Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Através de um programa de rádio, a cultura de oito nações se propaga. Em comum, elas têm a língua portuguesa, que saiu da Europa e “desembarcou” no Brasil, no Timor Leste e, principalmente, na África. Embaladas pela música de cada um desses países, o Lusofalante entrevista artistas, poetas e escritores, que, juntos, fortalecem e aprendem com a história que compartilham.
– Partimos dos contatos que mantínhamos há tempo com amigos nestes países. Criamos uma rede de indicações, que, somada à dose de espírito garimpeiro, nos proporcionou contatar pessoas especiais, em todos os lugares – disse, em entrevista ao Por dentro da África, Elizah Rodrigues, responsável pela iniciativa que reúne a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné Bissau, Angola, Moçambique, Portugal e Brasil – *Guiné Equatorial entrou para a comunidade em 2014).
Com lembranças da infância em Moçambique, a brasileira Elizah forma o trio junto com o radialista Marcelo Brissac e o músico Paulo Brandão. Em Moçambique, o artista Stewart Sukuma se junta à equipe e, em Portugal, o compositor moçambicano Costa Neto fecha o time.
Vencedor do Prêmio Roquette-Pinto da ARPUB (Associação de Rádios Públicas do Brasil), o programa, que tem duração de 30 minutos, entrevistou 22 pessoas do Brasil, Moçambique, Angola, Portugal, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Timor Leste. Ao todo, foram cerca de 4 meses para realizar o contato, produção, gravação e finalização do projeto dividido em 12 episódios. A estreia do Lusofalante foi em 2010, mas até hoje ele é veiculado, em rádios, internet, no canal da Universidade de Coimbra e em outras instituições de ensino.
– Um dos entrevistados tem particularmente para mim um sentido especial: o artista plástico e Mestre Malangatana Ngwenya. Tive o privilégio de conhecê-lo na minha infância em Moçambique. Ele foi o primeiro artista que vi pessoalmente na vida – recorda Elizah, que, durante uma exposição em Moçambique, foi fotografada enquanto olhava admirada para Malangatana .
– Então, antes de começar a entrevista, ele me dedicou palavras muito especiais falando sobre infância, reencontro, caminhos, tempo… Esse discurso ficou gravado fazendo-me chorar antes de conseguir editar a entrevista – recordou.
Malangatana Ngwenya faleceu logo após a entrevista, deixando uma obra vasta e palavras que ecoarão para sempre no Lusofalante. Como este encontro, Elizah destaca que outros tantos geraram relações próximas e a certeza de que todos tinham muito a falar e a ensinar.
A experiência em Moçambique traçou a estrada musical da brasileira, que hoje é cantora e produtora cultural. Quando ela retornou ao Brasil, teve um choque ao constatar que sabia tão pouco da África.
– Estar em Moçambique foi como estar na casa de meus avós, e é isso que todos os brasileiros sentem de alguma forma no continente africano e nas diversas “Áfricas”. A mesma sensação temos quando estamos em Portugal. Nos pertencemos mas não nos sabemos. Tendo a língua como um facilitador, porque não sabemos nada sobre artistas africanos ou portugueses: são poucos os livros que chegam às prateleiras, por que sabemos tão pouco sobre as línguas formadoras da nossa própria língua…
Para resgatar essa história que pouco sabemos, Elizah criou o programa lapidado com músicas (em média, quatro por programa) de artistas dos vários países lusófonos. A escolha do repertório foi relacionada ao tema debatido pelos entrevistados durante gravações no BRand Estúdio (no Rio de Janeiro), por skype, ou por telefone.
Confira abaixo um pouco mais do nosso papo!
Por dentro da África – Como a sua vivência na África, especificamente em Moçambique, traçou os rumos do programa?
Elizah Rodrigues – A curiosidade nos dá maiores possibilidades de questionar nossas próprias certezas. Muitas vezes, somos como filhotes de gambás agarrados em nossas certezas e não nos arriscamos fora delas. Olhar o outro exige uma disponibilidade e uma percepção mais aberta do mundo. Nos damos conta que as fronteiras fomos nós mesmos que inventamos, as distâncias são do tamanho que nossa curiosidade ou a falta dela nos permite caminhar. Moçambique me trouxe este desejo, de questionar o que é longe, de chacoalhar minhas certezas, cair delas e dar passos para que eu possa olhar o mundo pelos mais diversos ângulos.
PDA – Qual a importância de um programa de informação sobre o que diz respeito à nossa identidade, ao nosso passado, aos nossos elos?
ER – Quanto mais nos olharmos, mais teremos para revermos nossos conceitos e preconceitos. Vivemos em um país racista, xenófobo, que se vira de costas para a América Latina e pouco ou nada sabe do continente africano. Somos um país pouco generoso com nossa diversidade interna. Sabemos tanto das Áfricas quanto dos Sertões. Sabemos muito pouco de um estado para o outro, de uma cidade para outra, de um bairro para o outro, de uma rua para a outra, de um vizinho para o outro.
