Por Washington Nascimento, Por dentro da África
O estudo da cidade de Luanda, em Angola, é um laboratório privilegiado através do qual é possível analisar as ações do colonialismo, as transformações dentro da sociedade angolana e as resistências ao colonizador. Como salientam Nuno Domingos e Elsa Peralta (2013) as cidades coloniais africanas foram centros de administração e de poder colonial, onde houve um processo de transferência da cultura imperial, bem como de suas ordens ideológicas, econômicas e culturais e de controle de populações. Mas também foram espaços de construção de resistências e autonomias por parte da população local. Por esta razão, a pesquisa sobre estes espaços urbanos se constituiu como um campo próprio de estudos.
Especificamente sobre Luanda merece destaque as pesquisas realizadas por Cristine Messiant(2009, 1989), Fernando Mourão (2006) e Claudia Castelo (2007), entretanto ainda inexistem trabalhos que discutam com centralidade os vinte anos anteriores ao inicio do levante armado (1940-1960), bem como as mudanças sofridas nas Ingombotas e no bairro operário neste período.
A chegada dos portugueses nos anos 40 e as transformações na capital
A chegada em massa dos portugueses nos anos quarenta, impulsionada por uma nova política portuguesa de ocupação de suas colônias, provocou um redesenho demográfico na cidade e a expulsão da antiga elite crioula das zonas centrais (como o Bairro das Ingombotas) para zonas periféricas (a exemplo do Bairro Operário). Nesse cenário, as tensões sociais e raciais aumentaram significativamente, pois os portugueses recém-chegados concorreram com a elite letrada local (os antigos crioulos e novos assimilados) e os nativos em várias atividades econômicas, deslocando-os e marginalizando-os, ocorrendo o que Cristine Messiant (2009) denominou de “racialização topográfica”, com a separação entre uma cidade branca (centro) e uma cidade negra (periferia), apesar da existência de pequenos contingentes de negros e brancos nos lados opostos.
A discriminação racial era regulamentada pelo Estatuto do Indigenato (1926), que, legalmente, separava os luandenses entre portugueses, assimilados e indígenas. Este estatuto fora criado como uma forma de organizar o trabalho dos nativos, mas também como um instrumento paralimitar o poder político dos antigos crioulos pois retirava deles o status legal de civilizado, instituído durante a República (1910-1921), e criava mais démarches difíceis de serem vencidas para se tornar um assimilado.
Além disso, os castigos corporais impetrados pelos patrões, autoridades administrativas e policiais aos nativos (“indígenas”) eram comuns não só em Luanda, mas em toda a Angola. Havia formas mais sutis de racismo, como a diferenciação salarial e os obstáculos no acesso ao emprego e à ascensão social.
Os portugueses recém-chegados à colônia utilizavam-se dos discursos racistas e do instrumental coercitivo português para afastar a concorrência com a elite letrada nativa, sobretudo nos setores da administração colonial. Os imigrantes mesmo quando não apresentavam qualquer formação escolar ou profissional, pela simples entrada em uma colônia fortemente hierarquizada em função do componente racial, eram levados a se sentirem superiores no desempenho de tarefas similares.
Na prática, a própria organização social metropolitana instalada em Luanda dificultava o acesso da elite letrada nativa a cargos administrativos, mesmo de segundo e terceiros escalões, pois havia temor de rebaixamento dos europeus em face dos nativos. E mesmo em cargos mais simples, do comércio por exemplo, começou a ocorrer uma substituição dos trabalhadores africanos por portugueses nas vagas de trabalho.
Para dar conta do crescimento vertiginoso de Luanda, as autoridades locais contrataram, em 1942, o urbanista francês Étienne de Gröer para realizar o primeiro plano de urbanização para a cidade, em conjunto com o português David Moreira da Silva. O plano urbanístico desenvolvido por eles visou desconstruir a natureza defensiva e comercial, comum nas cidades coloniais litorâneas desde o século XVIII, criando cinco aglomerados-satélites, que envolveriam a cidade, cujo objetivo era canalizar a população excedente para as novas cidades-dormitórios. A intenção deliberada do governo português era arrumar habitação para os colonos recém-chegados e afastar os “indígenas” dos centros urbanos, como fica claro no plano de Vasco Cunha, de 1948.
