ter uma ideia, ele influenciou importantes autores brasileiros, como Paulo Freire, Florestan Fernandes, Glauber Rocha, Octávio Ianni. Mas o meu livro é o primeiro sobre Frantz Fanon, no país. Então, há um tempo de produção, sem sistematização. Mas ele começa a entrar nas universidades. Desde 1990, graças aos estudos pós-coloniais britânicos, Fanon volta para a academia. E na academia brasileira, se você não publica seu artigo em inglês, se não faz um doutorado sanduíche nos Estados Unidos, Inglaterra ou França, você está fora. Sua pesquisa pode ser sobre a Bolívia, não importa, você tem que ir para a França, por exemplo. Tem uma visão colonialista no conhecimento que marca a produção. Minha impressão é de que ele volta a ser lido na academia brasileira por conta da leitura lá fora. Há um dedinho colonial nessa difusão.

PDA – E existe espaço para o Fanon no século 21?

DF – Quando a gente começa a se debruçar sobre o autor descobre que há muita contribuição para pensar os dilemas da nossa época, tanto no Brasil quanto no exterior. Quando a gente pensa, por exemplo, o quanto um certo nacionalismo do século 20 vai se distanciar de uma ideia de humanismo, como nos movimentos de libertação, para se converter em um nacionalismo absolutista. Um exemplo é o Daeshi (Estado Islâmico), um nacionalismo que pensa a sua diferença como absoluta, combatendo inclusive outros grupos muçulmanos que discordam da sua interpretação. E o Fanon alerta para isso lá nos anos 1960, quando está olhando para os movimentos de libertação no continente africano. Ele está vendo que existem diferenças de culturas, de perspectivas políticas, existe um inimigo comum, mas alerta para a necessidade de valorizar aquilo que foi negado, valorizar as diferenças que foram desprezadas pelo eurocentrismo. Ao mesmo tempo, Fanon diz que, se esse apego à diferença não for acompanhado de uma percepção de que a diferença não se encerra em si, a tendência é de que os dominados comecem a disputar entre si quais são os termos da legitimidade da luta. Aí, a gente se mata, sem combater o inimigo.

Bote com migrantes saindo da costa da Líbia – Foto de ACNUR

PDA – Com base na visão do Fanon sobre a valorização das diferenças que foram desprezadas, como você analisa a onda de resistência e restrições aos imigrantes?

DF – Os fluxos migratórios sempre existiram na história da humanidade, os próprios europeus são migrantes, dentro e fora do continente. A história do Brasil, e dos países das Américas em geral, está recheada de migrantes europeus. Por isso, é estranho um país como os Estados Unidos adotar restrições à imigração, sendo que o país foi feito a partir do trabalho de imigrantes, tanto do trabalho escravo quanto de países como a Inglaterra. Porém, quando a gente pensa na Europa, há uma questão objetiva que é o fato de a colonização europeia ter destruído os países africanos. Walter Rodney, no livro ‘Como a Europa subdesenvolveu a África’, mostra o quanto foi custoso para os países africanos os vários séculos de colonização. Mesmo depois da descolonização, o neocolonialismo implicou numa sangria dos recursos naturais, organização da produção que impedia a autonomia das riquezas, impedia que o capital excedente circulasse internamente. Tudo isso provocou pobrezas extremas, sem contar as várias guerras influenciadas por fatores externos, como a ganância dos países europeus pelos recursos naturais, e por conflitos internos.

Há vários motivos que levam os povos a se deslocarem, mas no caso do continente africano, a Europa tem muita responsabilidade nesse deslocamento forçado… Forçado por condições econômicas desfavoráveis, guerras, conflitos variáveis e pelo sonho de viver melhor, estar em um lugar onde a força de trabalho não seja tão desvalorizada. Seria um erro olhar a migração apenas em razão de fatores subjetivos, achar que é apenas a propaganda que coloca a Europa como um espaço mais desenvolvido. A Europa aparece, sim, como um sonho de vida melhor. Assim como os Estados Unidos e até mesmo países dentro do próprio continente africano, mas você tem condições econômicas que forçam as pessoas a se deslocarem.

