Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Com mais de 30 anos dedicados ao cinema e ao patrimônio cultural de seu povo, Cheick Oumar Sissoko tem papel fundamental na história contemporânea do Mali e do cinema africano. Renomado cineasta, político e incansável estudioso, ele faz um convite para a reflexão sobre a importância do cinema e clama os cineastas a usarem aspectos positivos do passado africano para construir o futuro do continente.
– Houve um recuo para mostrar a riqueza das culturas negras. Falar dos conflitos sangrentos, das guerras, da exploração das crianças… Esse olhar mostrava a desestabilização do continente, mas foi um ponto importante para a revolução no cinema. Nas décadas de 60 e 70, muitos políticos entenderam a importância da imagem (do audiovisual) e dos desafios ligados à independência, não apenas no Mali, mas em muitos países da África – disse Cheick Oumar Sissoko em entrevista exclusiva ao Por dentro da África durante temporada no Rio de Janeiro.
O Mali faz fronteira com Argélia, Níger, Mauritânia, Senegal, Costa do Marfim, Guiné Conakry e Burkina Faso. Alguns dos seus recursos naturais são ouro, urânio e sal. Independente da França em 1960, o país elegeu Modibo Keita como o seu primeiro presidente, que estabeleceu o unipartidarismo, adotando uma orientação africana independente e socialista, de laços com a União Soviética.
– Após a independência, havia uma pequena burguesia que trabalhava para tomar o lugar do colonizador e também explorar o povo. No cenário político e social, também sofremos com o problema da emigração para a França e uma espécie de bloqueio de desenvolvimento – contou o cineasta que foi a personalidade homenageada no Encontro de Cinema Negro, realizado em março deste ano no Rio de Janeiro.
“The Garbage Boys” (Nyamanton, la leçon des ordures -1986), um dos filmes do diretor, conta a história de crianças que cresceram em Bamako, capital do Mali, e que passavam por muitos obstáculos diários. A pobreza e todas as mazelas retratadas no filme geraram sensações diferentes no público.
– O filme parecia ter efeitos diferentes de acordo com a classe dos espectadores. Os de classe social mais elevada pareciam não se sentir muito bem ao ver os problemas do país escancarados na tela – destaca o autor.
Como estudante em Paris, Cheick Oumar recebeu diploma em História e Cinema pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Em seu retorno ao Mali, assumiu o Centre National de la Production C inématographique (CNPC), onde dirigiu Sécheresse et Exode Rural (“Seca e Êxodo Rural”).
Em 1995, ele dirigiu Guimba (The Tyrant), que ganhou os prêmios Especial do Júri no Festival Internacional de Cinema de Locarno, e l’Etalon de Yennenga (“Garanhão de Yennenga”) no FESPACO (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou).
Vida política
Ao lado de Oumar Mariko, Sissoko fundou o Solidariedade Africano para a Democracia e Independência (SADI), em 1996. Ele foi nomeado ministro da Cultura no governo do primeiro-ministro Ahmed Mohamed Hamani, em 16 de Outubro de 2002. No governo seguinte, do primeiro-ministro Issoufi Maïga Ousmane, ele se manteve no cargo.
Em 8 de agosto de 2007, após a morte do ministro da Educação Nacional Mamadou Lamine Traoré, Sissoko passou a ocupar também o cargo de Ministro da Educação Nacional. Em entrevista, o diretor diz acreditar que cada filme (por mais simples que seja) tem uma substância ideológica que parte de uma história humana.
– Quando você faz um filme, tem que falar da cultura do povo, da língua, das relações sociais, dos elementos da sociedade, dos costumes, arquitetura, economia… O conjunto das técnicas e dos valores de cada comunidade humana constrói a sociedade – disse, completando que, no Mali, os cineastas dão a sua contribuição a fim de alcançar mais objetivos.
História do Mali
O Império do Mali (1230-1600) se formou na parte superior do Rio Níger e chegou ao ápice em meados do século XIV. Sob o reinado do Império do Mali, as antigas cidades de Djenné e Timbuktu foram importantes centros de comércio e de ensino islâmico. O reino entrou em declínio até ser substituído pelo Império Songhai.
