Por Alexandre Costa Nascimento, Por Dentro da África
Lisboa – A Ribeira das Naus, à beira do rio Tejo, local que no passado foi o epicentro do comércio de pessoas escravizadas na metrópole do Império Português, receberá a partir do próximo ano um memorial às vítimas da escravatura. Orçada em 100 mil euros (aproximadamente R$ 388 mil), a construção do monumento foi apresentada pela Djass Associação de Afrodescendentes e aprovada pela população lisboeta com 1.176 votos na proposta do Orçamento Participativo de 2018.
O projeto surgiu de uma articulação da sociedade civil ligada ao movimento negro e de afrodescendentes como resposta à omissão do Estado português em relação ao seu passado colonial e escravagista. Apesar do papel central que desempenhou no comércio internacional de escravos, Portugal ainda demonstra dificuldades em lidar com este legado histórico — chama a atenção, por exemplo, o fato de que a capital do país não tenha, até hoje, um memorial ou museu em homenagem aos milhões de africanos escravizados ao longo de quatro séculos. Em Portugal, há apenas um pequeno museu dedicado à escravatura em Lagos, na região do Algarve.
“É uma grave e incompreensível lacuna que o Portugal do século XXI não assuma o seu passado com tudo o que ele encerrou. É notório que há uma recusa do Estado Português em reconhecer a escravatura como parte central do seu passado e os seus legados históricos, designadamente o racismo, como parte do seu presente”, avalia com exclusividade ao Por dentro da África Beatriz Gomes Dias, presidente da Djass. “Foi por sabermos isso que avançamos para a apresentação desta proposta. Se o Estado não promove esse reconhecimento histórico e essa homenagem às pessoas escravizadas, teriam de ser os cidadãos a fazê-lo”, afirma.
O monumento, prevê Beatriz, ajudará a promover um debate importante e necessário, capaz de colocar a sociedade e o Estado português frente a frente com sua própria história e com seu presente.
“Foram seis milhões de pessoas que Portugal traficou a partir do continente africano, é um verdadeiro Holocausto que hoje, enquanto democracia moderna e consolidada, deveríamos reconhecer sem hesitações. Não enquanto autoflagelação nacional, mas como ato coletivo de reconhecimento e de reparação. Reconhecimento do papel central que Portugal desempenhou neste hedionda prática que foi a escravatura e o tráfico de pessoas escravizadas, reconhecimento da resistência e da luta contra a escravatura que foi sempre protagonizada, ao longo dos tempos, pelas africanas e africanos, reconhecimento das continuidades históricas que fizeram com que a opressão da escravatura tivesse sobrevivido até hoje, manifestando-se de novas e diferentes formas, do trabalho forçado que se seguiu à sua abolição, perdurando até à democracia, ao racismo estrutural que permeia a sociedade portuguesa”, avalia a presidente da Djass.
Apesar da sua natureza eminentemente simbólica, o memorial servirá não apenas para assegurar a homenagem às vítimas da escravatura — seu objetivo principal –, mas poderá também contribuir para alargar e aprofundar o debate sobre a História portuguesa e a relação desse passado com as formas de racismo que ainda se manifestam na sociedade. Poderá também ser um primeiro passo para a criação, no futuro, de um museu dedicado ao colonialismo e à escravatura.
“Há que olhar de frente para o nosso passado, questionar as nossas respostas e combater a história única. Sabemos que é um debate difícil, porque confronta uma narrativa hegemônica sobre a História de Portugal, que se consolidou ao longo de séculos e que, em grande medida, invisibiliza a violência e opressão perpetradas pelo império colonial português, ao mesmo tempo que veicula visões romantizadas, de pendor lusotropicalista, da excepcionalidade do colonialismo português, promovendo Portugal como o campeão da miscigenação e do encontro benigno de culturas”, avalia Beatriz.
Escolha participativa
Apesar de a apresentação da proposta ao Orçamento Participativo de Lisboa ser relativamente simples, não foi um processo isento de sobressaltos. A ideia de construir o monumento às vítimas da escravatura foi inicialmente rejeitada pela comissão de avaliação e só foi aceita após recurso da associação proponente.
Durante as cinco semanas em que decorreu o período de votação — feito pela internet e através de telefone celular por meio de SMS –, a Djass percebeu que o interesse à proposta ganhou a adesão de grande número de pessoas. “Fizemos um esforço significativo de divulgação do projeto, não apenas nas redes sociais, mas igualmente nos eventos que realizamos ou nos quais participamos e através da distribuição de material informativo na rua. Contamos também com o apoio de diversas organizações e pessoas que fazem parte ou estão próximas do movimento negro e antirracista na divulgação do projeto”, relata Beatriz. “Por estes motivos, estávamos otimistas, mas não contávamos com uma votação tão expressiva. Estamos muito felizes e muito gratos a todas as pessoas que apoiaram este projeto”.
O concurso para concepção do projeto e a construção do memorial ficará a cargo da Câmara Municipal de Lisboa, com recursos orçamentários da cidade. A Djass, no entanto, pretende acompanhar de perto, com o apoio de pessoas e organizações de afrodescendentes e de africanos, para garantir que a sua execução fique a cargo criadores africanos ou afrodescendentes, tal como constava na proposta submetida ao orçamento participativo.
Também não é possível definir ainda uma data para a conclusão do projeto, atribuição que caberá à Câmara Municipal de Lisboa. Porém, como se trata de projeto com verba prevista no orçamento de 2018, provavelmente sua execução terá início no próximo exercício fiscal do município.
Além do memorial, outros 14 projetos foram aprovados. A administração municipal de Lisboa disponibiliza 2,5 milhões de euros (R$ 9,5 milhões) para executar as propostas escolhidas pelos moradores da capital portuguesa. No total, 128 propostas concorreram e recolheram um total de 37.673 votos.