Coluna África em Cena: “La Noire de…” de Ousmane Sembène , por Kassoum Diémé

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Foto – www.pipegazette.com/

Por Kassoum Dieme, Por dentro da África

Interpretação do filme “La Noire de…” do cineasta senegalês Ousmane Sembène

Percebe-se logo no início do filme uma jovem negra desembarcando de um navio. Logo em seguida, tudo fica evidente que ela não estava tão perdida quanto ela mesma começou a imaginar. Foi tratada por quem veio buscá-la de carro como uma dama nos primeiros minutos em que respirou o ar de Paris, a bela cidade. Esta lhe foi melhor apresentada em alguns segundos de uma janela do apartamento que doravante era sua cela, mas posteriormente batizado como tal.

Dentro daquele contexto colonial, o filme de Sembène mostra que a mulher senegalesa, usada como amostra de uma realidade quase continental, era uma batalhadora que apesar da dureza de sua vida cotidiana, alimentava-se de esperança e se aventurava na busca de trabalho mesmo sem ter formação profissional. Esta predisposição fazia dela uma presa fácil dos predadores. Ser empregada doméstica era o sonho que habitava o sono da quase totalidade das mulheres urbanas como a Diouana. Este sonho coabitava com o mito do salvador branco, no caso delas, da salvadora branca. O branco, no então imaginário social local, era sinônimo de opulência ao passo que o negro rimava com a miséria. Talvez algo tenha mudado, com relação a isso, nos dias atuais.

A paciência foi sua maior aliança na conquista do seu emprego junto ao casal branco francês então residente em Dakar, a capital do Senegal. A felicidade da Diouana era incomensurável e sua voz levou a boa notícia para todo o bairro sem tirar seu fôlego. Tomar conta das crianças nunca foi um quebra-cabeça para ela, muito pelo contrário, cuidava delas com certa naturalidade. Afinal das contas ela tinha muita sorte.

La Noire de___Aos olhos de seus empregadores, seu bureau-résidence era na verdade uma metáfora de Paris. Sair dele seria deixar as fronteiras geográficas da capital francesa para trás. Afinal um passeio de tamanha envergadura não era concebível diante do novo tamanho de tarefas diárias a executar pela empregada. Passear em Paris, só no sonho da Diouana. O isolamento aqui é literal, mas a mobilidade liberada entre o quarto e a cozinha.

Por ser analfabeta, ela ficou literalmente isolada de sua família, inclusive da mãe em Dakar. Sem remuneração por um tempão, sem folga e sem outros contatos a não ser com sua patroa e responsável em Paris, Diouana recorreu às tentativas de fuga interna, de greve e até de silêncio, mas nenhuma delas tinha um grau de sucesso significativo. Estas formas de inconformismo da empregada lhe renderam qualificativos depreciativos, desmoralizantes, indignas de reprodução, que, aliás, não poupavam o continente do qual era oriunda. A autora destes qualificativos era outra mulher, de outra cor.

O primeiro salário foi recebido com muita emoção atípica. Os choros eram mesmo de tristeza de receber seu pagamento. Não quero dinheiro, declarou para si, juntando as mesmas notas na mesa do casal, mas sim minha máscara de volta. O que poderia significar aquela máscara? Tudo? Talvez não, mas com certeza mais do que as aquelas notas de dinheiro e o avental. Com a mala pronta, Diouana deu um basta na situação e resolveu ir embora sem sair do apartamento. As circunstâncias de sua então vida a levaram a tomar aquela decisão.

É possível fazer um paralelismo entre o filme e uma realidade histórica mais difundida. Não há exagero em interpretar este filme como uma metáfora do tráfico de negros e de sua imediata escravização no continente americano, por exemplo. A fragilização e a destruição dos laços familiares foram estratégias inerentes a estes dois processos. O consentimento da empregada em desembarcar em Paris era movido pelo tipo de trabalho que exercia em Dakar, pelas relações harmoniosas que mantinha com sua patroa, mas principalmente pela promessa de dar continuidade ao trabalho que vinha fazendo para o casal em troca de seu salário. A diferença é que não precisou ser pescada com uma rede ou levada com os pés e as mãos acorrentados, tal como acontecia na época do tráfico de seus antepassados capturados, mas sim com a mente atada pela falsa promessa do paraíso, da vida boa e da digna contrapartida que receberia pelo serviço prestado.

O que se percebe é que sua ingenuidade inicial não aniquilou todas as iniciativas de negação e de enfrentamento do tratamento desumano da mulher negra por um casal branco em terras deste, ou consideradas como sendo, no caso da América. Ao descobrir que caiu num aparente beco sem saída, Diouana não demorou para explicitar sua inconformidade que culminou numa opção pior do que o sadomasoquismo. Preferiu a liberdade pagando a própria vida do que sustentar a vida alheia pela exploração do seu trabalho sem o menor consentimento. Há quem diria: La mort plutôt que l’esclavage.

Movie.picture,org
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Nisso, o filme leva o recado para aqueles que bizarramente defendem, ainda hoje, que os negros se deixaram escravizar, não fizeram nada para se defender e até lucraram com este fato. Defesa no mínimo ridícula. Os negros sempre disseram não à condição de escravo em que os brancos tentavam com ou sem sucesso colocá-los. Alguns fatos históricos tal como a resistência do Toussaint LOUVERTURE, do Louis DELGRES, da Solitude, da Aline Sitoé DIATTA, do Zumbi dos Palmares e milhares de outros, mais recentes, merecem destaque, entretanto, não devem levar ao menosprezo da postura de milhões de anônimos que agiram, em defesa de sua dignidade, tal como Diouana antes mesmo de serem submetidos à desumanização pelos seus donos brancos interessados na força dos seus músculos enquanto puderam produzir. Não é por acaso que não se sabe o que foi feito do corpo da empregada.

Com o fim do crime Maior Tráfico de Pessoas e o da escravidão por um lado e a morte da Diouana por outro, os efeitos permearam os tempos subseqüentes. Ninguém, ou melhor, nenhum dos promotores e autores dos crimes queria ficar com lembranças deste passado. Isto explica a tentativa de se desfazerem até dos objetos de suas então vítimas. O medo e a rejeição sociais que se tem da máscara andante lembra o que acontece com os descendentes de escravizados que sobreviveram, ambos remanescentes de uma história parecida. Estes poderiam não existir mais ainda desejam os descendentes destes promotores e autores, garantidores de tal tradição desumana.

Kassoum DIEME é formado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília

Por dentro da África