O Islã na África: uma imagem que deve superar as ações de grupos terroristas no continente

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Mesquita em Abuja, Nigéria – Foto: Keep Jones

Natalia da Luz, Por dentro da África 

Rio – O crescimento e a atuação de grupos radicais islâmicos dentro da África vêm expondo a imagem do islamismo, fazendo com que a religião, que tem o Alcorão como livro sagrado, seja tema de debate em toda a parte. Diante desse “retrato” veiculado pela mídia, ligando o Islã às ações terroristas dentro do próprio continente, parece urgente a observação de que a atuação desses grupos não pode e nem deve classificar a prática da religião em um continente inteiro.

– Em muitos casos, quando olhamos para a África Contemporânea, somos seduzidos por uma imagem metafórica sobre o que é o islamismo ou um conjunto de crenças e conceitos religiosos que nos ajudem a entender o continente inteiro – disse, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, Murilo Sebe, doutor em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo.

Murilo Sebe – doutor em Estudos Árabes

O argumento de Murilo pode ser associado, por exemplo, à frequente exposição na imprensa do grupo terrorista nigeriano Boko Haram e do seu ativismo político islâmico do norte da Nigéria. Para ele, o grupo negocia o que foi a experiência pós-Conferência de Bandung e as novas questões ligadas à África e ao Islã nesse momento. As notícias, portanto, favorecem a uma imagem em toda a África associada a esse tipo de ação.

Conferência de Bandung

A Conferência de Bandung reuniu 23 países asiáticos e seis africanos (Gana, Egito, Libéria, Etiópia, Líbia e Sudão) em Bandung (Indonésia), entre 18 e 24 de Abril de 1955, com o objetivo de mapear o futuro de uma nova força política global,visando à promoção da cooperação econômica e cultural afro-asiática, como forma de oposição ao que era considerado o colonialismo ou neocolonialismo, por parte dos Estados Unidos e União Soviética, durante as primeiras décadas da chamada “Guerra Fria”. Nesse período, grande parte dos países africanos ainda era colônia de países europeus.

Conferência de Bandung – Foto: Arquivo http://www.hkw.de/

O encontro propôs a criação de um “tribunal da descolonização” para julgar os responsáveis pela prática de políticas imperialistas, entendidas como crimes contra a humanidade, mas a ideia foi vetada pelos países centrais. O encontro gerou uma declaração de dez pontos sobre “a promoção da paz e cooperação mundiais”, baseada na Carta das Nações Unidas e nos princípios morais do premiê indiano Jawaharlal Nehru, um dos estadistas presentes no encontro:

1. Respeito aos direitos fundamentais;

2. Respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações;

3. Reconhecimento da igualdade de todas as raças e nações;

4. Não-intervenção e não-ingerência nos assuntos internos de outro país;

5. Respeito pelo direito de cada nação defender-se, individual e coletivamente;

6. Recusa na participação dos preparativos da defesa coletiva destinada aos interesses particulares das superpotências;

7. Abstenção de todo ato ou ameaça de agressão, ou do emprego da força, contra a integridade territorial de outro país;

8. Solução de todos os conflitos internacionais por meios pacíficos;

9. Estímulo aos interesses mútuos de cooperação;

10. Respeito pela justiça e obrigações internacionais.

Andy Gilham – The Great Mosque of Djenne, Mali,

Desconstrução do Islã na África

A atuação de grupos radicais associados ao Islã na África, diante da atuação de grupos terroristas de origem islâmica como o Boko Haram (Nigéria), Al Shabaab (Somália), MOJWA (Movement for Oneness and Jihad in West Africa) ou AQIM (Al-Qaeda do Magreb Islâmico) e Ansar Dine (Mali), é crescente e responsável por reforçar uma imagem cheia de estereótipos acerca da religião muçulmana e dos próprios africanos.

