Por dentro da África, Rodrigo Arreyes
O planeta das “negritas de 25 de mayo”: meninas brancas pintadas de negro, em tradicional comemoração argentina
Buenos Aires – Moro na Argentina não sei faz quanto tempo no total, mas, da última vez que cheguei do Brasil, eu tinha uns treze anos. Antes, eu morava na zona norte de São Paulo e minha última casa foi no Jaçanã. Chegamos aqui com minha mãe e meus irmãos antes da crise do ano 2001, tempo em que passei a minha adolescência. Tive sorte de pular a escola primária argentina, com exceção de alguns anos que foram para mim bem intensos, por ser um quase brasileiro recém-chegado, carne fresca para o racismo e a xenofobia dos meus coleguinhas; hoje, nenhum deles é meu amigo.
Para termos uma ideia desse cenário, nos anos 90, auge do neoliberalismo, o presidente Carlos Saúl Menem jogou esta frase na Universidad Howard, dos Estados Unidos: “Na Argentina não tem negros, isso é um problema do Brasil”.
Argentina é um país predominantemente formado por planícies, onde os produtores agrícolas, muitos deles parentes dos genocidas que lideraram as campanhas militares contra as povoações indígenas, produzem o alimento para toda a nação. O emblema dessa cultura produtiva é a vaca e o gaúcho, representado no grande poema argentino Martín Fierro – que, no final do primeiro livro, mata um negro.
Na Argentina, o pessoal diz “negro de mierda” como diz “mamãe eu te amo” ou “Deus me livre”. Não exagero. Mesmo na frente de um negro, que abaixa a cabeça, a teoria de que os negros são o problema da Argentina tempera as relações sociais. Para os argentinos, esses negros sempre chegam de fora para roubar, estuprar ou viver do dinheiro do governo.
Mas cadê o negro africano nessa história? Como em outras nações da América, o afro-americano na Argentina chegou a representar a metade da população em diversas províncias. Isso pode ser lido, por exemplo, em romances como Amalia, de José Mármol, onde eles são os responsáveis por cometer os piores crimes contra os brancos, ao colaborarem com Rosas.
Isto, na época em que o negro mais participou da vida política portenha, pelo que a ofensa que sentiram os oligarcas foi maior do que nunca. Esse romance, cânone nacional, é uma verdadeira declaração de guerra contra os negros e uma jura de amor eterna pela Europa. Nesse momento, os negros representavam 30% da população em Buenos Aires.
Se você é negro e viajou alguma vez para a Argentina, sabe do que estou falando: todo o mundo olha para você como se você fosse um extraterrestre. É que faz tempo que a educação argentina vem fazendo de conta que sempre fomos um país de brancos, quando isso não é verdade.
Se eu tivesse chegado uns anos atrás, não aos 13, talvez teria mais para contar do assunto que quero tratar, porque é coisa de criança – e criação. Tudo começa no passado e na infância: 25 de maio é o dia para celebrar a nossa argentinidade, o dia em que decidimos formar um governo próprio sem a Espanha. Nos colégios, a época da independência é representada em atos escolares com seus personagens típicos.
Se você tivesse que assistir um desses atos entre esses personagens típicos, aparece aquele cuja presença/ausência é mais do que violenta: uma menina branca com um lenço vermelho na cabeça e a cara manchada com graxa representa a “Negrita de 25 de mayo”. Por que será? Em maio, as lojas escolares sempre têm, em exibição, as roupas que irão vestir as meninas brancas argentinas.
Tenho uma filha de dois anos e sou afrodescendente. Uma das primeiras coisas que aconteceu comigo quando cheguei à Argentina foi ter que abandonar a religião que a minha avó me ensinou, e respeitar os novos costumes, já que se alguém soubesse que eu fazia benção no quintal da minha avó, não sei…
Não consegui ser o único brujo da minha classe. Já passaram mais de 200 anos da nossa independência, e realmente nunca foi dada importância a um debate na educação ou na cultura – sem política, mas com reservas – que soubesse trazer de novo a realidade daquelas minorias que no passado foram assassinadas.
Tanto é o racismo, que ninguém acha estranho, no ano 2014, que suas filhas façam semelhante espetáculo grotesco. Tenho uma filha e gostaria de transmitir para ela aquilo que tanto tentaram destruir. É minha missão ensinar o contrário do que vão lhe ensinar no Planeta das negritas de 25 de mayo. Tomara que dê tudo certo!
Rodrigo Arreyes nasceu em San Martín, no Grande Buenos Aires, em 1985. Viveu muitos anos em São Paulo, onde em parte se alfabetizou, e estudou Letras na Universidade de Buenos Aires. Participou da Antologia Outsider I (Editorial Outsider) e em 2012 publicou a nouvelle “Manifestación de todo lo visible” (Editorial Simulcoop). Foi mecânico e borracheiro em El Palomar e atualmente trabalha como tradutor e cuida da sua pequena filha. Escreve em @fideosmanteca.
Os estudos publicados pelo veículo Por dentro da África são voluntariamente cedidos pelos próprios pesquisadores na intenção de disseminar o conhecimento sobre muitos aspectos do continente africano.
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