História do Brasil: Guerra à vadiagem e a exploração do negro

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Vendedores de capim e leite – Quadro de Jean-Baptiste Debret.

GUERRA À VADIAGEM: NEGRO FOI FEITO PRA TRABALHAR!”

Carlos Carvalho Cavalheiro, Por dentro da África

A historiografia tradicional sorocabana enaltece a ocorrência da abolição
antecipada em 25 de dezembro de 1887, oportunidade em que o Clube Emancipador
proclamou a redenção da cidade de Sorocaba (no estado de São Paulo) e a libertação dos últimos cativos.

Muitos são os fatores que explicam essa antecipação. A incipiente industrialização e o dinheiro acumulado com as feiras de muares contribuíram para que as relações entre capital e trabalho ocorressem de outra forma com o crescimento do trabalho assalariado. O jornal Diário de Sorocaba, em artigo que comemorava a abolição antecipada, afirma que os paulistas foram convencidos de que não podia haver meia liberdade ao escravo e que por isso “concederam-lhes liberdade incondicional e salário, como aqui alguns fazendeiros adotaram já…”. 1

Outro fator é o crescente número de entrada de imigrantes no Brasil, estimulada
pelo deputado sorocabano Ferreira Braga (que também pertencia ao Clube
Emancipador) o qual desde o início da década de 1880 pelejava para a promulgação de
leis e previsão no orçamento com a finalidade de estimular a imigração. 2

Considere-se também a própria evolução do movimento abolicionista sorocabano (que na década de 1880 recebe apoio do teatro, da imprensa e filia-se ao movimento dos caifazes, segundo Aluísio de Almeida) que vai promovendo alforrias eventualmente. O aumento do preço do escravo – estimulado com o fim do tráfico africano (1850) e interprovincial (década de 1880) – também tornava economicamente inviável a manutenção de trabalhadores escravos. Ainda há de se levar em conta o episódio do Êxodo de Capivari, quando centenas de escravos liderados por Preto Pio abandonaram as fazendas daquela cidade numa fuga em massa, passando por Porto Feliz, Sorocaba, São Paulo e rumando até
Santos para o Quilombo do Jabaquara.

Essa fuga, ocorrida em fins de outubro de 1887, certamente convenceu os últimos renitentes senhores de escravos de que a instituição da escravatura não tinha futuro. Afinal foi um evento de proporções assustadoras, repercutindo na decisão do Clube Militar em oficiar ao império comunicando a sua decisão de não mais perseguir escravos fugidos.

Toda essa introdução se faz necessária para que não reste dúvida de que a
abolição antecipada não ocorreu por conta de um crescimento da consciência da elite
sorocabana que, estrategicamente, escolheu a noite de Natal para emancipar seus
escravos. A despeito da suposta boa intenção de alguns, o que se pretendia mesmo era
continuar explorando a mão-de-obra do negro de alguma forma. Um exemplo disso é
que boa parte das cartas de alforria dessa época eram condicionais, ou seja, o ex-escravo
para conseguir sua liberdade completa se comprometia a trabalhar alguns anos para o
mesmo senhor. Outro fato que corrobora a afirmação acima é que alguns senhores,
passados meses da abolição antecipada – certamente acreditando que o governo
imperial acabaria com a escravidão ainda em 1887 ou começo de 1888 – arrependeram-
se e procuraram re-escravizar os antigos cativos.

Entretanto, o que mais desnuda a hipocrisia da elite sorocabana é o incentivo e
promoção de uma guerra à vadiagem ocorrida logo após a decretação do fim da
escravidão. A classe dominante queria fazer crer que o aumento da vadiagem estava
diretamente relacionado ao crescente número de libertos, do que se depreende que, para
essa elite, os escravos não estavam moralmente preparados para a vida em liberdade.

O jornal Diário de Sorocaba, cujo redator Maneco Januário era tido como um
dos mais ferrenhos abolicionistas, não cansou de solicitar a atuação das autoridades para
que fosse reprimida a vadiagem.