Interessante é que o racismo, que muitos pensavam estar dissolvido pela globalização, ganha novas roupagens como instrumento de controle desses fluxos migratórios. No Brasil, por exemplo, na época em que a Espanha estava em crise, recebemos muitos imigrantes espanhóis, ninguém viu isso como problema. Quando começaram a chegar imigrantes haitianos, na mesma época, as pessoas começaram a falar em problemas com a imigração. A mesma coisa acontece na Europa, mas não é tratada como problema. O problema surge quando os imigrantes vêm de países africanos, asiáticos, países do chamado terceiro mundo. O racismo é utilizado como instrumento de controle desses fluxos, inclusive como instrumento de gestão de quem vive e quem morre. A depender de como a fronteira está estruturada, você tem espaços que podem matar as pessoas. Muitos morrem na travessia do Mediterrâneo, na travessia do México para os Estados Unidos. Há os que morrem depois que entram.

Na França, por exemplo, os imigrantes ilegais, sem documentos, recebem muito menos do que os outros trabalhadores. O racismo é um instrumento muito eficaz do capitalismo e um instrumento que tem sido muito utilizado na Europa. Isso explica, inclusive, o renascimento do nazismo. Vários países têm apostado em candidatos de extrema direita como saída para resolver suas crises internas e o imigrante aparece como bode expiatório, assim como os judeus foram na Alemanha. Bode expiatório das desigualdades sociais provocadas pelo capital. Acho que isso faz a gente pensar que, na maior parte do mundo, não existe xenofobia, o que há é racismo, porque, dependendo do país de onde você vem, será muito bem tratado.

PDA – O próprio Fanon sofre grande impacto quando sai da Martinica, território francês, onde se imaginava um francês, e vai para a capital. Em Paris, ele é um negro pouco visto como francês. Mais tarde, na Argélia, também não se reconhece entre os negros da maneira como esperava ou conforme suas reflexões. Qual a contribuição desses conflitos para a obra do Fanon, principalmente ‘Pele Negra, Máscara Branca’?

É algo central, mas é, digamos, o capítulo 1 da preocupação do Fanon. Enquanto ponto de partida, é central porque se eu estou num mundo em que o critério de humanidade e universalidade é branco, a única possibilidade que eu tenho de me ‘humanizar’ ou ser reconhecido como humano é o ‘embranquecimento’. É vestindo as máscaras brancas. A metáfora que dá título ao livro é o dilema do negro na sociedade moderna. Sou professor, pesquisador, estudo muito Fanon, mas se eu não citar Marx, Foucault, Derida etc., não serei considerado intelectual. Eu preciso vestir essa máscara branca, porque na sociedade colonial o branco é o critério de bom, belo e verdadeiro.

Esse é o dilema do livro ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’. A outra parte disso é que aquele que não é branco tem sua humanidade questionada o tempo todo. O livro vai desenrolando o quanto isso traz sofrimento, inclusive, adoecimento psíquico, porque o tempo todo essa humanidade é posta à prova. Então, não consigo vivenciar meus conflitos humanos de forma plena, porque o tempo inteiro eu sou fixado numa imagem que foi criada sobre mim. O negro que as pessoas veem é um conjunto de abstrações coloniais. Até eu conseguir dizer quem eu sou, posso ser morto, se esse encontro for com a polícia, na madrugada, por exemplo.

PDA – Aí, voltamos à questão do branco como critério de humanidade.

DF – Sim, essa é a questão primeira do debate. Mas tem a parte dois, à qual o Fanon dá muito valor e é importante para a gente entender o pensamento dele: o que a gente faz com isso? A gente precisa se apegar a essa identidade negada, para contrapor as falsas verdades do colonialismo.

PDA – Arrancar as máscaras brancas?

