Natalia da Luz, Por dentro da África
Rio – Angola, Cabo Verde e Brasil formam um triângulo geográfico que compõe a carreira de uma cantora angolana, essencialmente lusófona. Nascida em Luanda, Aline Frazão cresceu com referências da música de Cabo Verde e do Brasil, países com os quais ela mantém não apenas laços familiares, mas uma relação de profunda entrega. Na essência de um trabalho predominantemente autoral, ela canta sobre aquilo que a provoca, como a cidade de Luanda, mergulhada em uma imensidão de contrastes.
“Luanda moldou meu interior. Eu canto sobre uma Luanda que me incomoda, me choca, me provoca. Há uma segregação que é tão real na cidade… Eu venho de uma classe privilegiada, tive oportunidade de estudar e sempre tive a noção dos meus privilégios. A gente não escolhe onde nasce, mas escolhe o que faz com esse privilégio, e isso caminha para uma missão do ponto de vista do coletivo” – disse em entrevista ao Por dentro da África a cantora que se apresenta neste sábado no Back2Black, no Rio de Janeiro.
Luanda não está apenas na inspiração para letra e música de Aline. Ela aparece em seu compromisso como angolana. Com mais de 9 milhões de habitantes, a cidade clama pelo combate à desigualdade social. De acordo com um estudo global sobre o custo de vida em 2014, elaborado pela consultora RH Mercer, Luanda é a cidade mais cara do mundo.
Luanda para os brasileiros: a terra prometida
Do lado de cá do Atlântico, Aline acredita que, quando pensamos na capital de Angola, paira no imaginário uma ideia de terra prometida. Isso talvez aconteça porque, muito mais do que com os outros países africanos de língua portuguesa (Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique), a relação com Angola é de laço apertado. Entraram no Brasil 4,8 milhões africanos escravizados, oito vezes mais do que os portugueses que chegaram aqui até 1850. Da região do antigo Reino do Kongo, onde hoje estão Angola, República Democrática do Congo, Gabão e Congo, partiram 70% dos escravos que vieram para cá.
Em Luanda, o grupo étnico predominante é o bakongo, cuja língua é o kikongo. Os bakongos ocupavam o vale do rio Congo, em meados do século XIII, e formaram o reino do Kongo, que até à chegada dos portugueses, no fim do século XV, era um reino forte e unificado. Sua capital era M´banza Kongo, ficava na atual província angolana do Zaire.
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“Essa relação com o candomblé e a rota da escravatura criam no imaginário de muitas pessoas uma terra prometida. Luanda tem muito disso. Uma curiosidade enorme, uma vontade de visitar, de voltar, mas pouco conhecimento sobre o que ela é de fato” – conta a artista, em crítica ao desconhecimento do Brasil em relação ao seu país.
Brasil e Angola: relação cultural que deveria ser de mão dupla
“Com Portugal, temos uma relação histórica e cultural diferente por causa da colonização; é permanente, sempre presente. Com o Brasil, temos uma grande influência da música, das novelas, de uma cultura que chega pela televisão”, compara Aline, lembrando que essa presença pode ser vista nos mercados de rua que, ao longo dos anos, ganharam nomes de “O Bem Amado”, por exemplo.
Para a cantora, os angolanos estão muito familiarizados com o sotaque brasileiro, com a música daqui. Infelizmente, esse trajeto não tem o mesmo movimento quando pensamos em uma via dupla. Isso porque o Brasil ainda precisa aprender mais sobre a cultura angolana, sobre a história, a política, a música.
A TV Brasil estreou, no dia 10 de novembro de 2014, Windeck, primeira novela africana a ser exibida no Brasil. A telenovela chegou à TV pública brasileira com o apoio da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir/PR), numa conjugação de esforços com a Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Apesar da relevância dessa iniciativa, ela não retrata a complexidade de Angola.
Há muitos anos, a bossa nova, o samba, a música popular brasileira cruzam mais o Atlântico do que os ritmos angolanos atravessam para cá. Nessa maré, Aline recebeu a influência de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Djavan. De Cabo Verde, foram muitos os artistas que ecoavam em sua casa. Entre eles estava Cesária Évora (falecida em 2011), cantora de maior reconhecimento internacional de toda história da música popular cabo-verdiana.
Aos 26 anos e com agenda cheia por todo o mundo, ela lembra que o Brasil ajudou a abrir muitas portas para a produção lusófona.
– Quando as pessoas compram um ingresso, já têm uma certa familiaridade com a língua. Elas perdem parte da letra porque não entendem toda a mensagem, mas tudo bem. A música não precisa da palavra, não precisa ser levada pela mão – destaca Aline, que já lançou três álbuns em sua carreira: A Minha Embala, Clave Bantu e Movimento.
Angola em verso
Uma dessas letras onde Aline fala sobre as disparidades de Angola é Cacimbo. Para os angolanos, “cacimba” é quando há uma temperatura mais fria, com neblina, e que também é chamada de uma fase do ano em Angola.
“A música Cacimbo tem essa melancolia, esse desencanto. Tínhamos uma ideia de que a independência levaria a um equilíbrio social, a uma maior distribuição da riqueza para que o povo pudesse se emancipar dele mesmo e não apenas dos colonizadores”- lembrou a cantora, no ano em que Angola celebrará 40 anos de independência.
Vivendo hoje em Barcelona, Espanha, a angolana transita entre muitos mundos e lembra que a relação dela com a política é menos explorada em suas músicas e mais presente em suas crônicas para o Rede Angola.
– A música é um instrumento importante para a sociedade. Em África, o artista é, automaticamente, um ativista político. A guerra civil e a memória da colonização estão muito presentes. Mesmo a minha geração que não viveu a libertação, viveu a guerra civil. Tudo o que fazemos, o que conversamos, está ligado a essa memória.
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