Por outro lado, o mesmo jornal pedia aos libertos que se aplicassem ao trabalho
com esforço e tenacidade para que “se mostrem dignos da condição que ora têm”. 3

A autoridade policial inicia a prisão daqueles que não possuíam trabalho fixo e
regular, os chamados vadios. Verifica-se que a liberdade do negro era relativa: tinha a
liberdade desde que se adequasse à lógica do capital e trabalho, ou seja, que como
proletário não possuidor dos meios de produção vendesse sua força de trabalho para o
burguês empregador.

Ideologicamente, todo aquele que conseguisse sobreviver fora dessa lógica do
trabalho alienado era tido como exemplo pernicioso uma vez que servia de paradigma
aos que não quisessem se alinhar dentro do modelo imposto. Era o ócio que
incomodava. Era incômodo ao Estado – em toda a sua amplitude – aos diversos quadros
da elite e mesmo àquele que era explorado, mas que não conseguia ou não queria
transcender a essa exploração.

A guerra à vadiagem em Sorocaba, iniciada em fins de 1887 e recrudescida a
partir de maio de 1888, era perversa na medida em que associava o crescimento da
vagabundagem com a nova condição jurídica do negro, que de escravo passa a ser
homem livre. Livre, mas sem liberdade para escolher seu próprio destino, sem
condições de obtenção de trabalho digno, quer pelo preenchimento dos postos de
trabalho pelos imigrantes brancos, quer pela falta de qualificação profissional imposta
pelo cativeiro.

O escravo do eito, aquele que trabalhou no plantio nas fazendas, não
encontrava colocação nas atividades urbanas que requeressem qualificação.
Como trabalhadores marginalizados esses negros formarão uma espécie de
lumpemproletariado ou um exército de reserva para o capital. Discriminados, são
perseguidos e presos. Essas prisões eram enaltecidas e aplaudidas pela imprensa
sorocabana que sempre que podia evidenciava a participação dos negros nessas
detenções.

No entanto, as prisões vão perdendo sua força moral com o passar do tempo.
Afinal, não havia justificativa para a manutenção do preso por vadiagem no cárcere por
muitos dias. Ademais, dentre os considerados vadios havia aqueles que por
uma questão social e de preconceito não obtinham trabalho formal. Portanto, não era a
iminência da prisão que iria modificar esse fato uma vez que a razão do desemprego
estava dissociada da vontade de trabalhar.

O negro não obtinha trabalho nem sempre porque não queria, mas sim, em muitos casos, pela falta de oportunidade. Nesse momento a imprensa apoiava o recrutamento como forma de coibir a vadiagem ou mesmo como meio de diminuir o trânsito dos vadios pelas ruas da cidade.

Diversos artigos e notas sobre o recrutamento dos vadios são veiculados no Diário de
Sorocaba. Uma vez mais a elite sorocabana dá um tiro n’água. A última vez que os
sorocabanos ouviram falar em recrutamento foi durante a Guerra do Paraguai que
deixou nos campos longínquos muitos corpos de soldados brasileiros. A prática da caça
de voluntários a laço ainda estava fresca na memória de todos. Consequência: em
Sorocaba, começou a faltar víveres porque os produtores rurais deixavam de ir ao
mercado vender a sua produção com medo de serem recrutados.

Não adiantou o jornal esclarecer que desta vez seriam recrutados apenas os
vadios. Ninguém acreditava nas boas intenções do governo dado o que ocorrera décadas
antes com a guerra contra o Paraguai. Desse modo, a elite teve de abandonar por algum
tempo a guerra contra a vadiagem iniciada especialmente quando os escravos negros
receberam a liberdade.

1 – Diário de Sorocaba, 27 dez 1887, p. 01.
2 – CAVALHEIRO, Carlos Carvalho. Scenas da Escravidão. Sorocaba: Crearte, 2006, p. 170.
3 – Diário de Sorocaba, 22 ago 1888, p. 01.