“O meu sonho é ter uma grande casa para abrigar os garotos de rua”, conta jovem de Burundi

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Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Eles têm sonhos, habilidades e muitos talentos. Longe dos títulos, das posições que segregam, dividem e marcam as castas sociais, eles revelam seus dons que não estão apenas nos pés, no jeito de marcar uma falta, de bater um pênalti. Na semana em que se comemora o Dia Mundial da Criança de Rua, o Por dentro da África conversou com alguns africanos que revelaram seus desejos e histórias. Eles participaram da Copa de Futebol das Crianças de Rua, realizada entre os dias 30 de março e 6 de abril, no Rio de Janeiro.

– Há três tipos de crianças de rua: aquelas que estão na rua porque os seus pais colocaram-nas lá na intenção de explorá-las financeiramente; as que fogem para a rua porque são abusadas dentro de casa e as que realmente não têm lar, que cresceram nas ruas. Todas essas precisam de cuidado –  explica  Teddy Bright, líder da equipe do Burundi, um dos nove países africanos participantes da competição (que também reuniu jovens da Ásia, Europa e Américas).

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

Em todo o mundo, milhões de meninos e meninas vivem e trabalham nas ruas. A Copa do Mundo das Crianças de Rua é uma campanha global em associação com a organização não-governamental Save the Children, que chama a atenção para a situação desses jovens, que merecem proteção e oportunidades.  Por meio do futebol, o objetivo é desafiar as percepções negativas e envolvê-los em um ambiente que vai muito além do campo.

Assista ao nosso vídeo no final da página 

– Esse torneio é muito importante porque estimula o futuro dos meninos. Eles sabem que o slogan “Eu sou alguém” é importante para se auto-afirmarem, para terem a consciência de que também são importantes para as suas comunidades. Nós do Quênia temos problemas educacionais, financeiros, sociais, políticos… Mas encorajamos eles a continuarem na busca pelos seus sonhos. Tudo tem uma razão e um propósito – disse ao Por dentro da África, o  queniano Ted Oindo.

Conflito após eleições no Quênia 

O ano de 2007 foi de mudança na vida de Oindo e marcou a vida de muitos quenianos, principalmente, das crianças. Um conflito após a eleição presidencial deixou mais de 1,2 mil mortos e centenas de milhares de feridos e deslocados. A explosão de um confronto étnico foi causado durante a contagem de votos, quando o presidente em exercício Mwai Kibaki, de etnia kikuyu, foi declarado vencedor da eleição. Defensores do adversário de Kibaki alegaram manipulação, e um massacre foi iniciado nos dois meses seguintes.

– Nesses confrontos, muitas crianças morreram, ficaram órfãs e se perderam dos seus pais. Elas não tiveram como voltar para suas casas… Eu me senti responsável por elas e passei a ajudar muitos meninos e meninas em programas sociais. Hoje, alguns deles estão aqui realizando seus sonhos! – comemorou o líder.

Infância e Diamantes de Sangue 

RDC children soldier - Foto: ONU
RDC children soldier – Foto: ONU

Nos anos 1990 e 2000, confrontos armados massacraram a infância de dois países da África Ocidental. Grupos armados da Libéria e de Serra Leoa recrutaram milhares de crianças para um conflito que deixou milhares de mutilados e milhões de traumatizados. Nascido em Serra Leoa, Michael John Bull, diretor da Street Child na Libéria, trabalha com crianças de ambos os países, que ainda sofrem com o legado dos conflitos civis.

A Guerra Civil em Serra Leoa começou em 1991 com a Frente Revolucionária Unida (FRU), sob comando de Foday Sankoh, que lutava para derrubar o governo do país. Dezenas de milhares de pessoas morreram, e mais de dois milhões (mais de um terço da população) foram deslocadas por causa dos 11 anos de conflito, conhecido pelo uso massivo de crianças-soldado e tráfico de “diamantes de sangue”, um método de financiamento das forças rebeldes. A guerra foi encerrada em 18 de janeiro de 2002.

mapa bbcDo outro lado da fronteira, a segunda guerra civil da Libéria começou em abril de 1999, quando dissidentes com a bandeira da Organização dos Liberianos Unidos pela Reconciliação e Democracia invadiram a Libéria a partir de Guiné (Conacry). Em janeiro de 2001, as forças do presidente liberiano Charles Taylor foram empurradas para Serra Leoa, envolvendo o país em um confronto complexo com a Serra Leoa e a Guiné. O conflito armado na Libéria, que no total durou 14 anos, acabou em 2003 com a assinatura de um tratado, mas ainda deixa marcas.