DF – Isso. Mas aí há um dilema: quando eu tiro a máscara branca, o que tenho por trás dela? Essa é uma pergunta que o Fanon faz. Para ele – e isso é uma coisa delicada no pensamento dele –, é o branco que cria o negro. Antes do colonialismo não existia nem branco nem negro. Então, tirar a máscara branca implica abraçar minha negritude, defender com todas as forças minha negritude, me engajar num projeto contra as falsas verdades brancas. Mas esse processo de engajamento não pode perder de vista que eu não me encerro em mim, a negritude não diz tudo sobre minha humanidade. A minha humanidade está na relação inclusive com a Europa, e para além. Agora, essa relação não pode ser colonial. Humanidade pressupõe me permitir exercer minha identidade para além desse rótulo que o branco criou. Quando o europeu chega na África, ele não encontra o negro. Encontra suaílis, kikongos, kikuiu etc.; são vários povos. É o branco quem vai dizer que são negros, ele fixa essa ideia, generaliza, coisifica.

PDA – E compõe imagens distorcidas, também.

DF – Perfeito. Como saio disso? Preciso me apegar às minhas identidades e valorizá-las, mas preciso perceber que, do ponto de vista do Fanon, elas não são ontológicas, não são toda a verdade. Ao lado dessa solidariedade negra, é necessário reconhecer que existem diferenças entre os negros: não existe uma África e, sim, várias. Do outro lado, é preciso perceber que o negro não se encerra no negro. Aquilo que o branco diz que é negro é apenas um pedaço do que ele entende por humanidade. Existe coisa que não é do branco, é da humanidade, que o próprio branco só conseguiu formular no contato comigo, mas ele diz que é dele. Se eu ficar só do lado da rebeldia – agora, só vou me relacionar com quem é negro –, estou deixando para o branco parte da minha humanidade.

PDA – Esse entendimento está amadurecido no movimento negro?

DF – A minha percepção é que não. A gente está se batendo e se debatendo entre um primeiro momento, que é assumir o branco como critério, e o momento em que se percebe a mentira e fica na recusa de tudo o que é branco. Se fosse pensar dialeticamente, Fanon está dizendo: legal, passa por aí, mas a gente precisa dar um terceiro passo.

Achille Mbembe – Foto de humanite.fr

PDA – De que maneira o momento político, em que o debate foi substituído por xingamentos, preconceitos e segregações, contribui (ou atrapalha) esse terceiro passo?

DF – O momento que a gente está – e não é só o movimento negro –, o momento sócio econômico, político, talvez espiritual, não leva para esse terceiro momento fanoniano. Tanto que o Achille Mbembe (filósofo camaronês) escreve um artigo em que afirma que a era do humanismo acabou. Se a gente pensar como Fanon, é uma reflexão que serve tanto para o colonizador quanto para o colonizado. O humanismo tem uma miragem, porque ele abstrai a Europa como expressão universal, mas ele ainda tem uma ideia de universalidade, que é diferente do racismo científico, que abole.

Quando o Mbembe faz a afirmação, ele está dizendo que a ideia de me perceber como parte do outro acabou. Ele está olhando para os partidos nazistas na Europa, que voltam a ganhar eleição, o crescimento de cada vez mais barreiras para a imigração, está olhando para processos de violência que ele chama de ´rebalcanização` do mundo. Só que o Fanon vai dizer que essa perda do humanismo também está no colonizado, porque você tem o surgimento de vários movimentos em torno da identidade, seja identidade de gênero, religiosa, nacional ou racial, mas que também não têm uma ideia humanista desta afirmação de identidade. Há uma ideia que pensa aquele pedaço como um todo. O resultado disso é o embate.

PDA – Você está dizendo que esses grupos e movimentos de diferentes formas de afirmação da sua identidade se comportam como ´colonizadores` uns dos outros? Uma espécie de vale tudo, desde que o que valha seja o meu pensamento, é isso?

DF – Sim. E isso tem consequências muito interessantes do ponto de vista sociológico, mas trágico do ponto de vista político. Se o que vale é o meu pedaço e afirmar o meu pedaço não implica em reconhecer o outro, mas o embate, tudo o que não é meu passa a ser algo que precisa ser combatido. Só que, na medida em que existem diferenças em cada um de nós, o segundo momento é a luta interna entre os que compõem esse mesmo grupo. Você tem uma tendência de fragmentação infinita dos grupos. Nenhum slogan é suficiente para abarcar as diversidades internas, então, há rachas e disputas infinitas, cada vez mais atomizadas de identidades: o movimento negro, o movimento de mulheres, o movimento de mulheres negras, os movimentos de orientação sexual, enfim, são vários.

