Dany Wambire, Por dentro da África
Maputo – Eu é que, antes, nunca desejei ir gastar a minha vida, na cidade, me sustentar do exótico. Mas fui. Vítima de virulenta influência é que eu fui. Antes, vi meus amigos a regressarem das grandes cidades, empunhando malas, com bens de fora. Vinham gordos. Se, antes, a pele é que se apoiava na carne, por causa da magreza, agora as avolumadas polpas é que se apoiavam na pele.
Assediado fui. Para a cidade parti. O meu grande amigo, Teodoro Confuso, é que não quis. Ficou no distrito, campestre, de Fim-de-Mundo. Lá ficou a torturar a terra, sua derradeira moradia, para dela obter tudo o de quanto necessitasse, para a sua sobrevivência.
A distância jamais catanou a nossa amizade. Na cidade, sempre me recordei do meu amigo Teodoro. Sempre lhe mandei coisas exóticas, de que abarrotavam as lojas, as machambas da cidade. Mandei-lhe açúcar branco, frangos e muita comida de rápido preparo, os fast-foods. Outros bens, ainda, electrodomésticos, ele recebia doutros conhecidos.
A julgar pela quantidade de bens, que Teodoro recebia, imaginava-se que ele era mais do que especial. Era especializado em receber o que vinha de fora. O estranho citadino, num meio campestre. Supunha-se que ele não mais se dedicava à agricultura, e que vivesse da pedintecultura.
Mas, Teodoro jamais respondeu favoravelmente a um convite, para dar uma passeata pela cidade. Se resguardava, no seu rural meio. Quem o quisesse ver, que fosse mesmo à sua terra. E eu mesmo queria matar saudades acumuladas e guardadas. Regressei a Fim-de-Mundo, passada uma década. Até pensei que, na tal vez, talvez eu pudesse convencer Teodoro a ir viver para a cidade, o chamado centro de desenvolvimento.
De volta estava, em Fim-de-Mundo. O meu amigo não me recebeu com pompas e circunstâncias. Nem sequer me dedicou abraços. Com um olhar de desdém, foi afastando os seus, de perto de mim. Não se soube se evitava alguma contaminação. Mas era provável, pois o que Teodoro mais conhecia eram doenças culturais.
Todavia, no seguido, Teodoro desejou-me boas vindas. Não me deixou sentar na cadeira, havia coisas a fazer, enquanto ele estivesse a saudar-me.
― Siga-me, meu amigo. Quero mostrar-te o meu cemitério, que estou a construir nos últimos dez anos.
Que ideia! Aparvalhado fiquei. Teodoro já contradizia as ordens da tradição, edificando coisa, que não era da sua competência. Todos, no distrito, sabiam que o cemitério não era construído por outros entes, senão os mortos. Cada qual cuidava do seu abrigo, e Deus de todos: disso todos sabiam.
Entrementes, entre os capins, Teodoro foi me conduzindo. À pressa, pedia-me para não aleijar nenhum capim. Ele estava descalço, com facilidade para sentir a ofensa. Dificuldade, era para mim, como me aperceber duma eventual desfeita. Insensíveis estavam os meus pés, pois se faziam transportar nos sapatos, conseguidos a muito custo, na cidade.
Chegamos ao propalado e certeiro cemitério. Entramos, sem pedido de licença. O exato pedido era feito à saída. Tudo obedecendo ao contrário.
Começou a apresentação dos habitadores do cemitério, dos inquilinos daquele chão. Abriu a tampa da primeira sepultura, e viu-se o que lá estava a jazer: inúmeros produtos enlatados, a mais moderna farinha de milho, que dispensava caril, no seu consumo, variedades de bolachas, sorvetes, chocolates, etc. E me assustei, no seguido. E perguntei ao Teodoro a razão daquela desfeita. Afinal, aqueles eram produtos bastante encarecidos e muito cobiçados por muitos.
Teodoro não demorou com resposta. Filosoficamente respondeu, problematizando. Disse que tais produtos trouxeram inúmeras doenças, como diabetes, problemas de coração, cancros vários, obesidade, etc.
― Agora só existe tensão baixa ou alta. Ninguém mais tem tensão média, por causa desse vosso modus comendi.
Foi à segunda campa. Abriu-a. Outro espanto. Havia uma urna de uma viatura e dum televisor. E, de novo, voltei a procurar pelos motivos.
― Teodoro, tu não quiseste te informar, para encurtares as distâncias?
Ele gostava, sim, de informação e de poupança de distância. Mas as televisões modernas traziam menos informação. Traziam mais eram culturas virulentas, doutros povos. E nós imitávamos tudo, não raras vezes sem sucesso. Fim-de-Mundo estava destruindo-se, à conta desses televisores. E os carros, para ele, traziam a excessiva sedentarização. Pois as pessoas de hoje em dia não conseguiam percorrer até ínfimas distâncias, gastando sempre os seus escassos tostões.
Não parou, na segunda campa. Me conduziu pelos estreitos caminhos do cemitério. Não chegamos à terceira campa. Antes, ao meio do cemitério, vi alguém pendurado ao céu. Ao céu, como quem diz. Não se via a corda, que o prendia ao céu, o tecto falso da terra.
Me sustei, pelo susto. Depois, apressei o passo, para arrancar a raça daquele corpo, espantalhado em cima das campas. O corpo estava ligado ao chão, por fios mortos e secos de sangue. O rosto sacudiu, no seguido, o pano, que o enroupava. Era branco, com cabelos encurtados. E foi o próprio Teodoro que tesourou o tecto da cabeça do tipo. Postumamente queria torná-lo negro o tipo.
― Eles devem semelhar a nós, os pretos ― injustificava-se.
― Então, Teodoro, você assassinou mesmo este branco?
Respondeu. Aquilo não é “assassínio”, disse Teodoro. Aquilo era desajuste de contas. Se era crime, não havia provas modernas. A feitiçaria é que funcionou. Mas, Teodoro explicou a morte.
― Este branco queria destruir a minha tradição, o meu chão. Até de minhas filhas ele abusou. Enganou-as com saias curtas, calças apertadas e televisores, para novelas de fora.
― Mas não devia, meu amigo!
― Não devia, como? Apenas agi em legítima defesa.
Incrível. Dei uns rodopios, a avaliar a sanidade mental de Teodoro. No rápido, constatei que ele estava bem. Apenas ele era racista de todo o indivíduo que ambicionou mudá-lo, destruir a sua tradição.