Para juiz, candomblé e umbanda não são religiões. Posição da Justiça provoca debates

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Foto: Alliance – ADA

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Na semana passada, a decisão do juiz Eugênio Rosa de Araújo, do Rio de Janeiro, acendeu o debate sobre o desconhecimento em relação às religiões de matrizes africanas. Diante de uma denúncia enviada ao Ministério Público, ele escreveu em seu parecer que a umbanda e o candomblé não poderiam ser consideradas religiões. Por dentro da África conversou com o autor da denúncia, o advogado Márcio de Jagun, que selecionou 17 vídeos intolerantes veiculados no Youtube e, em fevereiro, redigiu uma denúncia formal ao Ministério Público (MP) solicitando a retirada imediata dos vídeos.

Márcio explica que o órgão acatou a denúncia e intimou o Google (administrador do Youtube) a retirar os vídeos em 48hs. Como o Google relutou, alegando que não tinha responsabilidade sobre o conteúdo das mensagens, o Procurador ajuizou ação perante a Justiça Federal do Rio.

Márcio de Jagun – Foto: Ori

– A ação caiu na 17ª Vara Federal, e o juiz (Eugênio Rosa de Araújo) indeferiu o pedido de liminar para retirada imediata dos vídeos, alegando que os mesmos seriam de mau gosto, mas que não feriam a nenhum credo. E pior: que as religiões de matrizes africanas nem ao menos poderiam ser consideradas religiões, pois não possuíam um livro sagrado e nem um Deus a ser adorado – contou indignado em entrevista ao Por dentro da África.

Atualmente, há centenas de vídeos com o mesmo teor, mas na denúncia encaminhada ao MP, Márcio conta que selecionou apenas 17 com o intuito de chamar a atenção para a atitude de propagação de ódio. Segundo ele, cerca de 95% são produzidos por evangélicos e o resto por humoristas.

– Como a ação foi interposta pelo MP, só esse Órgão pode recorrer. E já recorreu! Rapidamente. À Anma (Associação Nacional de Mídia Afro), coube a divulgação do fato e  agora, a mobilização política. A posição do juiz é um exemplo típico de desconhecimento. Porque se ele ao menos respeitasse, não teria escrito aquela decisão – destacou o praticante do candomblé. Veja abaixo um trecho do documento na íntegra:

“No caso, ambas manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião a saber, um texto base (corão, bíblia etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado.

Não se vai entrar , neste momento, no pantanoso campo do que venha a ser religião, apenas, para ao exame da tutela, não se apresenta malferimento de um sistema de fé. As manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões, muito menos os vídeos contidos no Google refletem um sistema de crença – são de mau gosto, mas são manifestações de livre expressão de opinião.

Quanto ao aspecto do direito fundamental de reunião, os vídeos e bem como os cultos afro-brasileiros, não compõem uma vedação à continuidade da existência de reuniões de macumba, umbanda, candomblé ou quimbanda.”

Veja também: Ministério Público determina que Youtube exclua vídeos contra religiões afro

Desconhecimento, ignorância e intolerância

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Foto: Wikidance

Ao tratar a religião, o sociólogo francês Émile Durkheim (1958/1917) tenta estabelecer em seu trabalho que ela não supõe necessariamente a crença num Deus transcendente. Ela é, antes de tudo, um “sistema de crenças e de práticas”. É um conjunto de práticas e representações que está presente tanto nas sociedades modernas quanto nas sociedades primitivas.

Em “As Formas Elementares da Vida Religiosa” o autor faz uma análise das religiões primitivas australianas, explicando que são nas religiões mais simples onde é possível encontrar elementos comuns de todas as religiões, até mesmo nas mais atuais.

– As religiões de matrizes africanas são baseadas na tradição oral. Portanto, não têm e nunca terão livro sagrado. Não por primitivismo, mas por filosofia. Não é necessário convencer o juiz acerca disso. É preciso que ele compreenda esta realidade cultural que abarca grande parte da sociedade brasileira –  explicou Márcio, que apresenta o programa Ori, dedicado ao universo das religiões de matrizes africanas

De acordo com Durkheim, a religião é fruto da ação social, produto da sociedade, e que a mesma “exprime realidades coletivas”. Ele via a religião como portadora de uma função integradora, capaz de manter a solidariedade social. Para ele, rituais, cerimônias e fé são elementos comuns e imutáveis que estão presentes em todas as religiões.

Na introdução de sua obra, o autor diz “No fundo, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras do seu modo: todas correspondem, ainda que de maneiras diferentes, às condições dadas da existência humana. Todas são igualmente religiões, como todos os seres vivos são igualmente vivos, dos mais humildes plastídios ao homem.”