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Não queremos vitimizar ou enaltecer o  Islã na África, mas operar com os valores e conceitos que a própria cultura islâmica desenvolveu. Nesse sentido, devemos olhar com mais atenção para alguns conceitos dentro do Islã como a noção de justiça social: ao contrário de grande parte da expectativa cristã, que precisa viver e passar por determinadas tensões para experimentar o “paraíso”, na proposta de justiça social islâmica, não é necessário esperar a morte para que ter garantida essa experiência. Essa ideia se apresenta como um pilar para o Islã crescer em áreas onde certas crises sociais existem – destacou o também pesquisador do Laboratório de Estudos Africanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Reprodução de TV Boko Haram

A relação entre o crescimento de uma corrente mais radical e que reivindica um espaço político, pode ser exemplificada com o próprio caso do Boko Haram. Notoriamente, a atuação dos terroristas é mais intensa em regiões economicamente deprimidas (a Nigéria tem 70% de sua população vivendo com apenas 1 dólar por dia) e possui um trabalho de persuasão – no sentido de que  “o melhor caminho para combater o sistema de governo corrupto seria a aplicação rigorosa da Sharia“.

Veja também: Conheça o Boko Haram: o grupo armado que ameaça a ordem na Nigéria

O norte da Nigéria possui uma das mais altas taxas de mortalidade infantil e mortalidade materna de todo o mundo. De acordo com artigo de fevereiro passado do United States Institute of Peace (What is behind latest Nigerian attacks by Boko Haram), as principais razões de os jovens se aliarem ao Boko Haram são: desemprego, pobreza, manipulação por líderes religiosos extremistas e falta de consciência dos autênticos ensinamentos do Islã.

Campanha Bring Back our Girls

Murilo destaca que, além da ideia de justiça social, é necessário levar em conta o conceito de independência construído na Conferência de Bandung, de que não há uma separação da independência do indivíduo em relação às suas questões morais e a independência política do país. Nesse sentido, o próprio conceito de nação precisa ser revisto porque ele pode ter múltiplos significados, estar vinculado a projetos políticos distintos, e ser traduzido pela defesa das fronteiras de um Estado nacional moderno, mas também como uma sobreposição da comunidade nacional à grande comunidade religiosa.

Um Estado único entre o Iraque e Síria

Essa relação, que supera as fronteiras geográficas em nome da religião, pode ser observada neste momento, no cenário político e social da Síria e do Iraque (Oriente Médio), onde parte dos sunitas (grupo majoritário na Síria e minoritário no Iraque) lutam juntos, com o mesmo propósito de construir um Estado baseado nos princípios religiosos.

Ilustração – http://www.stratfor.com/analysis

A invasão dos Estados Unidos no Iraque em 2003, provavelmente, contribuiu para o crescimento de grupos militantes como o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS), uma milícia radical formada em outubro de 2004 por insurgentes iraquianos. Assim como outros grupos rebeldes da região, o grupo é um “movimento social com um braço armado”.

Em janeiro de 2014, a organização declarou que o território que controlava passaria a ser um Califado (forma islâmica de governo que representa unidade e liderança política) na região (que envolveria Síria, Iraque e também o Irã). No último domingo (dia 29 de junho), os rebeldes anunciaram a criação do Estado “Califa Ibrahim”.

– Do ponto de vista político, isso se traduz quando as fronteiras da nação se unem às fronteiras religiosas, mas é importante lembrar que nem todos os grupos se alinham a essa política de luta armada específica. Por isso, é preciso  se afastar dos métodos para classificar tudo, seja na África ou em qualquer outro lugar – contou o professor do Departamento de História da UFRJ, lembrando que muitos desses grupos não querem a implantação de um Califado nos moldes do século VII, mas defendem a proposta de tomar o poder como qualquer grupo político e radical.

Agenda social na África

Kairouan Mosque – Foto: MAREK SZAREJKO

O Islã tem presença forte no norte do continente (Egito, Líbia, Tunísia, Argélia, Marrocos, Saara Ocidental) e, atualmente, se expande com taxas consideráveis na região Subsaariana, onde há três elementos fundamentais para a agenda social que garantem essa expansão: fome, violência e corrupção.

Murilo lembra que, nos anos 80 e 90, a ideia predominante era a de uma África que não poderia viver com seus próprios recursos, que precisava da assistência permanente do Ocidente, um cenário que vem se revelando o oposto se levarmos em conta o crescimento econômico de cerca de 5% para toda a região que fica abaixo do deserto do Saara, além do aumento da importância geopolítica de novos atores internacionais na África, como os países do BRICS, especialmente a China e a Rússia.

