Ana Camila Esteves, Por dentro da África
No último dia 23 de junho, a Netflix divulgou um vídeo promocional com o título “Da África para o mundo”, no qual evidencia o investimento da plataforma no audiovisual africano. Em pouco mais de dois minutos de duração, a peça publicitária coloca na tela 18 personalidades africanas envolvidas com as recentes produções originais Netflix made in Africa, algumas já disponíveis no catálogo, a partir de um texto que enaltece o valor e a importância de realizadores africanos contarem as suas próprias histórias.
O vídeo chega em um momento no qual a Netflix aumentou consideravelmente seus investimentos de produção e de marketing em narrativas africanas, incluindo a contratação da queniana Dorothy Ghettuba como chefe dos “originais africanos”. Em pouco mais de um ano, a plataforma adquiriu mais algumas dezenas de filmes do continente (especialmente nigerianos) para o seu catálogo, e lançou duas séries originais de produção sul-africana: Queen Sono (de Kagiso Lediga) e Blood & Water (de Nosipho Dumisa).
Nos últimos meses, anúncios de novidades invadiram os sites de notícia voltados para a cultura africana e negra: não só essas duas séries foram renovadas para uma segunda temporada, como pelo menos mais três estão neste momento em desenvolvimento: a animação Mama K’s Team 4, produção sul-africana (Triggerfish Animation) escrita por Malenga Mulendema, do Zâmbia, país onde a história infantil é ambientada; a série JIVA!, drama de produção também sul-africana (Blue Ice Africa), escrita por Busisiwe Ntintili, que gira em torno de uma jovem que vê na dança a esperança de uma vida melhor; e a terceira, ainda sem título, uma ficção científica escrita e dirigida pelo nigeriano Akin Omotoso, um dos nomes mais interessantes do cinema da África do Sul – país onde atua. Tudo com previsão de estreia entre 2020 e 2021.
E não acaba aí: no último dia 12 de junho a Netflix anunciou uma parceria com a Mo Abudu, uma das maiores produtoras de conteúdo audiovisual na Nigéria, sócia da gigante do entretenimento no país, a EbonyLife TV. Essa parceria vai render não só mais alguns filmes e séries originais Netflix, mas um investimento especial em produções adaptadas da literatura nigeriana: uma série baseada no romance de estreia da Lola Shoneyin, The Secret Lives of Baba Segi’s Wives, e a adaptação cinematográfica de Death And The King’s Horseman, do romancista, poeta e dramaturgo vencedor do Prêmio Nobel da Literatura em 1986, Wole Soyinka. Essa ação é, na verdade, uma ampliação da parceria entre Netflix e EbonyLife TV, uma vez que a maior parte dos títulos nigerianos no acervo da plataforma é licenciada pela empresa, como Cinquentonas, Casamento às Avessas, Isoken, entre outros.
As notícias são instigantes e promissoras, mas como podemos interpretar essa entrada tão incisiva da Netflix no universo audiovisual africano? Quando o vídeo promocional mencionado acima termina com a frase “produzido pelos africanos, assistido pelo mundo todo”, o que exatamente está em jogo quando se pensa em audiências globais no caso da África, um continente que há muito enfrenta imaginários e estereótipos de audiências hegemônicas? Considerando que o objetivo maior da Netflix é aumentar seu número de assinantes no mundo inteiro, propomos uma pausa para pensar um pouco sobre as controvérsias em torno dessa aliança entre África e Netflix.
Nollywood & Netflix
Antes de 2018 a Netflix já tinha colocado cerca de 30 filmes nigerianos no seu acervo. Sem fazer muito alarde com relação a isso, com zero de marketing investido para atrair audiências para esses títulos, é provável que a plataforma estivesse fazendo um teste: será mesmo que esses filmes de Nollywood atraem público? Nollywood, para quem não sabe, é como a indústria audiovisual nigeriana, a segunda maior economia do país, é internacionalmente conhecida.
Porém, foi em 2018 que a relação entre Netflix e Nollywood tomou novos rumos. No Toronto International Film Festival (TIFF) aconteceu a estreia do longa-metragem Lionheart, primeira vez que a atriz e produtora nigeriana Genevieve Nnaji, uma estrela de Nollywood, dirigia um filme. Na noite de sua primeira exibição no festival, a diretora e sua equipe anunciaram que a Netflix havia comprado os direitos do longa e que ele se tornaria, portanto, “original Netflix” e ficaria disponível globalmente na plataforma em contrato exclusivo.
Com um investimento maior em marketing, especialmente um trailer legendado em português, a Netflix fez de Lionheart o marco do seu aumento de interesse no cinema nigeriano. Foi esse marco que possibilitou a contratação de agentes na Nigéria (e posteriormente em outros países africanos) que ajudassem na tarefa de colocar mais filmes nigerianos no acervo, uma vez que perceberam duas coisas: 1) Nollywood tem um público não só nigeriano residente na Nigéria, mas de nigerianos espalhados pelo mundo, e 2) o interesse em conteúdos africanos cresce a cada ano, especialmente no contexto das diásporas negras, como o Brasil. Em termos práticos, a Netflix viu aí formas eficazes de conseguir mais assinantes ao apostar em um nicho bastante específico.