– Estamos falando de um país de pós–guerra, onde a infraestrutura foi destruída, o sistema econômico veio abaixo. A pobreza aumentou, e as crianças sofreram muito. Na minha opinião, o maior problema de hoje é o abuso das crianças somado à pobreza – conta Michael, destacando que a violência doméstica está entre os desafios que o país também precisa combater.

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

Na luta por um futuro melhor para esses jovens, Michael trabalha árduo junto de um grupo de ativistas que identificam, recolhem e “abraçam” crianças em situações de vulnerabilidade. Ele relembra que, no quesito educação, a instabilidade ainda é grande, já que as escolas públicas são de extrema precariedade e as particulares são muito caras, acessíveis apenas para uma pequena parcela da população de cerca de 5 milhões de pessoas.

Por conta do conflito armado, segundo a UNICEF, meio milhão de crianças ficaram de fora das escolas e 2/3 dos alunos são ensinados por professores que não estão qualificados. Além disso, a taxa de escolarização das meninas está muito aquém à dos rapazes.

Os programas sociais que fazem uso do esporte, principalmente do futebol, aparecem como alternativas e oportunidades para esses meninos e meninas. Michael destaca que é também no campo que eles recarregaram sua auto-estima, energia e sonhos.

“Quero ser uma futebolista famosa”, diz moçambicana

Raquelina, de Moçambique - Foto: Natalia da Luz
Raquelina, de Moçambique – Foto: Natalia da Luz

Raquelina esteve nas ruas por um tempo, porque o “clima” em sua casa era muito “pesado”. Sem lar, ela conviveu com muitas meninas e meninos que viviam nas ruas de Maputo, capital de Moçambique. A partir de um programa de reabilitação, que encurtou a distância entre ela e sua família, a adolescente retornou à casa.

– Conheço muitas meninas que não têm nada, que não têm onde dormir. Algumas até têm casa, mas sofrem maus-tratos. Outras vão para a rua para conseguir pão… Então, elas “catam” água, dormem sobre os jornais e tentam arrumar alguma coisa para fazer – conta a moçambicana de 16 anos enquanto se preparava para a semi-final contra a equipe das Filipinas.

Radiando felicidade, ela disse que não conseguiria medir a importância desse “encontro” para a sua vida, onde ela pôde conhecer meninos e meninas de diferentes partes do mundo, aprendeu culturas diferentes, danças e línguas.

– Hoje, o meu sonho é poder me tornar uma grande futebolista e ser uma empresária para ajudar outras crianças. Eu desejo que elas sejam muito felizes…

Os campeões da Tanzânia 

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

No campo, os meninos da Tanzânia foram imbatíveis! Na final contra o Burundi, eles venceram por 3×1.  No dia anterior, os meninos africanos haviam derrotado o grupo dos Estados Unidos em uma goleada de 6×1. Orgulhoso, o técnico Suleiman Jabir disse ao Por dentro da África que, com seis semanas de treinamento sob a sua supervisão, seus meninos se superaram.

– Eles jogaram muito bem e foi uma grande vitória que contarão lá no nosso país! A Tanzânia não vive em guerra, é um país pacífico, mas que, como todos os outros, têm obstáculos a enfrentar quando falamos da infância. Por lá, crianças-soldado, violência e abuso sexual não são problemas recorrentes como vemos em muitos cantos do mundo. O que tentamos combater é o o trabalho infantil. Muitos pais forçam seus filhos a venderem coisas nas ruas – lamentou o técnico, que trabalha na Academia de Esportes da Tanzânia.

Ele destacou que a experiência de todos os jovens que participaram desta Copa do Mundo serve para mostrar para eles e para o mundo as suas habilidades, que podem ou não estar no futebol.

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Recepção na Tanzânia – Divulgação

Ao chegar em sua terra natal, os meninos tanzanianos foram recebidos com festa, com orgulho. Diante da multidão, Willian, o vice-capitão do time, disse que os jogadores gostariam de mostrar a todos que as crianças de rua são como as outras crianças, capazes de fazer maravilhas e de encher seus conterrâneos de orgulho.

– Queríamos que o nosso governo olhasse  para as crianças que estão vivendo nas ruas, tratando todas elas com oportunidades. Agora, nós somos alguém, e hoje as pessoas saíram em grande número para nos ver. Eles querem descobrir quem somos! – disse Willian em discurso ao desembarcar em Dodoma, capital da Tanzânia.

Nas esquinas do mundo

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

Eles estão em todas as esquinas ao redor do mundo por motivos que não cicatrizam. No relatório da UNICEF de 2012 Children in an Urban World, as estimativas sugerem que mais de 10 milhões de crianças vivam e trabalhem nas ruas das cidades, um número que cresce conforme a população na área urbana aumenta.

