O negro em “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro

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Ademir Barros dos Santos, Por dentro da Áfricadarcy2

(divagações sobre o negro no livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro”

Não. O negro pesquisado, desmontado, dissecado por Nina Rodrigues, tal qual rato de laboratório, não é o mesmo que Darcy Ribeiro vê, retrata, analisa. O negro do Darcy também não pode ser achado, paralisado, nas gravuras de Debret, Rugendas, outros que tais, que o apresentam estático, sob liteiras carregadas de madames – ou sacas carregadas de café; não, não é o negro inerte que Darcy enxerga.

Estará, ele, nas páginas de Gilberto Freyre? Também não está! Ali, ele se conforma na senzala, como escravo ou capataz, pouco menos, pouco mais. Ali, as negras fabricam mestiços em redes alheias, sob o peso de seus donos, e se arvoram em sinhás também mestiças, em sonhos que nunca se realizarão; seus filhos, filhos de senhores, não são mais que brinquedos vivos, maltratados em folguedos infantis e juvenis, por aqueles que os herdarão.

Costumeiramente são, ainda, meros objetos, inertes e passivos, para a iniciação sexual de seus futuros donos.

Então, estará ele, inteiro, sob a ótica de Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Fernando Henrique, outros iguais? Não, não está; estes, mais modernos, veem o negro como efeito da evolução social, produto residual da sociedade desenvolvimentista, da qual pouco participa; assim, o negro não é elemento ativo: é resultado indigesto, apenas; nada mais.

Darcy Ribeiro - Divulgação
Darcy Ribeiro – Divulgação

Para Darcy, não. Darcy enxerga o negro – desde seus primeiros tempos – como participante ativo no processo de formação do povo brasileiro – que, se ainda não o reconhece, é porque este negro é “branqueado”, indevidamente, pela história oficial. Ou apagado, também indevidamente, desta mesma história oficial.

O negro do Darcy é o tempero que faltava à protocélula do povo brasileiro, antes formada, insossa e inodora, por brancos e índios; a esta protocélula coube, ao negro, acrescentar sabor – não só o suor da construção de tudo o que se fez neste país; coube-lhe adicionar aroma e gosto, colocando, ali, pimenta e dendê.

Também lhe coube, além de qualquer dúvida, reformatar não só a cultura, mas o próprio idioma, que amoleceu em sua boca bantu, tomando a forma curiosa, doce, mestiça e definitiva que Gilberto Freyre tão bem conhece. E ama.

Mais: a ele coube unificar e distribuir este idioma quase novo, já que reformado, por todo o país, durante o auge da extração mineral: do sul, vieram as mulas; do Norte e Nordeste, o capital – e tudo se encontra ali no centro, onde estão os negros, amalgamando o idioma nosso.

A tudo, acrescenta, o negro, a malemolência de seu ritmo inato, que é despreocupado e lasso, e pulsa como pulsa sua natureza pura.

É traçando a trajetória deste negro no Brasil, que Darcy assim se posiciona:

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro até a praia, […] de onde partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros. [..] Metido no navio, era deitado no meio a cem outros […] na fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado […]. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado […] para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano, […] maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo. […] Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga. […] Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, […] ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha, ou, de uma só vez, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Quanto às mulheres escravas, Darcy informa:

A negra-massa, depois de servir aos senhores, provocando às vezes ciúmes em que as senhoras lhes mandavam arrancar todos os dentes, caíam na vida de trabalho braçal dos engenhos e das minas em igualdade com os homens. Só a esta negra, largada e envelhecida, o negro tinha acesso para produzir crioulos.

Então, resume:

[…] introduzido como escravo, ele foi, desde o primeiro momento, chamado à execução das tarefas mais árduas, […] como besta de carga exaurida no trabalho, […] destinado a produzir o máximo de lucros […]. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via jungido a novas formas de exploração que […] só lhe permitiam integrar-se na sociedade […] na condição de um subproletariado, compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço.

E mais:

Nos anos seguintes à Lei do Ventre Livre (1871) fundaram-se, nas vilas e cidades, […] dezenas de asilos para acolher […] crianças, atiradas pelos fazendeiros. Após a abolição, à saída de negros de trabalho […] seguiu-se a expulsão dos negros velhos e enfermos das fazendas.

No movimento seguinte, aponta:

[…] com o desenvolvimento posterior da economia agrícola de exportação, […] outros contingentes de trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar a massa populacional residual das vilas, […] agora constituída não apenas de negros, mas também de pardos e brancos pobres […].

Então, conclui:

Nessas condições é que se deve procurar a explicação da gritante discrepância entre a expansão do contingente branco e do negro no desenvolvimento da população brasileira.

Evidentemente, é nas mesmas condições que se deve procurar, também, a explicação para o grande contingente negro nas favelas, modernas senzalas sociais; ou entre pedintes, desempregados, mal empregados, todos presos em perversas senzalas econômicas; e entre analfabetos, em senzalas culturais. Enfim: entre todos os demais excluídos de todas as camadas de nossa sociedade, carentes de tudo, sem-terra e sem nada, em senzalas terminais.

Mas Darcy é otimista e, sobretudo, é brasileiro; portanto, assim conclui:

[…] o vigor […] das atitudes que começam a generalizar-se entre todos os brasileiros […] por sua origem multirracial, e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão, provavelmente, enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma ascensão do negro, que lhe augura uma participação igualitária na sociedade nacional.