Apesar de sofrer algumas mudanças, o plano desenvolvido por esses urbanistas foi a principal fonte das novas políticas urbanas, sobretudo depois de meados do século XX. Os planos refletiram a situação colonial da época, apresentando soluções técnicas que seguiam interesses do governo metropolitano.
Outra alteração significativa no cenário urbano foi a construção do porto, entre 1942 e 1945, que deu mais agilidade à chegada e saída de pessoas, de mercadorias e de matérias-primas. O porto de Luanda era o de mais fácil acesso (em comparação aos portos de Lobito e Moçamedes), possuindo aproximadamente dez quilômetros quadrados para ancoradouros e sendo o “fecho essencial” da linha de penetração ferroviária que ligava Angola ao Congo.
No que se refere ao desenho da cidade, em meados do século XX, o bairro dos Ferreiras instalara-se definitivamente ao redor das avenidas Álvaro Ferreira e Neves Ferreira, o Largo da Mutamba, principal local de passagem e trânsito, se alterara significativamente e mesmo os musseques mais próximos do centro de Luanda, sobretudo da Baixa, como o Prenda e Samba, tiveram suas cubatas (“casas”) valorizadas, levando a população nativa mais pobre a ter que se deslocar para locais mais distantes.
Além disso, o trânsito das antigas famílias crioulas das Ingombota para o Bairro Operário começava a se tornar mais significativo, em função da queda da importância econômica e social desta elite letrada nativa em Luanda com a decorrente expansão da “cidade branca” sobre bairros nomeadamente africanos como os Coqueiros e as Ingombotas.
As Ingombotas: espaço das elites angolanas locais.
No bairro das Ingombotas, estava situada boa parte da antiga elite crioula nativa. Este bairro surgiu na segunda metade do século XVII fruto de um acampamento de escravos e da Igreja do Rosário. O nome Ingombota é uma adaptação para o português do vocábulo quimbundo Ngambota, formada de ‘ngombo’ (foragido) + ‘kuta’ (estabelecer). Em virtude do anasalamento da consoante inicial – g – converteu-se o termo na língua portuguesa em Ingombota.
De um ajuntamento de escravos fugidos o local se transformou sobretudo depois do ano de 1869 quando sob a justificativa da epidemia de varíola, a população nativa pobre foi removida do bairro dos Coqueiros, dentro da cidade, para as Ingombotas (e também para o bairro de Maculusso).
Até o inicio do século XX era o último local da Luanda urbana, como é possível perceber em uma imagem deste período:
Para esta elite letrada residir neste bairro era sinônimo de distinção social, bem como um lugar de autoafirmação, pois em finais do século XIX foi fundada nele a primeiro associação literária de Angola e na década de 1930, do século XX, foi criado também no bairro, outra associação, com pretensões mais amplas, a Liga Nacional Africana. Organização criada pela elite letrada nativa que desenvolvia ações educativas e recreativas. Em linhas gerais, tanto a Associação Literária e a Liga instaladas no bairro, constituíam-se enquanto um reforço às identidades deste grupo letrado nativo, descendente dos antigos crioulos.
Para termos uma ideia das transformações que ocorreram nas Ingombotas, em duas imagens das décadas de 20 e 60, é possível perceber o aumento das construções ( e edifícios) no bairro:
Nesta imagem é possível perceber a existência, no centro da Ingombota, de espaços ainda não habitados, grandes clarões, mostrando de certa maneira um bairro rural dentro de Luanda e de nenhum edifício, o que vai ser transformado ao longo dos anos, como vemos em uma foto adiante. Apesar de o ângulo não ser o mesmo, é possível perceber que os espaços não habitados desapareceram, além de surgirem três prédios.
A este processo de urbanização veio um aumento significativo do custo de vida no bairro, ocorrendo o encarecimento dos preços dos materiais de construção, alimentos etc., que associado à perda de espaço no mercado de trabalho, como vimos anteriormente, e a diminuição da importância política das antigas famílias crioulas, com o Estatuto do Indigenato, estas passarão a residir em outros espaços, criados especialmente para receber estas novas populações, como os bairros da Maianga, Maculusso e o Bairro Operário.
