Por Washington Nascimento, Por dentro da África
Político e escritor angolano, Raul Mateus David nasceu em 23 de abril de 1918, na província de Benguela, na cidade da Ganda, Angola. Alfabetizado por sua madrinha portuguesa, fez ensino secundário no Seminário Menor do Sagrado Coração de Jesus, ligado aos padres do Espírito Santo, no Galangue (1932-1938). Saiu do Seminário em 1938, com 19 anos de idade, no 6ª° ano, solicitando o bilhete de assimilado (o “atestado de assimilação”).
Depois disso foi trabalhar na administração civil da Gamba, partindo para uma casa comercial de Benguela onde aprendera contabilidade. Anos mais tarde dirigiu-se para um escritório contábil no caminho de Ferro de Benguela, de onde foi para Huambo, Mampesa e uma série de outros lugares, onde, segundo ele, teve contato mais próximo com a “vida indígena” (nativa).
Começou a publicar tarde, por volta dos cinquenta e seis anos. Suas obras se destacam pelo estudo do passado colonial nas zonas interioranas de Angola e a denúncia do colonialismo português, como em Colonizados e colonizadores, publicado em 1974, Escamoteados na Lei de 1977; Contos Tradicionais da Nossa Terra (I) em 1978, Narrativas ao acaso de 1979, Contos Tradicionais da Nossa Terra (II) de 1981, Cantares do Nosso Povo, publicado em 1988; Ekaluko Lyakwafeka: brado patriótico de 1988, Crónicas de Ontem para Ouvir e Contar de 1989 e por fim em 1997, Da Justiça Tradicional dos Umbundos.
Além disso, foi um dos membros fundadores da União dos Escritores Angolanos (UEA) e adepto do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), sendo adido cultural na Embaixada de Angola na Zâmbia, nos fins dos anos oitenta e nos anos noventa e dois mil exerceu a função de Direção provincial da Cultura e na Televisão Pública de Angola. Até os últimos anos de sua vida manteve-se ativo, atuando como ator no filme Comboio da Canhoca de 2004 ou ainda colaborando ora com a cessão de poesias para serem musicadas ou mesmo colaborando em pesquisas distintas como, por exemplo, sobre os judeus em Angola.
Faleceu em 20 de Fevereiro de 2005 em Lobito, província de Benguela. Quando de sua morte o escritor Boaventura Cardoso (2005), então ministro angolano da Cultura, disse que era uma biblioteca que desaparecia, uma enciclopédia viva do passado colonial. Por conta de sua morte deixou ainda duas obras inconclusas, Benguela no espaço e o tempo e Baronesa entre rios.
Em grande parte falou através de suas obras literárias, apesar de conceder algumas entrevistas eventualmente. Tanto as entrevistas quanto as obras literárias podem ser entendidas enquanto discursos de um homem extremamente vivido (seu primeiro livro foi publicado quando já tinha 56 anos e dera a entrevista para Michel Laban, com setenta anos de idade), produzidos em um contexto específico: guerra anti-colonial, guerra civil e a necessidade de imaginar uma nação para Angola.
David foi um personagem de fronteira, produto da interação cultural produzida nos entre-lugares da sociedade colonial, entre as culturas portuguesas e angolanas, o campo e a cidade, o mundo não letrado e letrado. Nas palavras do também escritor David Mestre, um “[…] assimilado clássico, transmigrante de culturas, lusófono sem desprimor das referências umbundu pela síntese das interpretações” (MESTRE, 1985, p. 104). Sua história nos possibilita entender como um assimilado viveu, pensou e escreveu sobre a sociedade colonial e as políticas de assimilação colonial de Portugal em Angola. Além disso, de maneira mais tangencial como ele, ligado ás estruturas do colonizador, lidou com os desafios de imaginar a nação angolana em sua produção escrita e oral.
A literatura de David: pensar e escrever a sociedade colonial, imaginar a nação
A literatura de David faz parte de um conjunto de escritos que tem na reflexão sobre a sociedade colonial um dos seus elementos centrais. Nestas obras o narrador funciona, segundo Inocência Mata (2012), como griot, ou seja, um cronista dos eventos do cotidiano, fazendo uso de suas memórias e experiências individuais e coletivas. Desde grupo fazem parte nomes como Luandino Vieira, Manuel dos Santos Lima, Arnaldo Santos, Uanhenga Xitu, Pepetela, Boaventura Cardoso… e Raul David.
Este conjunto de obras cumpre um papel formativo importante, em um contexto no qual a história de Angola, enquanto uma escrita científica produzida pelos próprios angolanos, ainda estava pouco ou não escrita. Assim temas da história local da primeira metade do século XX ressaltam nas obras de David como a imposição de culturas obrigatórias (sisal, café…), opressão e resistência ao colonialismo, formas de justiça nas sociedades tradicionais umbundo, missões e missionários no interior de Angola (sobretudo Benguela), as relações comerciais existentes e seus personagens como o aviante, funante, roceiro, contratado etc. Apesar disto David não tem merecido ao longo dos anos, muitas análises de sua produção literária, sendo tangencialmente citado ou referenciado por alguns pesquisadores e estudiosos15.
Como político-escritor-historiador podemos pensar David enquanto um literato que fez história e um historiador que fez literatura, por outro lado, as posições do homem político atravessaram todas as entrevistas e obras literárias analisadas. Como queria fazer-se entender usou no inicio de suas obras prólogos, “esclarecimentos” e citações. Desta maneira buscou direcionar o olhar do leitor para que este observasse o que ele desejava. O que não impede, entretanto, a existência de uma série de discursos diferentes e por vezes até divergentes, as polifonias, que se entrecruzam e se chocam nas suas obras.
Colonizadores e Colonizados foi o seu primeiro e até hoje mais famoso livro. Trata-se de uma série de relatos sobre a colonização portuguesa e sociedade em Angola e São Tomé na primeira metade do século XX16. Em grande parte as histórias se passam na região de Benguela e trazem a ideia de um universo social cindido entre colonizadores e colonizados, brancos e negros. A mensagem que parece está claro nesta obra de David é de que mesmo em uma realidade de personagens plurais, vivia-se uma sociedade segregada, onde o meio termo não era uma boa escolha naquele contexto de violência e injustiça.
Seu segundo livro Escamoteados na Lei traz contos inspirados em situações reais de uma Angola colonial profundamente marcada pela violência do colonizador e pela resistência dos colonizados. Nesta obra a preocupação com os fatos históricos é maior do que a própria criação literária. Os contos do livro tem um caráter de denúncia no qual destaca a tomada das terras dos nativos, imposição de culturas agrícolas obrigatórias, “leis de papel”, injustiças com acusações falsas de crimes…
Os livros que se seguem a Escamoteados…, Contos Tradicionais da Nossa Terra (I), Narrativas ao acaso, Contos Tradicionais da Nossa Terra (II), Cantares do Nosso Povo e Crónicas de Ontem para Ouvir e Contar consolidam o viés histórico da produção literária de David. Nestes livros tenta-se mostrar aspectos da cultura tradicional de Angola, assumindo definitivamente a sua posição enquanto um pesquisador preocupado com o mundo rural angolano, com suas tradições e histórias.
Depois de uma lacuna de quase dez anos David publicou em 1997 o seu último livro, Da Justiça Tradicional dos Umbundus, que segue os mesmos padrões anteriores destacando a violência do colonizador ao submeter povos. Encerrava-se assim um ciclo de obras que traziam um grande combate pela história de seu país e povo, mas também por sua identidade.
Washington Santos Nascimento
Professor de História da África da UERJ