PDA – Quais foram as suas descobertas?
ER – Mia Couto, escritor moçambicano, fala: “Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco.” Acho que o que descobri foi que o movimento em direção ao outro nada mais é que o movimento em direção a nós mesmos. Quando nos abrimos a percorrer estes caminhos, abre-se em nós um leque de possibilidades de aprofundamento do que queremos da vida e do que nela é, de fato, a essência. Esta inquietação, somada à curiosidade, é do que, penso, devemos nos alimentar.
PDA – O programa fala de literatura, língua, cultura. Muitos sentimentos não se traduzem em palavras. Você falou que o “mande o beijo”, em português, não se traduz para outra língua porque em vez de “mandar”, você “beija” O que não mais você aprendeu que não se traduz para a língua?
ER – A língua traduz a forma como nos relacionamos com o mundo. Em ronga, uma das vinte línguas de Moçambique, não tem como você escrever em um email “um beijo”, ou mandar um beijo, porque, para esta cultura, o beijo só pode ser dado. No máximo, você pode desejar ou fazer votos à outra pessoa dizendo ou escrevendo, por exemplo, “Salanini”, ou seja “fique bem”.
Em uma das Línguas Indígenas do Brasil, a linguista Ruth Monserrat, uma das entrevistadas, contou que ao traduzir o “padre nosso”, oração cristã bastante conhecida, na verdade estava assim “padre nosso que dizem que está no céu”. Porque nesta Língua, para uma afirmação, é necessário haver a comprovação do fato. Por trás da língua, e o português convive com mais de 300 outras línguas, está uma vasta e rica cultura. A língua, sendo um ser vivo e orgânico, recicla-se e reinventa-se o tempo todo.
PDA – Quais são as ligações de história que podemos ver no programa?
ER – A cada entrevista, nos deparamos com informações que contam e recontam a história por ângulos diversos, e por isso é tão fascinante escutar o outro.
Por exemplo, Ruth Monserrat, do Brasil, fala sobre as Línguas Indígenas do Brasil desde o descobrimento. Ela salienta que a primeira língua falada no país foi o Tupinambá, inclusive adotada pelos primeiros portugueses que aqui chegaram. Fala também sobre seu trabalho como pesquisadora, que é o de criar gramáticas para Línguas Indígenas que não a possuem como formato de escrita, fazendo com que os povos indígenas usufruam do direito de serem alfabetizados em suas línguas e que assim as preservem. Aborda também o quanto das Línguas Indígenas estão presentes na língua que falamos hoje no Brasil.
Outro exemplo é Joel Rufino dos Santos, que fala sobre o quanto não nos sabemos africanos. O quanto da cultura africana e, por consequência, das línguas africanas, carregamos intrinsicamente na nossa maneira de estar, de ser, de falar. Fala sobre seu livro “Na Rota dos Tubarões”, dirigido ao público jovem, sobre o percurso dos navios negreiros. Observa o quanto deste esquecimento histórico ainda nos acompanha e não nos permite plena consciência de quem somos.
PDA – Como as questões sobre política, desenvolvimento e democracia são tratadas no programa?
ER – Cada entrevistado traz informações preciosas de todo o processo de construção histórica e política de que faz parte. Falar sobre línguas que desapareceram, ou línguas proibidas, ou línguas invisíveis, são maneiras de se trazer à tona a história de povos que foram dizimados, liberdades que foram conquistadas, versões de uma mesma história, contadas a partir do olhar de quem as conta.
Calane da Silva, poeta moçambicano, fala das línguas em Moçambique, seu papel no processo de independência do país, além de analisar o léxico da Língua Portuguesa Moçambicana, que possui várias influências, inclusive asiática. Aborda aspectos históricos do processo da vinda dos escravos moçambicanos para o Brasil e de como, somente sessenta anos após a Proclamação da República, o país decreta a Abolição da Escravatura.
João Mota fala sobre São Tomé e Príncipe e sua diversa e rica cultura, e por consequência, suas várias línguas. Fala sobre a CPLP, da qual participa, bem como de outros organismos que têm como objetivo aproximar os países lusofalantes através da educação e da arte.
José Amaral fala das duas línguas oficias do Timor Leste, o português e o tétum. Fala sobre a independência de Portugal nos anos 70 e a consequente invasão por parte da Indonésia. Ressalta a diversidade lingüística do país e de como, após a libertação total em 2002, começa o processo de reconstrução da identidade timorense.
Para conhecer o Lusofalante, ouça os episódios abaixo! O conteúdo está também no itunes da Universidade de Coimbra!
http://www.programalusofalante.blogspot.com.br/
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Por dentro da África