O Bairro Operário: símbolo da união nacional e resistência ao colonialismo.
O Bairro Operário foi construído no início do século XX e deve este nome, provavelmente, ao fato de seus primeiros moradores terem sido operários da Real Companhia dos Caminhos de Ferro de Luanda e da Conduta de Água (Estação de Agua) que pertenciam a um mesmo dono, Alexandre Peres. As construções de tais bairros nas colônias africanas de Portugal eram divulgadas na metrópole como um dos muitos acertos de sua política colonial, como se pode ver nas imagens da seção “Aspectos do Bairro Operário que está sendo construído em Luanda” publicado no Boletim Geral do Ultramar em 1954:
Na remodelagem geográfica construída pelos portugueses, deveria ser uma zona residencial para as elites nativas que foram afastadas do centro de Luanda pelos imigrantes brancos. Exemplos não faltam para demonstrar que a política portuguesa obteve êxito como no caso de André Mingas e Antônia Vieira Dias, que tiveram seus primeiros filhos – Rui Mingas, Amélia Mingas e Saydi Mingas – nascidos na Ingombota, já os mais novos – Julia Mingas, André Mingas e José Mingas – nasceram no Bairro Operário (B.O).
Os Van-Dunens também se transferiramdas Ingombotaspara o Bairro. Domingas Fernandes de Barros Van-Dunem se casou com Demóstenes de Almeida Clington, de origem são-tomeense. Dessa família, viveram no bairro o enfermeiro Jorge de Campos Van-Dunem, o escritor Domingos Van-Dunem, o futuro embaixador de Angola, Francisco Van-Dunem, além de Carlos Alberto Van-Dunem, um dos presos em julho de 1959 no Processo dos Cinquenta.
As construções deste bairro eram mais simples do que as encontradas nas Ingombotas, mas em muito superior as existentes nos musseques (espécie de “favelas” angolanas). Como se pode ver nas imagens de algumas destes imóveis, como a residência da família de Agostinho Neto.
Trata-se de uma construção típica dos anos trinta e quarenta, com as paredes pintadas de azul acinzentado, como rodapés de um azul mais escuro. Outras casas deste bairro seguiam o mesmo padrão:
Suas ruas sem pavimento e iluminação geravam uma grande insatisfação nas pessoas como bem registra Arnaldo Santos (1981) no conto “Bairro Operário não tem luz”, originalmente escrito em finais da década de sessenta:
– Por que que o Bairro Operário não tem luz?[…]Então as casas de pau-a-pique não tem direito a luz elétrica?! Como é que as pessoas iam comer e brincar a noite? E nas ruas por que não punham candeeiro como os da baixa? (SANTOS, 1981, p. 72)
O trânsito de famílias e o fato de estar em uma região fronteiriça, entre a cidade branca (o asfalto) e os musseques, fez como que o bairro se tornasse ao longo do tempo o símbolo de união dos angolanos e mesmo portugueses pobres, como arquetipicamente podia ser visto durante o Carnaval, onde os antigos crioulos, novos assimilados, nativos e mesmo portugueses, cabo-verdianos e são-tomeenses se espalhavam pelas ruas do bairro, fazendo usos da musica brasileira de Emilinha Borba, Carmélia Alves, Black Out e Luiz Gonzaga, mas também musica angolana, representada naquele que talvez tenha sido o maior grupo musical de Angola, o N´Gola Ritmos. Na imagem o grupo saindo nas ruas do B.O durante o Carnaval, junto a um português.
Considerações finais
No Bairro Operário chegava às ruas definitivamente o desejo de libertação do povo angolano, construído em grande parte inicialmente nas Ingombotas e suas organizações ( como a Liga Nacional Africana, criado nos anos trinta) mas também nos espaços de lazer e religião do B.O. que também funcionavam enquanto espaços de articulação política.
A busca pelos espaços símbolos das Ingombotas e do Bairro Operário (ou mesmo de um personagem símbolo), registrado nas memórias daqueles que viveram em Angola em meados do século XX, constitui-se assim enquanto um elemento importante do que poderíamos chamar de tentativa de construção (e imagi-nação) de uma identidade angolana.
Washington Santos Nascimento é Professor de história da África da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)