PDA – Mas essa fragmentação não representa, também, uma conquista, à medida em que dá visibilidade para lutas que garantem direitos e espaço a pessoas antes ´invisíveis`?

DF – Correto, esse é um dado positivo dessa fragmentação: a visibilidade da diferença que, às vezes, estava massacrada por uma falsa hegemonia, falsa unidade. Entretanto, o Fanon vai dizer que a ausência desse humanismo – ele não está se referindo ao humanismo europeu –, a ausência de uma ideia de que a diferença existe para além de si faz com que o caminho da fragmentação não tenha volta. Ela pode causar certa fragilidade política, quando esses vários movimentos não se unem em torno de uma luta. Por outro lado, é preciso ter cuidado para não propor uma certa unidade que cegue as diferenças, novamente. Aliás, as diferenças eram invisíveis. A esquerda, por exemplo, não pensava a questão racial; o feminismo não abordava a questão das mulheres negras… A crítica a essa fragmentação não pode ser um clamor ao retorno da invisibilidade. O Fanon diz que a unidade só faz sentido se ela reconhece as diferenças, mas é preciso compreender que as diferenças não se encerram em si. Fanon é muito rico para a gente pensar as articulações, num momento em que a fragmentação virou a regra.

PDA – No texto que o Achille Mbembe escreve sobre o Fanon e sua universalidade, trata do “refluxo das perspectivas revolucionárias” e cita que a nova questão social é o reconhecimento das “identidades lesadas”. Você pode explicar essas colocações?

DF – Na minha tese de doutorado, fui estudar os vários ´fanonismos` e, de fato, o que eu encontrei comprova o que o Achille está dizendo. Ou seja, diferentes autores vão ler o Fanon, mas cada um vai pegar o pedaço que lhe convém. Os leitores do Fanon nas décadas de 1960-70 estavam lendo ´Os Condenados da Terra`, pensando na práxis revolucionária. Mas não estavam muito preocupados com as máscaras brancas nem com as negras. A identidade aparecia como algo dado e a descolonização seria como evidenciar o verdadeiro negro. Na década de 70, ´Os Condenados da Terra` é conhecido como o livro de bolso dos black panthers.

Nas décadas de 1980-90, na Inglaterra, por exemplo, surge o pensamento pós-colonial, que é herdeiro dos movimentos anteriores, mas é pós-estruturalista. Do ponto de vista teórico e filosófico, ele abre mão de uma ideia de essência. Portanto, vai buscar no Fanon não a ideia da práxis: os pensadores ingleses pós-colonialistas se aproximam do Foucault, do Derida, que não pensam mais a classe como questão, mas a identidade, e este pensamento vai reconhecer pontos até então invisíveis no Fanon, como a questão da subjetividade, a identificação como movimento no tempo e não algo fixo, por exemplo.

Reflexões que já estavam no Fanon, mas não eram vistas. Ao mesmo tempo, ao fazerem isso, eles abrem mão da ideia de práxis, revolução, porque consideram termos ultrapassados. Onde vão achar elementos para isso? No ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’. Se antes o Fanon era visto com autor da revolução, para o pensamento pós-colonial, ele vai ser o autor que questiona a ideia de revolução. É interessante como, dependendo do intérprete que você lê, você vai ter distintos ´Fanons`. As leituras são distintas e o Mbembe está correto no seu diagnóstico. O que é interessante pensar é: por que há essas diferenças? Aí o Mbembe não tem o compromisso de responder. Talvez ela esteja relacionada, por exemplo, à queda do Muro de Berlim. Depois da década de 1990, a ideia de socialismo e revolução sai de cena, deixa de estar na ordem do dia, e você tem um desvio das várias esquerdas para as questões micro: seja a questão da identidade, da ideia de reforma econômica, de pensar arranjos de humanização do capitalismo, etc. Para além da questão racial, do debate sobre o negro, você tem mudanças na forma de pensar política que, a partir da década de 90 vão influenciar também em qual trecho do pensamento do Fanon vai ser retomado.