O leão do Mali: Entre o mito e a realidade

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Mali – Sundiata – Reprodução

Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África 

Sorocaba – Quando Sogolon, a mulher búfalo, entregou aquela bengala àquele menino franzino e feio que, aos três anos de idade, ainda mal falava e não sabia andar, apenas queria que ele, nela, se apoiasse, tentando se levantar; mal desconfiava que estava lhe entregando o instrumento da profecia, porque aquele menino, seu primogênito, que tinha grandes olheiras e parecia, de tão frágil, que não sobreviveria, repentinamente encorpou, cresceu e levantou-se por suas próprias forças; o que, por ninguém, era esperado.

A seguir, resoluto, pisando firme, peito estufado, olhar altivo, caminhou diretamente para o imenso baobá que representava a continuidade do reinado de seu pai que, segundo a vontade deste, a ele pertencia; mas estava indevidamente ocupado por seu meio-irmão que, deste baobá, colhia folhas e as atirava à sua mãe e a ele, como sinal de desprezo e humilhação, pois que, deles, assim escarnecia.

Inesperada e corajosamente, agarrou o grosso baobá, que não podia ser abraçado por menos de dez homens. Mas o menino, abrindo largamente os braços, apenas empurrou a imensa árvore, que desenraizou; a seguir, atirou-a, desprezadamente, ao chão. Nascia, ali, Sundiata Keita, o Leão do Mali.

Escultura Sogolon de Sologon – Mali – Sundiata – Reprodução

Estava, assim, realizada a profecia: e o filho daquela mulher corcunda e feia, do clã Traoré, iniciava a estória do reino mais rico que já existiu sobre a Terra.

Assim contam os griots. Porém, como não é possível que um menino de tenra idade, franzino e destinado a precoce morte, encorpe repentinamente a ponto de arrancar, sozinho, desenraizando, um imenso baobá, o que não é tarefa fácil nem mesmo para muitos homens robustos juntos ou, até, para alguns Hércules acompanhados por vários titãs, é preciso esmiuçar um tanto mais esta estória para tentar segregar, nela, o que é verdade, do que é mito.

Isto, até porque Sundiata é, de fato, figura histórica. Existiu. Portanto, nem tudo o que dele se fala é, apenas, fantasia; o que faz com que, para entender todo este embrulho, se torne preciso recuar um tanto quanto no tempo. Não muito.

Entre três e cinco anos a partir do evento milagroso, já parece tempo suficiente. Porém, mesmo aqui, não há como escapar do que contam os griots porque, de Sundiata, toda a história reside só na memória destes negros tão especiais.

Aventuremo-nos.

Contam eles que Naré Maghann Konaté era casado, dentre outras, com Sassouma Bereté, com quem tinha, como primogênito, Dankaran Toumani Keita, potencial sucessor daquele rei mandinga. Porém, um dia qualquer, um mago, em visita ao reino, avisou ao rei que era seu destino casar-se, também, com outra mulher, feia, de quem teria um filho que se tornaria poderoso rei.

Por isto, o crédulo e bondoso Naré Konaté, quando recebeu, em suas terras, dois caçadores do clã Traoré, que vinham acompanhados por Sogolon Dalata, aquela mulher verruguenta, tão feia e corcunda que parecia um búfalo, enxergou, nela, a possibilidade do cumprimento da profecia. E resolveu casar-se com ela.

É deste casamento estranho que nasce o bebê doente, fraco, portando imensas olheiras, que recebe o nome Sundiata. É esta a criança que produz o fantástico feito citado no começo desta estória.

Mali - Sundiata - Reprodução
Mali – Sundiata – Reprodução

Isto posto, é momento de separar mito e realidade, o que não parece fácil; mas, também, não parece tão impossível assim. Em primeiro lugar, é preciso saber que, para o africano comum e tradicional, nada no mundo acontece por acaso; além disto, para ele, a palavra tem poder; conforme ensina o insigne professor Kabengele Munanga em seu festejado Negritudes: usos e sentidos, em África, a palavra mata.

Portanto, não é de se admirar que Naré Konaté tenha, de fato, acreditado na profecia do mago que lhe previu o casamento com Sogolon. Também não é de admirar que, desta união, tenha nascido, em 1.190 d.C., uma criança débil, feia como a mãe, que, até os três anos de idade, mal sabia falar; e que não podia andar; debilidades, feiuras e anemias ainda são tão comuns em nossa modernidade!

Porém, o mito dá, ao pequeno Sundiata, o protagonismo do milagre: sarou de uma hora para outra, apenas por tocar a bengala que, talvez e segundo ainda contam os griots, seria o cetro real.