– Quando olhamos para a África hoje, vemos muitas imagens que não estão apenas associadas à escassez, mas à fartura. É muito comum, por exemplo, encontrar na costa do Saara Ocidental (que pertenceu ao Marrocos e foi colonizado pela França e Espanha) navios espanhóis pescando em grande quantidade. Em vez de a Espanha explorar o seu território marítimo, ela vai para a Costa do Saara Ocidental e, desta forma, seus navios retiram parte desses recursos. Então, este também é o lugar da fartura – lembrou o especialista em História Moderna e Contemporânea do Oriente Médio e Norte da África.

Três cenários fluidos

Sankore Moske, Timbuktu – Foto: Baz Lecocq

Atualmente, três situações ganham destaque no continente africano, quando pensamos em governo e islamismo:  o cenário onde representantes do Estado reivindicam o retorno à “essência” do que entendem ser a religião (nos moldes mais tradicionais, com aplicação da Sharia, por exemplo), o cenário no qual os grupos rebeldes querem tomar a política reivindicando a construção de um regime que vai além do Estado nacional e o cenário onde o Estado e a prática da religião convivem sem tensões explícitas.

– Depois da Primavera Árabe, o fato de os países passarem por um processo de islamização da lei foi natural. Aqui no Brasil, por exemplo, a moral cristã determina algumas leis, e levamos isso tranquilamente. Qualquer candidato para cargo do Poder Executivo, se fizer uma proposta de descriminalização do aborto, perde a eleição, então, a moral cristã está na política daqui também – comparou o professor.

Apesar de claros, esses cenários não são tão rígidos. Na Líbia, por exemplo, Murilo ressalta que há a atuação das milícias e a tentativa da islamização da lei, o que mostra que a fronteira é muito frágil porque, no mesmo período, é possível ter um Estado que passa de um cenário para o outro, ou um Estado que convive com mais de um desses cenários.

-Para aqueles que passaram pela Primavera Árabe na África (Líbia, Tunísia e Egito), o contexto é mais sério porque a grande maioria da população quer ter a sua vida normal (trabalhar, vender seus produtos, levar seus filhos para a escola…) independentemente do regime, enquanto outra parte defende a revolução, a queda de um regime e a experiência da democracia.

Veja mais: Sudanesa é condenada à morte por sua opção religiosa

Crianças na Líbia – Foto: Natalia da Luz

Murilo acredita que esse retorno à “essência” da cultura e da religião é mais um discurso político, assim como foi o da Irmandade Muçulmana (partido que assumiu o poder no Egito, após a queda de Hosni Mubarak), já que, na prática mesmo, o país precisa do Exército e do Judiciário para implantar suas ideias, ambos ainda vinculados à velha estrutura política egípcia que garantiu décadas de governo Mubarak.

– Na Tunísia, o Ennahda (partido islâmico), grupo que era considerado ameaçador, foi eleito, e não representou a radicalização da religião na política do país. Já na Líbia, o Estado nacional é fragmentado, e o exército se divide junto de mercenários e milícias. Na Líbia, as propostas de transformação não são tão efetivas, mesmo optando-se pelo radicalismo ou pelo jogo tradicional do poder – ponderou o professor.

Islã na África Subsaariana

islam africaO norte da África foi amplamente atingido pelo Islã, desde o século VII, mas encontrou uma barreira para a sua expansão no Sahel (faixa de 500km a 700km de largura, em média, e 5.400 km de extensão, situada na África Subsaariana, entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana do Sudão, ao sul). A “barreira”, aos poucos, foi se dissolvendo e esse crescimento coincidiu com o processo de descolonização dramático em áreas de fragilidade social.

Para Murilo, o Islã, como um todo, vive um momento e cuidado dentro da geopolítica dos países islâmicos. Com a Primavera Árabe, novos atores surgiram, como a Turquia (nos últimos anos, o país aumentou suas relações com a África, com o qual é unido por laços históricos da época do Império Otomano) e o Catar, que está chegando com força total, inclusive, reconhecendo os rebeldes como o governo da Síria.

– O Catar  tem, a médio prazo, a intenção de chegar à África substituindo a posição da Arábia Saudita até os anos 2000 e a pretensão de se transformar no epicentro cultural do mundo islâmico. Acredito que, dentro de um mesmo país, você tem uma gama de diferenças e rivalidades que não são facilmente resolvidas quando se junta ao cenário de fragilidades sociais, e as pessoas precisam garantir sua sobrevivência. Isso é próprio da experiência humana, e é o que podemos ver na África – completou Murilo.

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