Neste encontro que o Por dentro da África acompanhou, mais de 230 jovens de até 18 anos compartilharam suas histórias e levaram para seus países uma nova coleção de desejos e confiança. A primeira Copa do Mundo das Crianças de Rua foi realizada em Durban, África do Sul, em março de 2010. Na ocasião, o evento reuniu equipes de crianças de rua do Brasil, África do Sul, Nicarágua, Ucrânia, Índia, Filipinas e Tanzânia.

Ciente desta dura realidade, Teddy é um dos entusiastas quando o assunto é oportunidade para as crianças de rua. Em Burundi, ele diz que não há apenas as crianças de rua abandonadas, mas crianças com deficiência física e mental, que estão na mesma situação de rejeição.

– Esses jovens precisam de proteção política. O grande problema da África não está nas etnias, nas diferenças entre as comunidades, mas na política. O que falta em todo o continente é líder. Temos um grande vazio de liderança… – lamentou o ativista, que estudou Ciências Políticas na Universidade de Bujumbura, capital do Burundi.

Teddy nos contou que, após ser abandonado pela mãe, ele começou a lavar pratos para ajudar a custear os seus estudos. Durante as férias, a avó o ajudava, e foi assim até que ele pudesse completar os estudos na escola.

Copa das Crianças de Rua - Divulgação
Copa das Crianças de Rua – Divulgação

– Em 2001, quando eu estava nas ruas da capital e vi alguns meninos de rua, então, eu fui tocado… Pensei: se eu, que fui rejeitado pelos meus pais, tive que me esforçar tanto para pagar meus estudos e conseguir ser bem-sucedido, o que será dessas crianças que não têm absolutamente ninguém, que não têm nem onde dormir? Eu comparava a minha situação com a delas, a única diferença é que eu tinha um lugar para passar a noite.

O ativista aprendeu a tocar guitarra para ensinar as crianças, a fim de oferecer a elas mais oportunidades em suas vidas. Ele pensava no que poderia fazer e hoje continua fazendo para mostrar que é possível deixar as ruas e conquistar o seu próprio caminho.

Tutsis, hutus e a recordação do genocídio de Ruanda 

mapa rwandaEm 1994, o mundo presenciou um dos maiores genocídios do século XX. Ruanda contabilizou mais de 800 mil mortos em menos de 100 dias, por conta de um conflito étnico-político entre os dois grupos principais de seu país: hutus e tutsis, invenção dos colonizadores belgas.

Perseguidos pelos hutus extremistas, os tutsis e hutus moderados foram massacrados, após o assassinato do presidente Juvénal Habyarimana, em atentado ao avião em que viajava, no dia 6 de abril de 1994. Antes disso, a guerra civil já era arquitetada no território ruandês e já sentida em Burundi, país vizinho que era parte de Ruanda, antes de os europeus dividirem seus territórios.

– Em 1993, quando eu tinha 10 anos, foi uma situação muito difícil por conta da guerra. Eu tive que parar de estudar e fugir para outro país. Quando eu voltei para a escola, as pessoas me perguntavam o que eu era: hutu ou tutsi. Na minha fisiologia, eu pareço com um hutu, mas eu dizia que era tutsi.. Hoje, eu tenho hutus e tutsis em meu time, e isso não é problema. O maior problema entre as pessoas do nosso país não está na diferença étnica, mas na política.

O Guerra Civil do Burundi, que deixou cerca de 300 mil mortos, foi um conflito armado com duração de 1993 a 2005. Ele foi formalmente finalizado com a tomada de posse de Pierre Nkurunziza, em agosto de 2005.

Veja mais: A tragédia de Ruanda não foi lição

Sonhos com música e futebol 

Innocent (no meio) comemora com a equipe - Foto: Divulgação
Innocent (no meio) comemora com a equipe – Foto: Divulgação

A voz doce e afinada acompanhada da letra (que ele mesmo compôs) era atração que enchia o campo de curiosos. Depois do futebol, “Innocent” revelou sua outra faceta aos visitantes: a música! Enquanto o jogo recebe a energia de um adolescente cheio de vida e sonhos, o microfone propaga os dramas, os sentimentos, as mensagens e a sua própria história. “Innocent” foi garoto de rua por muito tempo, hoje, é jogador de futebol, cantor, artista e exemplo para os jovens do seu país.

– Eu canto diferentes estilos: hip hop, dance, reggae… Eu não sei dançar, mas sei cantar! Eu posso dizer que o meu primeiro talento é jogar futebol e, depois, cantar. Eu, realmente, gosto dos dois! Mas o meu sonho mesmo é ter uma grande casa para ajudar as crianças de rua. É nisso que eu penso todos os dias.

Por dentro da África