Ora, é possível que, conhecedora da profecia, Sogolon tenha, de fato, entregue o que sabia ser o cetro a seu pequeno e frágil rebento; mas que, deste toque, tenha resultado o milagre, é algo que só os griots ousam afirmar. Portanto, cabe entender que, talvez, o menino tenha recuperado a saúde paulatinamente, ao mesmo tempo em que ouvia estórias sobre a profecia que envolvia o seu nascimento.

Talvez tenha daí nascido, nele, a vontade de ocupar o trono que, por profecia, era seu de direito; o que pode ter sido exacerbado por ver-se constantemente humilhado por seu meio irmão, então rei, e pela mãe dele que, talvez também como reação a tão esdrúxula profecia, a ele e a Sogolon atiravam folhas do baobá que representava seu poder.

Mali - Sundiata - Reprodução
Mali – Sundiata – Reprodução

Pode ser que caiba, neste momento, pequeno parêntese: na África, o baobá é considerado árvore sagrada. É a “árvore da palavra”, sob a qual se reúnem os anciãos e os notáveis de cada grupo, para decidir os destinos da comunidade. Ela representa, enfim, a divindade e a autoridade.

Portanto, atirar, desdenhosamente, folhas daquele baobá ao pequeno e frágil pretendente ao trono e à sua mãe, era ato que carregava o mesmo efeito que desprezá-los por suas convicções; mas não era, só, ato de desprezo; era, também, de escárnio e humilhação.

Porém, o reinado de Dankaran Tumani, assim como o escárnio que ele e sua mãe aplicavam a Sundiata e Sogolon, estavam fadados a chegar ao fim; o que acontece quando Sumaôro Kantê, rei Sosso vindo de Gana, no afã de expandir seus domínios, ataca o então pequeno reino mandinga e dizima toda a família real; apenas Sogolon e Sundiata, este por feio, pequeno, frágil, incapaz, escapam, exatamente porque, pela aparência da criança e aos olhos do invasor, soavam inofensivos.

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Assim sendo, parece que até mesmo a fraqueza de Sundiata fazia parte da profecia. Mas, é de se supor que, aos olhos do pequeno, as humilhações sofridas não se apagaram facilmente; assim também o baobá, símbolo do poder que transitara de seu meio irmão para o conquistador, talvez também não tenha sido esquecido.

Pois bem: após o massacre, Sundiata e sua mãe refugiam-se em Gana, onde são bem recebidos; lá, estabelecem-se em Nema, onde o rei, impressionado com as habilidades e coragem do já então forte adolescente, lhe concede grandes responsabilidades.

The hero of the national epic of Mali and a cultural hero of the Mandigo people in West Africa, Sundiata
The hero of the national epic of Mali and a cultural hero of the Mandigo people in West Africa, Sundiata

Sogolon falece após grave febre, quase ao mesmo tempo em que representantes do povo mandinga, em comitiva e sentindo-se oprimidos por Sumaôro, pedem, a Sundiata, que comande a retomada do reino para sua dinastia.

É o que Sundiata faz: reunindo os exércitos independentes que haviam sido formados por cada clã mandinga, Sundiata, considerado chefe de sua geração, parte para o enfrentamento; mas, neste ponto, parece que a lenda, novamente, supera a realidade.

Isto porque, contam os griots, Sumaôro, o conquistador, era grande feiticeiro, sendo invulnerável às armas metálicas: somente o esporão de um galo branco poderia atingi-lo, assim como, na lenda grega, Aquiles só poderia ser fragilizado se atingido no calcanhar.

É com este conhecimento que Sundiata prepara uma flecha especial, em que, na ponta, prende tal esporão. E parte para o enfrentamento; o que acontece em Kirina, cidade hoje de difícil localização, já que a Kirina que hoje existe, segundo os arqueólogos, é muito mais recente do que aquela que assistiu a esta batalha.

São, ainda, os griots que recontam os desafios que, entre os dois e como ritual da declaração de guerra, aconteceram naquela longínqua 1.235, às vésperas da batalha:

– Eu sou o inhame selvagem das rochas: ninguém me fará sair do Mali – grita Sumaôro.

– Tenho, no meu acampamento, sete ferreiros que te despedaçarão. Então, inhame, eu te comerei – replica Sundiata.

– Eu sou o musgo venenoso que faz vomitar os valentes.

– Eu sou o galo voraz. O veneno não me preocupa.

– Tem cuidado, Sundiata, ou queimarás o pé

, porque eu sou um carvão em brasa.

– Pois eu sou a chuva que apaga o fogo.

Assim prosseguem e, afinal, se enfrentam. É quando Sundiata atira sua flecha especial, que raspa o ombro esquerdo de Sumaôro; este, sente-se perdendo as forças; então, foge; a batalha resta vencida por Sundiata que, assim, recupera o trono que era de seu pai.

