Por dentro da África
Por Charly Kongo (nascido na República Democrática do Congo, Charly vive no Brasil há 6 anos)
Em meu país temos um ditado que diz: “Em briga de elefante quem sofre é o mato” (“bitumba yaba nzoko matiti emonaka pasi”). É assim que vemos o que acontece com nosso povo. É isso que vive o povo congolês. Somos obrigados a viver a dor de uma briga que não é nossa; que não diz respeito ao nosso povo. É por isso que fugimos em diáspora. Eu mesmo fui pessoalmente vítima desta briga. E se posso agora falar sobre isso, é graças à ajuda que recebi. Graças à compreensão do povo que me acolheu.
Por isso, quero agradecer a vocês, a todas as pessoas que decidem sobre a vida dos refugiados que chegam a este país. Quero agradecer não apenas pela minha vida, mas pela vida de todos os meus irmãos e irmãs que podem viver aqui, graças à sua generosidade. Quero dizer a cada pessoa que faz parte desta plenária que sou profundamente grato.
Também quero agradecer pela oportunidade que me deram de falar sobre meu país na última plenária. Quero agradecer de modo especial a Paulo Abrão e à Virginius pela sensibilidade e pela solidariedade. Espero que minha participação possa contribuir para que os corajosos congoleses e congolesas que chegam ao Brasil possam receber a mesma solidariedade que eu recebi.
Agradeço pela oportunidade de falar aqui, porque esta experiência me transformou e me fez ver a responsabilidade que eu tenho em relação aos meus conterrâneos. Na ocasião de meu depoimento, tive a oportunidade de falar muitas coisas sobre os problemas em meu país. Mas penso que eu poderia ter falado ainda mais. A cada dia, são novas coisas que eu mesmo descubro sobre o que acontece. Cada vez que recebo um conterrâneo que chega até aqui, descubro coisas que eu não conhecia. Todos os dias eu pesquiso por notícias sobre meu país. E todos os dias descubro novos acontecimentos. Mais sofrimento. A cada dia, são novos deslocamentos, novas vítimas… e a mesma guerra, que nunca termina.
Todos sabem sobre a situação em Kivu Norte, o lugar onde a guerra é mais violenta. Mas poucos sabem sobre a violência que se espalhou sobre todo o país, que se infiltrou no cotidiano das pessoas, que já faz parte do dia a dia. As vítimas não têm a quem recorrer. As mulheres e meninas estupradas já não se queixam. São seis milhões de mortos. É um verdadeiro holocausto no meio da África. Mas tudo parece normal, como se fosse normal viver diariamente com medo. Como se fosse normal ver uma comunidade inteira ser destruída. Perder os parentes, os amigos da escola. Como se fosse normal não ter esperança.
É verdade que a situação em meu país tem mudado. Que muita coisa melhorou. É verdade que muitos grupos armados, como o M23, foram desmobilizados. Isso não quer dizer que vivemos em paz. Muito pelo contrário. Ainda vivemos o terror. Basta acompanhar as notícias para ver que, em muitas partes do país, principalmente no leste, ainda há situações de graves violações de direitos humanos.
A Rádio Okapi, veículo de comunicação da MONUSCO, noticia os grandes deslocamentos que ocorrem diariamente. Esses deslocamentos são causados por pequenas milícias formadas por grupos distintos, com interesses diversos. Nenhum desses grupos pretende destituir Kabila do poder. Isso não significa, no entanto, que a região esteja em paz e que o povo não esteja sofrendo. Mulheres e meninas continuam sendo vítimas de estupro. Os deslocamentos aumentam ainda mais a pobreza. A chegada de milhares de pessoas a um vilarejo aumenta a disputa por recursos básicos e empregos, e acentua ainda mais os conflitos étnicos. Um ciclo que aumenta a violência e afasta a esperança de paz.