O Império do Mali, que hoje abrange regiões do Senegal, Costa do Marfim, Gâmbia, Mauritânia, Guiné, Guiné-Bissau, Níger e Mali, foi fundado por Sundiata Keita e se tornou conhecido pela riqueza de seus governantes, especialmente Mansa Musa (1280 – 1337), que embarcou em um grande programa de construção de mesquitas e madrassas em Timbuktu e Gao. A Sankore Madrasah ou Universidade de Sankore foi construída durante o seu reinado.
No final do século XIV, o Império Songhai ganhou a independência do Império Mali, abrangendo a extremidade oriental deste império. Sua queda foi resultado de uma invasão berbere em 1591. Na era colonial, Mali ficou sob o controle francês no fim do século XIX. No início de 1959, o Mali e o Senegal se uniram e formaram a Federação do Mali, que conquistou a sua independência em 22 de setembro de 1960.
Filme do Mali feito por malineses
A África francófona representa um vasto mercado para a indústria cinematográfica francesa. Grande parte dos filmes produzidos no Mali e em seus vizinhos teve direção francesa, o que para Sissoko não é coerente para contar a história que se passa na África!
– Eu vivi na França e posso fazer um filme sobre a França, assim como os franceses podem fazer sobre a África, mas não é o mesmo resultado porque eu não tenho a cultura da França em mim, e nem eles têm a cultura malinesa dentro deles. Hoje, a maior cinemateca é francesa porque eles compram os direitos. Essa é uma questão que nos preocupa… – reflete o cineasta envolvido com a produção de “Rapt a Bamako”, que deve ser lançado até o final deste ano.
Sissoko também ressalta que ainda hoje não há uma ligação entre o cinema e a TV em seu país. As TVs não aceitam difundir o filme, tampouco financiar, e os governos ainda não se interessam com o desenvolvimento do cinema, salvo exceções como o FESPACO (Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou).
Debate sobre a história da África
Por muitos séculos, o discurso de que a África não tinha história foi muito reproduzido por autoridades, cientistas e historiadores, principalmente europeus. Esse desconhecimento, com uma larga dose de ignorância, intensifica os estereótipos que minam a África.
– Há aqueles que se recusam a ver que temos história e que não trouxemos nada para o mundo moderno. Eles esquecem de toda a produção do Egito Faraônico, dirigido por faraós negros. São pessoas que querem nos apagar da história do mundo – ressalta.
Sissoko recorda que a relação entre a África e sua história foi reproduzida quando o ex-presidente da França Nicolas Sarkozi, em Dakar, no Senegal, menosprezou a história da África. O discurso na Universidade de Dakar, no ano de 2007, ganhou uma grande repercussão e um alerta sobre o nível de conhecimento que alguns homens de Estado europeus têm sobre as questões africanas.
“O drama da África é que o homem africano não entrou o suficiente na história. O camponês africano, que depois de milênios, vive ao sabor das estações, em que o ideal de vida é estar em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras.
O problema da África não é de inventar um passado mais ou menos mítico para ajudar a suportar o presente, mas de inventar um amanhã com os meios que lhe sejam adequado.
O problema da África, e permitam a um amigo da África o dizer, está aí. O desafio da África é entrar mais na história. É depositar nela a energia, a força, a vontade de escutar e de desposar a sua própria história” – pequeno trecho do discurso de 46 minutos de Sarkozi, cheio de estereótipos.
– As pessoas que dizem isso são muito ignorantes, querem nos impedir de desempenhar o nosso papel. O mundo destruiu essa parte da nossa história do Egito, da época faraônica. O cinema e o audiovisual têm um papel político. Os criadores são militantes porque cada obra que se cria é um ato político que se levanta e fala da nossa sociedade, sonhos, atitudes e constrói um diálogo entre o autor e o público.
Sarkozi talvez não saiba que a Universidade de Sankoré, em Timbuktu, Mali, reuniu mais de 25 mil estudantes no século XII. Suas bibliotecas gigantes abrigavam cerca de 700 mil manuscritos!
Com o avanço e reconhecimento de Nollywood (indústria cinematográfica nigeriana), Sissoko lembra que há muitas identidades na África e que por isso não existe um único cinema. Nesse sentido, as produções da Tunísia, África do Sul, Nigéria, Egito, Burkina Faso têm a mesma missão de compartilhar, revelar e preservar a sua história.
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– As sociedades falam sobre os nossos problemas, sobre a nossa dificuldade de vida. Tentamos descrever o nosso jeito de viver. A nossa luta, a nossa identidade… O cinema é absolutamente necessário para reconstruir a nação. Temos que continuar.
Por dentro da África