Apesar dessa proximidade com a Nigéria, foi na África do Sul que a Netflix resolveu iniciar seus investimentos em produções originais, provavelmente porque lá existem excelentes condições de produção a um custo baixo para a empresa. Com equipes 100% africanas, submetidas ao crivo e aprovação dos gerentes de conteúdo não-africanos, séries como Queen Sono e Blood & Water estrearam em 2020 focando em públicos adultos e adolescentes, respectivamente, e com uma comunicação de marketing poderosa, especialmente na África do Sul. O resultado foi, naturalmente, um sucesso de audiência, novas assinaturas e renovação de contratos com as equipes africanas.
Narrativas africanas?
O que não significa necessariamente que as séries têm qualidade dramatúrgica, e é aí que a coisa fica um pouco mais complexa. Para além dos confetes jogados sobre a Netflix e sobre os realizadores africanos por finalmente fazerem parte desse contexto de distribuição global, o que em si é, de fato, um ganho e um marco fundamental na história do audiovisual africano, é importante observar como Queen Sono e Blood & Water são construídas a partir dos clichês dos gêneros aos quais correspondem. Se por um lado Queen Sono é uma história de máfia e espionagem que acontece em várias regiões da África, com tramas em torno de temas como terrorismo e políticas externas, por outro não desafia os clichês típicos de narrativas hegemônicas ao, por exemplo, colocar uma vilã russa em uma narrativa que se vende como “autenticamente africana” – seja lá o que isso for. Na tentativa de se comunicar com “audiências globais”, pareceu mais seguro reproduzir os códigos de gêneros consagrados por outras cinematografias. Ousadia zero.
O mesmo acontece com Blood & Water, que em nenhum momento ousa subverter a narrativa típica das séries adolescentes ocidentais, construindo personagens e tramas previsíveis e repetitivos, talvez se confiando no fato de “representar” as classes média e alta da África do Sul, universos recorrentes no cinema do país, mas completamente desconhecidos do grande público “global”. Sabemos que, no que tange ao audiovisual, as narrativas estadunidenses são consideradas hegemônicas, “universais”, e a Netflix assume essa noção, mesmo que sua retórica busque, enfim, subvertê-la.
Por mais que o vídeo “Da África para o mundo” tenha um texto que indique a importância de os africanos escreverem as suas próprias histórias, e por mais que algumas personalidades ali apareçam falando em suas línguas nativas, o que vemos são imagens que reiteram estereótipos a partir especialmente do figurino e dos próprios idiomas – que, sabemos, não são amplamente falados nas séries originais Netflix. Ao mesmo tempo em que a plataforma vende o discurso da diversidade, o fato é que o marcador continua sendo o da diferença, do exótico, do “outro” que está sendo “acolhido”. É como se a Netflix abrisse os braços para a África, criasse uma narrativa em torno desse suposto acolhimento, mas ao mesmo tempo tentasse encaixar um triângulo em um quadrado. Queen Sono e Blood & Water são a prova disso.
Para além da Nigéria e da África do Sul
Importante notar que a Netflix mirou seus investimentos em dois países africanos cujas indústrias audiovisuais são consolidadas e muito superiores aos outros países do continente, além de trabalharem muito bem com as suas audiências locais. Importante também ressaltar que não é mero acaso que a África do Sul e a Nigéria têm como língua oficial o inglês. Além disso, filmar na África do Sul e na Nigéria é muito mais barato que filmar nos Estados Unidos, por exemplo, então teoricamente todo mundo sai ganhando. Portanto, a Netflix não está necessariamente fomentando indústrias que já se sustentam, mas prometendo a adesão de audiências globais, o sonho de qualquer realizador. A questão é: a que preço?
A boa notícia, além das próximas produções 100% africanas que estão a caminho e que podem ainda nos surpreender com boas narrativas de fato africanas, é que a Netflix parece estar disposta a olhar para os cinemas africanos para além da Nigéria e da África do Sul. Atlantique, dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop, foi o segundo filme africano adquirido pela plataforma como “original Netflix”, ainda em 2019, e nos últimos dias houve o anúncio de que o longa Resgate, de Mickey Fonseca, será o primeiro filme moçambicano disponível no acervo, além do lindíssimo longa sudanês You Will Die at 20, de Amjad Abu Alala. Os dois filmes foram lançados em 2019 e tiveram trajetória em festivais internacionais. Cuties, da talentosíssima franco-senegalesa Maimouna Doucouré, longa que estreou este ano em Sundance, também foi adquirido com exclusividade pela Netflix em nível global, com exceção da França, e deve estrear ainda este ano.
Neste contexto ainda em emergência, nos resta acompanhar e aguardar, ao mesmo tempo em que reconhecemos que a Netflix é, hoje, a plataforma de streaming atuante no Brasil que mais oferece títulos africanos para o público do país, e isso, diante das circunstâncias, já é muito, ainda que não o suficiente.