Veja mais: 54 anos de independência do país que viveu um dos mais cruéis regimes de colonização
Mesmo agora, em 2014, as mílicias Maï-Maï foram acusadas de estuprar dezenas de mulheres, atacar e pilhar cidades da província de Maniema, localizada ao sul do Kivu Norte. Estes grupos se organizam em volta do tráfico de minerais preciosos, e a população local é vítima das constantes mudanças de interesses políticos e comerciais destes grupos armados. Existem outras milícias estrangeiras como a LRA (Lord Resistence Army, que atua na região da Província Oriental, e tem como líder, o “procurado” Joseph kony), FDLR (Força Democrática pela Libertação de Ruanda, que age na região dos Kivus e Maniema), ADF-Nalu (que atua em Kivu Norte, e hoje mantém cerca de 200 reféns, incluindo religiosos e trabalhadores do Médico Sem Fronteiras), e milícias locais as denominadas “Maï-Maï’s”, que diversificam-se em diversos grupos com objetivos e estruturas diferentes.
A situação do Kivu Norte não é o único problema grave no país. Há hoje na República Democrática do Congo outras regiões que convivem com conflitos armados e com a violência diária. Regiões e províncias sofrem com situações muito semelhantes as do Kivu Norte. Na Província Oriental, existem igualmente vários conflitos de natureza étnica. Em Katanga, a discriminação dos pigmeus tem sido acompanhada de grande violência. O objetivo é o extermínio deste grupo étnico. As mulheres desta etnia são sistematicamente estupradas. Há uma crença local segundo a qual manter relações sexuais com estas mulheres cura doenças. Além disso, milícias separatistas da região justificam o extermínio dessa população dizendo que contribuem com os militares do governo. O que acontece com os pigmeus é um genocídio em andamento.
Inúmeros conflitos têm origem étnica. Em um país onde cerca de 80% da população é bantu, e 20% se dividem em diversas etnias, os conflitos são constantes. Poderia citar muitos exemplos. Em 2009, na Província Equatorial, conflitos causaram enormes deslocamentos forçando até 50 mil pessoas a deixarem suas vilas. Os conflitos estavam relacionados à disputas por recursos naturais essenciais à sobrevivência das pessoas. Neste ano, houve novos conflitos na região, que fizeram com que cerca de 20 mil pessoas fossem deslocadas e mais de vinte mortas. A violência provoca mais escassez e a pobreza provoca mais violência, num ciclo sem fim. E muitas das pessoas tinham conseguido acolhida nos países vizinhos, como República do Congo (Congo-Brazzaville) e Angola, estão sendo agora violentamente expulsas.
Mesmo em Kinshasa, capital do país, não há paz. Não são apenas os opositores políticos que sofrem. Não são apenas os jornalistas, os ativistas e defensores de direitos humanos. Muitos têm chegado por conta da perseguição do governo, como ocorreu no caso dos seguidores da igreja de Joseph Mukungubila. Todos sabem que o governo determinou o fechamento das igrejas. Todos sabem que nenhuma voz dissonante é permitida. Que qualquer manifestação é brutalmente reprimida. A diferença entre o número de mortos divulgados pela mídia, e a realidade do massacre que ocorreu mostra isso. Foram centenas de mortos enterrados em fossas comuns, outras centenas de desaparecidos. Pessoas tiveram suas casas invadidas sem qualquer justificativa, e foram presas arbitrariamente. As prisões são verdadeiros calabouços, onde as pessoas morrem aos montes, como num campo de concentração
Em Kinshasa, assim como em qualquer cidade do país, o medo é parte da vida diária, principalmente na vida das mulheres. Como vocês sabem o estupro não é apenas uma arma de guerra, mas já é parte da “cultura”, da violência no país. É um crime impune. Nem mesmo as meninas se vêem como vítimas. Um dos crimes mais bárbaros do mundo se tornou uma coisa banal.
Mesmo na capital, a violência étnica está presente. Minha própria família já acolheu congoleses que tiveram que fugir de casa, depois de terem sido acusados de serem “ruandeses”. Acusar alguém de ruandês é, muitas vezes, suficiente para condena-lo à morte violenta. O Presidente Kabila é acusado por seus opositores e por grande parte da população de ser ruandês. O genocídio em Ruanda deixou marcas e ainda vive no Congo.
