Por Marcio de Jagun, Por dentro da África
Nesta semana, um vereador se manifestou na tribuna da Câmara de Vereadores do Município do Rio de Janeiro-RJ, defendendo a decisão do prefeito Marcelo Crivella de reduzir o investimento da Prefeitura no Carnaval carioca. Contudo, Otoni de Paula (PSC/RJ) usou argumentos repletos de preconceito como “O carnaval (…) o da Marquês de Sapucaí (…) se tornou um verdadeiro culto a orixás, caboclos e guias com dinheiro público”, “O carnaval se tornou uma fonte de lucro para a prostituição e para a promiscuidade”. Esses argumentos merecem algumas ponderações e esclarecimentos.
Rio de Janeiro, 24 de junho de 2017.
Sr. Vereador Otoni de Paula (PSC/RJ)
Vossa Senhoria se manifestou na tribuna da Câmara de Vereadores do Município do Rio de Janeiro-RJ, esta semana, defendendo a decisão do Prefeito Marcelo Crivella de reduzir o investimento da Prefeitura no Carnaval carioca. Contudo, usou argumentos que merecem algumas ponderações e esclarecimentos. Vamos a eles:
1 – “O carnaval (…) o da Marquês de Sapucaí (…) se tornou um verdadeiro culto a orixás, caboclos e guias com dinheiro público.”
O Carnaval é uma manifestação popular capaz de revelar muitas faces da cultura. Inclusive, aquelas minoritárias que costumam ser invisibilizadas ao longo do ano, como a de matriz africana. Talvez por isso, este fato incomode tanto a alguns grupos.
O desfile das escolas de samba não é culto, nem rito aos valores sagrados das religiões afro. Nossas liturgias têm lugares próprios para ocorrer. Mas é necessário esclarecer que o samba (patrimônio imaterial do Brasil), assim como as primeiras organizações em torno dele, surgem pelas mãos de pessoas ligadas ao Candomblé. Logo, este dado histórico e antropológico não pode ser desmerecido, nem deve ser esquecido.
Não se canta “Oh, Glória!” na Marquês de Sapucaí, Vereador, porque o samba, nem as Escolas de Samba, nasceram dentro das Igrejas. Como não se canta em ioruba, nem em bantu, os louvores a Jesus. Aliás, nada contra… Então, se V. Senhoria quiser desfilar no Carnaval, faça. Se não quiser, não faça. Mas não implique com quem quer fazê-lo.
V.S.ª mencionou, fora do contexto, e de forma jocosa, alguns trechos de letras de sambas enredo que citam expressões de origem africana, tentando justificar a existência de culto afro na Marquês de Sapucaí. Porém, referências linguísticas africanas não significam que durante o Carnaval há liturgia na avenida. Significam que há história, a nossa história. Significam que há resistência cultural, em uma sociedade que proibia o negro de falar sua língua, de manter sua identidade, de ser chamado pelo seu próprio nome.
“Despacho” (ẹbọ), é cultura sim; “galinha preta” (adìẹ dúdú), é cultura sim; como Bíblia é cultura. Pois as religiões são também traços culturais. Não desmereça, não distorça, não ofenda nossas práticas, Vereador.
Que pena, Vereador… Que pena que V. S.ª, enquanto pastor evangélico, enquanto autoridade pública, enquanto cidadão, ainda não aprendeu a respeitar valores religiosos. Inclusive, aqueles que pertencem a povos que foram perseguidos e hostilizados, como os cristãos foram no passado.
2 – “O carnaval se tornou uma fonte de lucro para a prostituição e para a promiscuidade”.
Dizer, genericamente, que “mulher pelada é prostituição”, é antes de tudo, um absurdo. Mulheres não costumam dar à luz vestidas, Vereador… Mulheres não costumam tomar banho vestidas, Vereador… Mulheres, no século XXI, não costumam fazer amor vestidas, Vereador… Serão então todas as mulheres prostitutas, Vereador? E se algumas realmente quiserem ser prostitutas, Vereador? Não estarão exercendo seu sagrado livre arbítrio? Aliás, é bom que se diga, Vereador, que prostituição não é crime no Brasil. O crime previsto é o de rufianismo, ou exploração da prostituição (art. 230 do Código Penal).
Diga-se de passagem, que “mulheres peladas” são também inspirações artísticas, Vereador. Ou poderiam ser.
3 – O Carnaval não dá o lucro anunciado à Cidade:
Importante destacar que o Carnaval, além de festa popular, de muitos matizes, é o maior evento do calendário oficial do Rio de Janeiro; ganhando, assim, também um contorno turístico. E o turismo constitui uma das atividades econômicas mais importantes da Cidade da qual V.Sª quis ser Vereador. Sabia? Quem não gosta de jogo, não é obrigado a ser vereador em Las Vegas…
A Prefeitura não tem mesmo que financiar interesses particulares. Nenhum deles. Mas, é bom que se diga, o Carnaval significa um acontecimento, cujo retorno financeiro beneficia a toda a população.
O Prefeito deve, sim, colocar dinheiro em hospitais, creches, educação, na cultura, no turismo, etc.. Para isso ele se propôs a administrar o Rio de Janeiro, com toda a diversidade e dificuldade que essa cidade tem.
4 – “… não é problema religioso”.
Realocar parte do subsídio do Carnaval não teria nenhuma conotação religiosa, se as religiões de matrizes africanas não fossem atacadas diuturnamente por inúmeros pastores e bispos neo pentecostais, nem por políticos eleitos por tais bases eleitorais. V. S.ª mesmo, Vereador, usou como argumento para apoiar essa medida do Prefeito, a difusão dada à cultura afro religiosa nos desfiles de escolas de samba. Então não é possível “tapar o sol com a peneira”, Vereador.
Transparência nas contas públicas, combate à violência e a interesses escusos devem ser uma constante. Por que só lembraram disso agora, falando sobre Carnaval?
Dito isto, Sr. Vereador, devemos lhe dizer que as opiniões são livres, mas o tempo de perseguição já acabou.
Como cantava o Mestre Caymmi: “Quem não gosta de samba bom sujeito não é/ Ou é ruim da cabeça, ou doente do pé”. A ANMA está atenta.
Márcio de Jagun
Presidente da Associação Nacional de Midia Afro