Então, decreta: “É preciso que assim seja, porque somente assim se há de superar um dos conflitos mais dramáticos que desgarra a solidariedade dos brasileiros.”

Esse o negro do Darcy – não palpável facilmente nas obras de outros cientistas sociais, mesmo de igual renome; isto, porque este é um negro que se movimenta, mesmo sob condições adversas; não na lâmina do laboratório de Nina Rodrigues; sequer no eito, na rede ou na senzala de Gilberto Freyre; ou que é movimentado, em sua passividade, pela dinâmica de Florestan Fernandes.

É certo que a lente macroscópica de Darcy não se volta a aspectos menores que, talvez, no seu entender, não são relevantes à demonstração que lhe interessa; é neste sentido que omite ou, antes, não se atém à influência do tráfico negreiro, que minimiza a desafricanização do negro, certamente menor que a deseuropeização do luso e a desindianização das populações primeiras de nosso território.

Nada a questionar quanto ao acerto da mencionada desindianização: o próprio território nacional foi desindianizado! Quanto à deseuropeização, a verdade é, também, muito evidente, visto que o reino, aqui, submeteu-se obrigatoriamente a condições climáticas, ecológicas, sociais, etc., inteiramente novas, totalmente desconhecidas: afastado dos costumes d´além-mar, escapado à vigilância de Portugal e à disciplina de sua Igreja, modificou-se livre, de alma leve, sem sequer pestanejar.

Entretanto, ao africano, também sujeito à inevitável desmontagem cultural da terra estranha, socorre a própria instituição do tráfico negreiro – de onde advém a reposição constante dos costumes originais, durante o longo período de três séculos que a escravidão durou: são os negreiros que, inconscientemente, ao trazer escravos novos, lastreiam constantemente a cultura negra, impedindo-lhe que se descole de sua tecedura original, cujo urdume ameaçava esgarçar-se a chicote, sob a pressão dos pelourinhos.

Afinal, é o escravo novo que traz, à Bahia, o substrato da cultura africana, hoje disseminada por todo o território nacional – de onde se espalha para o mundo – e que porta inconfundível matiz jêge-nagô; isto porque, principalmente pelas mãos de brasileiros como o baiano Francisco Félix de Sousa – o Chachá – o tráfico entre Bahia e Golfo da Guiné intensificou-se grandemente, em período já próximo ao final da instituição escravista.

Como resultado, hauçás, jêges e nagôs, muçulmanos, já que islamizados, e alfabetizados, trouxeram a consciência islâmica de liberdade, que gestou a Revolução dos Malês. É também nesta matriz, sempre renovada, que se encontra o assento para a religião africana mais praticada hoje no Brasil – o candomblé – que é a mais fiel transposição dos costumes africanos para o nosso país.

Candombké - Foto de Roger Cipo
Candombké – Foto de Roger Cipo

É no mesmo quadro que se pode compreender, ainda, porque Darcy não se prende à análise do negro livre, ou de ganho, na configuração e disseminação da base cultural negra que hoje se conhece; entretanto, é evidente que é este o negro que, inquestionavelmente possuidor de maior mobilidade que aquele da senzala, desmonta e remonta a cultura original, e a esconde, protegida em confrarias, sob aparência católica; é também ele quem forma sociedades, políticas ou não, onde esta cultura se agasalha, renova, altera, dissemina.

Enfim: o negro do Darcy decide, age, vive, influencia e é influenciado, mesmo quando muito além dos limites que os poderes da aristocracia, oficial e dominante, lhe permitem. Este negro é socialmente ativo: embora nas sombras, mexe-se e se movimenta.

Movimentos subterrâneos; sub-reptícios, é verdade. Que Darcy, atento, percebe e registra.

Em resumo: o negro do Darcy mexe-se desde o primeiro momento, a partir, mesmo, de sua introdução tardia, como complemento último da protocélula social que inicia a formação do povo brasileiro – porque a esta célula semi-inerte, dedicada à destruição de sua matriz primeira, o negro adiciona mais que tempero, cheiro, vida e movimento: adiciona perenidade e cultura.

Primeiro porque, depois de aprendida, apreendida e remontada a língua portuguesa por bocas africanas, é este o idioma que, pelas mesmas bocas, se espalha e domina, por jeitinhos já brasileiros, o nhengaatu – língua antes geral, tupi sistematizado por jesuítas – até então idioma oficial dos negócios nacionais, inconteste dominador do litoral.

Depois, porque é este germe negro que, nascido nas senzalas, ao crescer, sobrevivendo à própria morte anunciada, se transmuda na raiz amalgamada da cultura nacional; então, permite a Marcelo Coelho, em artigo publicado à página E6 da Folha de S. Paulo de 19 de março de 2.003, afirmar, com admirável convicção:

Uma coisa é saber que o candomblé veio da África, como o azeite-de-dendê e outras “contribuições culturais dos escravos”, para usar a terminologia dos livros de história. Outra coisa é saber que a cultura brasileira fala africano, fala negro o tempo todo. Bem mais do que se admite usualmente.

Este o negro do Darcy: ativo, sobrevivente, permanente, agitador, modificador. E vivo.

Axé, meu rei!