Poucos sabem sobre os “kulunas”: grupos de garotos armados com facões que praticam crimes violentos nas ruas. São como grupos de delinquentes, mas agem com extrema violência, se deslocando em colunas. São crianças e adolescentes entre 12 a 20 anos. Quase todos são órfãos da Guerra, muitos foram abandonados por seus pais e parentes e abandonados pelo país, deixados sozinhos. E a única solução que as autoridades encontraram para lidar com eles foi o massacre. No Congo, as autoridades querem a paz através do massacre, mesmo quando são crianças.
A violência infiltrou-se em nosso cotidiano, nas ruas, nas casas, nas relações de famílias. Os pais abandonam os seus filhos e suas filhas quando suspeitam que estão amaldiçoados. Os maridos abandonam as mulheres quando são estupradas. Os parentes abandonam aqueles infectados por HIV. Estamos todos metidos na guerra, mesmo não querendo.
Uma guerra que não termina e que deve causar ainda mais violência na medida em que as eleições de 2016 se aproximam e na medida em que o atual governo realiza manobras para se manter mais tempo ainda no poder, desrespeitando as leis e a decisão do povo.
Por tudo isso, nós não queremos abandonar nossos irmãos e irmãs. Fugimos a toda parte do mundo em diáspora. Mas estamos sempre tentando nos ajudar. Cada novo refugiado reconhecido aqui significa que mais do que uma vida foi salva. Além da vida da pessoa refugiada, a sua família também é salva. Aqui no Brasil, podemos trabalhar, reconstruir nossas vidas e ajudar nossas famílias. Isso é muito importante para nós, que saímos de um país onde 70% da população vive abaixo da linha da pobreza, onde o desemprego atinge cerca de 80%.
A remessa de dinheiro que os congoleses enviam para o país é tão importante quanto a ajuda financeira que os organismos internacionais enviam. É uma ajuda direta, livre dos desvios da corrupção do governo de nosso país. A diáspora é nossa chance de construir uma democracia, ainda que seja feita de fora. É nossa chance de ajudar nossas famílias e dar alguma esperança a nossos irmãos e irmãs. Somos refugiados de uma guerra terrível, uma das mais violentas do mundo. E ainda lutamos por nosso sustento e pelo sustento de nossas famílias. E ainda colaboramos para o crescimento do país que nos acolheu, porque trabalhamos e trabalhamos muito.
Lampedusa nos ensina tudo. O Ocidente fechou os olhos para a África, mas o povo africano luta por sua liberdade. Mães carregam crianças em embarcações precárias tentando chegar à Europa, apesar de todos os riscos, que são grandes. As pessoas continuam fugindo, porque o risco vale a pena. Deixar para trás o medo, a violência, a fome.
Assim como aqueles que chegaram aqui no Brasil antes de nós e que ajudaram a construir este país, queremos contribuir e também queremos uma vida melhor. Para nós e para nossas famílias. Desejar uma vida melhor não faz de nós “migrantes econômicos”. Todas as pessoas desejam uma vida melhor. Não podemos ser culpados por querer uma vida melhor. Somos refugiados porque fugimos em busca da paz. Mas também somos pessoas que desejam prosperidade; que desejam uma vida melhor.
Agradeço por nos ouvirem. E teremos muita gratidão por toda ajuda que puderem dar aos nossos conterrâneos, ajudando aqueles que tiveram a chance e a coragem de fugir. E também ajudando aqueles que estão tentando e não conseguem.
Por fim, quero fazer um grande apelo a todos vocês. Que continuem ajudando nosso povo, de todas as formas possíveis. Primeiro, ajudando todos aqueles e aquelas que corajosamente decidem fugir e ajudando os que não conseguem. Segundo, pressionando as autoridades de nosso país a respeitar a democracia e principalmente nosso desejo de escolher livremente nossos representantes. E, por último, incentivando as políticas de intercâmbio estudantil, amparando os jovens congoleses que venham estudar no Brasil, porque neles está há esperança de mudanças efetivas.
Obrigado, por Charly Kongo
Por dentro da África