Dia da África e 50 anos da UA: “Ainda pensam no Eldorado Africano, onde cada um quer seu pedaço”, diz historiador

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AFRICA UNIONNatalia da Luz – Por dentro da África

Rio – Muito mais do que para celebrar, as datas são criadas para estimular as reflexões e avaliar o trajeto rumo ao futuro. Muitas vezes, as ideias implícitas são as de transformação, reconfiguração, evolução, soma. Com esse propósito, as Nações Unidas instituíram, em 25 de maio de 1972, o Dia da África, que relembra a fundação da antiga Organização da Unidade Africana, no ano de 1963.

– A data deve lembrar a responsabilidade para os países africanos e, sobretudo, a sua elite cultural, política, econômica e religiosa em relação ao desenvolvimento deste continente em todos os domínios. Devemos fazer um balanço dos ganhos e tomar medidas onde falhamos. Esse dia marca a consciência dos africanos diante dos seus problemas e a decisão de assumir o seu destino – contou, em entrevista exclusiva ao Por dentro da África, o historiador e filósofo angolano Patrício Batsikama.

Cartaz dos 50 anos da União Africana - Divulgação Neste final de semana, na sede da União Africana, em Adis Abeba, na Etiópia, houve comemoração e discussão sobre as perspectivas do continente, que reconhece a importância da ideia de integração para o seu desenvolvimento. Em Angola, por exemplo, Patrício exemplifica que muitos conterrâneos se formaram em universidades graças às bolsas fornecidas por países como Tunísia, Tanzânia, Argélia e Congo e que muitos dos líderes sul-africanos e namibianos se beneficiaram de apoios de Angola para alcançar as suas independências.

Organização da Unidade Africana e União Africana 

Comemoração do Dia da África na Irlanda - Foto: Marc O'Sullivan / Africanday.ie
Comemoração do Dia da África na Irlanda – Foto: Marc O’Sullivan / Africanday.ie

Há 50 anos, 32 países africanos assinavam a criação da Organização da Unidade Africana (OUA), hoje chamada União Africana. Na época, o objetivo principal era empurrar ações colonialistas e de partilha da África para fora de suas fronteiras. A intenção era formar um corpo único (respeitando as características de cada nação) para superar os desafios que eram comuns a grande parte deles.

Essa tarefa foi árdua, e o grupo não conseguiu lutar com eficiência contra diferentes obstáculos e golpes de Estado nas décadas seguintes. A instabilidade política era permanente, o que motivou a dissolução da organização em julho de 2002 pelo seu presidente Thabo Mbeki, que, na época, também presidia a África do Sul. No mesmo ano, foi instituída a União Africana para atender aos desafios de uma nova época.

Primeiro encontro da Organização da Unidade Africana, em 1963 - Divulgação – Um dos principais objetivos da antiga organização era tornar toda África independente. A OUA conseguiu isso e mostrou o espírito da unidade. Mas, depois da “Queda do Murro de Berlim”, ela perdeu paulatinamente a utilidade. Para responder às novas necessidades do continente, ela se transformou na União Africana, mas ainda precisa solucionar as irregularidades da integração. No futuro, teremos a necessidade de um Parlamento Pan-Africano verdadeiramente funcional, passo determinante que vai depender das ratificações dos países membros – detalha o historiador formado pela Universidade Pedagógica Nacional de Kinshasa, na República Democrática do Congo.

Dos 54 países, 53 são membros da União Africana. Apenas Marrocos se afastou voluntariamente em 1985, em sinal de protesto pela admissão da auto-proclamada República Árabe Saharaui, reconhecida pela OUA em 1982. Os dois países vivem hoje em intenso desacordo pelo fato de Marrocos ocupar parte do território que o Saara Ocidental reivindica.

Sede da União Africana, na Etiópia. - Divulgação

“Descolonização” 

A colonização política foi um embate vencido, em grande parte, mas outras formas de colonização ainda se mantêm presentes como a tecnológica, cultural e científica, segundo Batsikama. Como professor, antropólogo e historiador, ele vem contribuindo para o que chama de “descolonização científica”, onde ele se engaja no preparo das mentes de seus alunos.

Encontro com representantes da União Africana - Evan Scheider - ONU– Lancei uma teoria de “razão tolerante”, que humanamente pode contribuir para o desenvolvimento humano, e não só da África. A minha teoria rompe com o absolutismo cartesiano e traz uma outra dimensão cognoscitiva do diálogo, intrínseca e ontológica de definir o indivíduo.

O intelectual acredita que as colonizações cultural e acadêmica ainda perduram e que, por isso, os países africanos precisam de ajuda financeira para avançar, apesar das suas riquezas minerais. Ele conta que a maioria dos acadêmicos é oriunda das universidades estrangeiras e que, localmente, eles ainda esbarram no desafio da baixa qualidade das instituições africanas.

