Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – O futuro começa a ser moldado no presente, com anos de antecedência, o que transforma os jovens de hoje em protagonistas das ações que direcionam esse caminho. A Jornada Mundial da Juventude, realizada no Rio de Janeiro, reuniu mais de 3.5 milhões de pessoas em seu encerramento, neste domingo. Em meio aos participantes de 175 países, os jovens africanos encorpavam o coro de uma reflexão que vai além da religião abrangendo questões sociais e políticas.
– O essencial neste encontro está além do lado religioso. Temos um papa que veio para mudar muita coisa, um papa que fala de muita coisa, sobre o nível social, político… Tudo aquilo que acontece em um país acontece em outro. Há problemas de corrupção e exclusão social seja no Brasil ou em Angola – contou, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, o angolano Bernardo Fançoni, de 37 anos.
Os participantes de Angola, que ainda circulam pela cidade, superam 800 pessoas. A equipe de 30 pessoas que acompanhava Bernardo ficou hospedada em Copacabana, em casas de família. Durante todos esses dias, esses lares se tornaram a família dos peregrinos angolanos.
– Essa é a minha primeira jornada. Tive uma pequena sorte porque temos uma cultura muito próxima, tanto na alimentação quanto nos hábitos e costumes – brincou em meio ao grupo que erguia as bandeiras de Angola se preparando para ver o papa Francisco novamente.
Criada pelo Papa João Paulo II em 1984, a Jornada Mundial da Juventude tem duração de cerca de uma semana com eventos da Igreja Católica para os jovens. Inspirado nos grandes encontros de jovens do mundo em eventos especiais ocorridos no Domingo de Ramos, em Roma, em 1983 e 1984, o Papa João Paulo II estabeleceu a Jornada Mundial da Juventude como um evento anual (que passou depois a ser realizado com intervalos de dois ou três anos).
Durante a JMJ, acontecem eventos, missas, palestras, partilhas e shows, tudo em diversas línguas. O papa Francisco, que passou uma semana no Rio de Janeiro, falou de intolerância política e religiosa, corrupção e exclusão social. Tocou em pontos que ainda são tabu para a Igreja Católica.
– O futuro exige a tarefa de reabilitar a política, que é uma das formas mais altas da caridade. O futuro nos exige também uma visão humanista da economia e uma política que logre cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evite o elitismo e erradique a pobreza. Que a ninguém falte o necessário e se assegure a todos dignidade, fraternidade e solidariedade – disse o pontífice.
Evento mundial
O evento no Rio de Janeiro foi o segundo maior desde sua criação. Na edição de 2011, em Madrid, Espanha, o encontro reuniu cerca de 1,5 milhão de jovens. Em Manila, nas Filipinas, sede do evento em 1995, recebeu cerca de 4 milhões de pessoas, uma das maiores concentrações de católicos da história. Apesar de ser organizada pela Igreja Católica, a JMJ é um convite a todos os jovens do mundo.
– Nós encontramos muitas pessoas de todos os continentes. Nós falamos sobre diferentes coisas, sobre questões sociais, e ter muitos jovens é maravilhoso porque somos os líderes do futuro, temos que falar sobre o futuro! – disse a zimbabuana Amanda Katsande, de 23 anos, que integrava um grupo de 20 jovens.
Sobre o futuro em seu país, parte desse trajeto pode ser decidido nesta quarta-feira, nas eleições legislativas e presidenciais no Zimbábue. Amanda lembrou que cerca de 6,4 milhões de zimbabuanos serão chamados às urnas.
À frente de uma campanha para garantir aos homens do Zimbábue o “dever” de votar nas eleições do país, Priscilla Misihairabwi-Mushonga, ministra da Integração Regional e Cooperação Internacional do país, incentivou as mulheres do seu país a fazerem greve de sexo para que todos os seus maridos votem.
– Precisamos fazer a diferença. Eu não estou pedindo para você ir para a guerra. Eu estou pedindo para você ir e votar. Durante anos, temos visto que a maioria dos eleitores é feminina. Precisamos tomar nossos homens a bordo. E se não podemos levá-los a bordo, vamos negar-lhes algo que sabemos que eles certamente iriam querer – disse o comunicado da ministra zimbabuana.
Saiam às ruas
Durante seus discursos, o papa pediu que os jovens saiam e tomem as ruas em busca de uma civilização mais justa.
– São os jovens os protagonistas da mudança. Vocês são o futuro do mundo. Sejam o futuro dele – disse durante a missa de sábado na Praia de Copacabana que ocorria simultaneamente aos protestos anticorrupção realizados nas ruas do Rio de Janeiro. No norte da África, os jovens têm ido às ruas desde 2010, o que tornou possível a queda de ditadores na Líbia, Tunísia e Egito.
Nascida na República Democrática do Congo, Brigite Borwao, de 29 anos, vê o encontro como uma grande oportunidade para falar sobre direitos humanos e, principalmente, os direitos das mulheres. O país de Brigite é um dos mais perigosos para as mulheres, onde a violação sexual é usada como uma avassaladora arma de guerra.
– Os meus sentimentos aqui são ótimos, eu não consigo descrever a minha sensação de paz, de expectativa… Por isso também precisamos falar e buscar soluções para as injustiças, para esses grandes problemas que minam a África e o nosso futuro – afirmou a congolesa que compunha um grupo de 70 pessoas.
Ontem, o pontífice celebrou a Missa de Envio e, às 17h30, participou de uma cerimônia restrita aos voluntários da JMJ, no RioCentro, na Zona Oeste. Às 19h, ele embarcou para Roma. Durante conversa de quase uma hora e meia com jornalistas no voo de volta ao Vaticano, ele citou o Catecismo da Igreja Católica para reafirmar a posição de que a orientação homossexual não é pecado, mas os atos são.
– Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la? O Catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles [os homossexuais] não devem ser marginalizados por causa disso, mas que precisam se integrados à sociedade – disse o papa Francisco ao falar sobre gays.
Despertar consciência
O encontro de jovens de todo o mundo, que voltarão a se reunir em Cracóvia, Polônia, na próxima edição, em 2016, serviu também para despertar a consciência nesses participantes, acredita o moçambicano Elidio Albano, de 25 anos.
Elídio passará mais alguns dias no Rio de Janeiro para encontros com jovens da África de língua portuguesa (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe). Do outro lado do Atlântico, nove partidos políticos da oposição moçambicana sem representação parlamentar anunciaram o boicote às eleições autárquicas de 20 de novembro por considerarem que “o país está vivendo uma tensão político-militar”. O assunto diz respeito aos jovens e clama para a construção do futuro, que começa no presente.
– Eu acho que foi uma grande experiência e que cada jovem tem que aproveitar essa ocasião, levar algo de útil para que, no futuro, ele possa viver em harmonia, contribuir, transformar. Eu acho que eu colhi muita coisa aqui para levar para a casa…
Por dentro da África