É de se crer que, a seguir e no afã de simbolizar esta retomada de poder, Sundiata, já agora rei e Leão do Mali, tenha mandado arrancar o baobá que tanto o havia humilhado, ao simbolizar o poderio de seu meio-irmão

e o escárnio da primeira mulher de seu pai.

A partir deste ponto, a estória deste rei parece

seguir caminhos bastante confiáveis: Sundia

ta invade e arrasa Kumbi-Saleh, então capit

al de Gana; estabelece a capital de seu reino em Niani, hoje na Guiné-Conacri; a seguir, consegue firmar alianças com os reinos a

seu redor, unindo todo o povo mandinga sob seu comando; as

sume o título Mansa que, em malinke, seu idioma,

significa imperador, rei dos reis.

Mali - Sundiata - Reprodução

Então, define a estrutura política do império pela Carta de Kurukan Fuga que, firmada por consenso entre Sundiata e seus apoiadores na chamada Gbara, ou Grande Assembleia, admite, como estrutura administrativa, o formato confederação, ou seja: mantém-se o comando e os costumes de cada localidade, sujeitando-os às determinações centrais, que os compatibiliza, a espelho dos procedimentos que asseguraram a chamada Pax Romana.

Como decorrência, o Império vem a ser governado por duas formas: no centro, o controle direto do rei; na periferia, reinos protetorados, onde os reis reconhecem a soberania do imperador, a quem pagam impostos, sem perder o estatuto de reis.

Assim sendo o Mali, embora governado por imperador muçulmano, passa a conviver com locais onde as religiões tradicionais permanecem vivas; mas, em perfeita harmonia com a religiosidade oficial.

Kumbi Saleh ruins Mali - Sundiata - Reprodução
Kumbi Saleh ruins Mali – Sundiata – Reprodução

Prosseguindo: é durante o reinado de Sundiata que o Mali começa a adquirir o poderio de que disporá por longo tempo, posto que, futuramente, chegará, inclusive, a englobar todo o território antes ocupado pelo Império de Gana; e ido muito mais além.

É sob seu comando que a agricultura se desenvolve, com o cultivo, dentre outros, de arroz, favas, inhame, cebolas e algodão; o artesanato, especialmente de tecidos, ganha grande importância, com Sundiata controlando todo o comércio transaariano, especialmente o que transita pelas regiões de Kumbi-Saleh, Timbuctu e Gao, além de fartas minas de ouro.

Sundiata reina por vinte anos; sua morte, ocorrida em 1.255, é fato que, assim como seu nascimento, está envolto em mistérios, posto que se afirmam diversas possibilidades, entre as quais:

. que foi vítima de “flecha perdida” em uma festa ou cerimônia, da qual participava;

. que se afogou nas águas do rio Sankarani, em condições não explicadas: neste rio, a 10 km a montante de Niani, encontra-se o lugar que tem por nome Sundiata-dun (água profunda de Sundiata), onde o rio é muito profundo e agitado por redemoinhos.

Mas, Sundiata, de fato, morreu? O que se sabe é que ele foi tão grande, que muitas são as homenagens que o povo mandinga ainda presta a seu herói, o Leão do Mali:

. onde ocorreu seu suposto afogamento, os Keita de Niani estabeleceram locais de culto em ambas as margens: ali, se reúnem periodicamente, para rituais de oferendas e louvação;

. em Kirina, hoje no Níger, são feitas oferendas em uma floresta sagrada;

. em Tigan, a nordeste de Niani, dizem haver, em lugar específico, calçados, uma faca e um traje de guerra que teriam pertencido a Sundiata;

. em Kangaba, a cada sete anos, celebra-se o culto no santuário chamado Kamablon, que também conteria objetos pertencentes ao Leão do Mali.

O certo é que o reino do Mali, cujo poderio foi iniciado, em 1.235, por Sundiata, dura até meados do séc. XVI, quando é vencido pelo império Songhai.

Porém, mais certo, ainda, é que Sundiata não morreu. Isto porque, mesmo abandonando o corpo aos caprichos da morte, o Leão do Mali, o mito, permanece vivo; pelo menos para o povo mandinga, que o venera até os dias atuais.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Ricardo. A expansão árabe na África e os impérios negros de Gana, Mali e Songai (sécs. VII-XVI) – Segunda Parte. Disponível em:

<http://www.ricardocosta.com./pub/imperiosnegros2.htm>. Acesso em: 5 fev. 2006. MUNANGA, Kabengele: Negritudes, usos e sentidos. 2. ed. São Paulo: Ática, 1988.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O legado africano. In: SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de (org.). Nossas raízes africanas. São Paulo: s.n., 2004.

SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de. Das culturas tradicionais africanas. In: SOUSA JÚNIOR, Vilson Caetano de (org.). Nossas raízes africanas. São Paulo: s.n., 2004.