Antropólogo Patrício - Divulgação – Ainda se pensa nas línguas europeias para falar, discutir e publicitar a África, e ainda não há programas sérios para as nossas línguas na cidadania acadêmica universal. A descolonização científica já se beneficiou de um exemplo corajoso do antropólogo e político Cheikh anta Diop (falecido em 1986), que construiu um laboratório de pesquisa na Universidade de Dakar, no Senegal. Ele tentava romper com a eterna dependência dos pareceres oriundos dos laboratórios ocidentais – destacou, completando que a “descolonização” social é a mais difícil de se dissolver porque o africano deve perceber que a sua condição social de pobreza deve mudar somente com os seus esforços e trabalho.

A África vem contribuindo de forma positiva em pesquisas e inovações. Apesar das fragilidades, a sua economia avança com crescimento de 5% ao ano (média na África Subsaariana) em um  momento em que os países europeus tentam se recuperar de graves crises econômicas. No último mês, o Prêmio de Inovação para a África distribuiu troféus para africanos de diferentes partes do continente que desenvolveram pesquisas tecnológicas capazes de beneficiar países do mundo inteiro.

Missão de Paz com a União Africana - Fred Noy - ONU– Vivemos o que o passado nos condicionou. Houve vários nacionalismos: como o econômico, que criou os “ricos” da pós-independência e o político, que permitiu a libertação das terras e o prestígio. Em relação à História da África, coloco três perguntas: 1)reescrever a nossa história é uma das prioridades, mas como fazer isso sem recursos humanos competentes nem meios técnicos e financeiros? 2)A África contribui no desenvolvimento dos outros continentes majoritariamente com matéria-prima, mas não com know-how. Como será possível melhorar o futuro se o presente ainda está mistificado? 3)Qual futuro teria a África se hoje, British Museum, Museu de Louvre, Museu Metropolitano de Nova Iorque, por exemplo, ainda possuem o maior domínio do passado africano? Só se melhora o futuro quando se tem o presente – compartilha o filósofo de Arte formado na University of Plymouth, no Reino Unido.

Perspectivas

Patrício acredita que a África deverá, ela própria, fazer seu marketing para lançar a sua imagem. Isso porque, na ordem política, os países mais ricos e ultraindustrializados não respeitam as instituições africanas nem os políticos africanos. Na ordem econômica, ele destaca que bastariam viver em paz e na justiça social que os países desenvolveriam o seu continente.

– Os  ocidentais ainda pensam no “Eldorado” africano onde cada um vai buscar seu pedaço. Está errado isto. Na ordem cultural, existe uma grande reserva seja nas pessoas, seja nos materiais que ainda encontramos. Só que, precisa-se de liquidez para transformá-los em produtos rentáveis. O pior seria o fato dos próprios africanos destruírem suas culturas. Com isso tudo, a imagem de África é adulterada, e para o negativo.

Mais parceria africana e menos intervenção europeia  

Darfur - Ollvier Chassot - ONU O fortalecimento da organização onde seus membros possam oferecer apoio uns aos outros, seria um caminho a ser alcançado pelo continente. Diante dos muitos conflitos sociais e políticos em vigência no Mali, República Centro-Africana e República Democrática do Congo, por exemplo, os africanos poderiam se ajudar, evitando intervenções armadas vindas da Europa. Para Patrício, a UA precisa abolir o “intervencionismo militar” estrangeiro nas resoluções de problemas internos.

– É fundamental que o meu vizinho esteja em tranquilidade para o meu próprio sossego. A União Africana tem muitos desafios, já que organizações como SADC (Sociedade para o Desenvolvimento da África Austral) e CEDEAO (Comunidade Econômica dos Países da África Ocidental) são ainda frágeis dos pontos de vista econômico, político-militar (não existe indústria militar na em África, salvo na África do Sul) e cultural (as fronteiras impostas dividiram mesma família em dois cidadãos de países diferentes e semearam discórdia).

Comemoração do Dia da África na Irlanda - Foto: Marc O'Sullivan / Africanday.ie
Comemoração do Dia da África na Irlanda – Foto: Marc O’Sullivan / Africanday.ie

Para o historiador, o fortalecimento do grupo e de um futuro mais próspero estão diretamente conectados à educação do homem, capaz de transformar as novas gerações em potenciais riquezas por meio da educação qualificada e a partir de programas de desenvolvimento econômico, humano e tecnológico.

– Nessas condições, os africanos perceberiam que as suas identidades seriam dinâmicas e que seu continente não estagnou no tempo. Eu sou apologista na africanização dos veículos da ciência. Por um lado, deveríamos traduzir álgebra, química, geofísica, medicina em línguas africanas para facilitar o entendimento e, por outro, fomentar o empresariado cultural para oxigenar a dinâmica das identidades africanas diante dos desafios globais.

Por dentro da África