Denúncias

Mas a ideia de Durkheim não reverbera em muitos contextos da contemporaneidade e principalmente no Brasil,  quando a manifestação religiosa em questão é a de matriz africana.

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Mãe Gilda – Foto: Divulgação

Em 2007, foi instituído, em 21 de janeiro, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa pela Lei 11.635. A data foi uma homenagem à Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé ­Abassá de Ogum, de Salvador. Em 2000, ela teve um enfarte após ver sua foto no jornal ­evangélico Folha Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.

Luiza Bairros, ministra da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) afirmou, durante a última comemoração do 21 de janeiro,  que os ataques a religiões de matrizes africanas alcançaram um nível insuportável. “O pior são agressões físicas, ameaças de depredação de casas e comunidades. Não se trata apenas de uma ­disputa religiosa, mas por valores civilizatórios”.

Segundo dados do Seppir, a quantidade de denúncias de intolerância religiosa (não apenas pelos praticantes de candomblé ou umbanda) recebidas pelo Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República cresceu mais de sete vezes em 2012 em relação a 2011, um aumento de 626%.

Foto: ORI

Para Márcio, que também é diretor da ANMA (Associação Nacional de Mídia Afro), a melhor maneira de combater a “perseguição” aos praticantes da religião é com educação e punição. O esclarecimento, a ruptura dos estereótipos e a tolerância em compreender e aceitar o outro formam um conjunto capaz de desmitificar o candomblé e umbanda em uma sociedade de tantos preconceitos.

– Só desta forma, o problema pode ser tratado em suas duas pontas. A implementação da Lei 10.639/03 é a medida educativa necessária para o esclarecimento e a criação de uma delegacia especializada para crimes de preconceito e intolerância religiosa, funciona como punição.

Histórico de perseguição no Brasil

Apenas na primeira Constituição Republicana Brasileira de 1891 que foi abolida a regra da religião oficial, separando, desta forma, o Estado da Igreja Católica. Apesar da medida, vale destacar que até 1976 (há 38 anos), havia uma lei na Bahia que obrigava os templos das religiões de origem africana a se cadastrarem na delegacia de polícia. Por meio do Decreto-lei 25.095, de 15 de janeiro de 1976, houve a garantia da liberdade religiosa aos seguidores dos cultos no estado conhecido por ser a capital negra fora da África.

Apenas em 1988, a Constituição federal passou a garantir o tratamento igualitário independentemente de suas crenças. O texto constitucional estabelece que a liberdade de crença é inviolável, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos. O art. 5º, IV, estabelece que “é livre a manifestação do pensamento” e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Desta forma, destaca-se a liberdade de crença, que inclui o direito de professar ou não uma religião, de acreditar ou não na existência de um ou diversos deuses.

Foto: ORI

O parágrafo I da Lei 9.459, de 1997, destaca que “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”. A lei considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões, ou seja, é proibido discriminar em razão da religião. O crime é considerado inafiançável (o acusado não pode pagar fiança para responder em liberdade) e imprescritível (o acusado pode ser punido a qualquer tempo).

Em junho de 2009, as primeiras prisões no país por crime de intolerância religiosa ganharam destaque no Rio de Janeiro. Afonso Henrique Alves Lobato, de 26 anos, e Tupirani da Hora Lores, de 43, da Igreja Geração Jesus Cristo, foram presos pelos crimes de intolerância religiosa, injúria qualificada e incitação ao crime.

Para Márcio, essa perseguição sempre existiu. É possível encontrar relatos em jornais do final do século passado e nas primeiras décadas dos anos 1900 que documentam isso.

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Foto: Wikidança

– É indiscutível que a perseguição religiosa tem aumentado à medida em que maus religiosos pentecostais fazem disso um objetivo: “diabolizar” para converter. Mas a melhor estratégia para combater é com a cultura: pintura, escultura, música, teatro, TV, cinema… – enumerou Márcio.

Na próxima quarta-feira, associações de Brasília, Salvador e Rio de Janeiro planejam protestos contra a decisão do magistrado, que repercutiu em todo o país. No Rio de Janeiro,  por exemplo, haverá o “Ato em Solidariedade às Religiões de Matriz Africana”, às 17h, na Associação Brasileira de Imprensa, no centro da cidade.

Em casos de discriminação religiosa, a vítima deve ligar para a Central de Denúncias (Disque 100) da Secretaria de Direitos Humanos e também deve procurar uma delegacia de policia para fazer a ocorrência.

Por dentro da África