África em Conto: “Filho de bidera – Parte 2”

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Reprodução Vídeo internet
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Por Magnusson Da Costa, Por dentro da África

Bissau – Com dois anos de idade, Miro começou a receber outra retalhada da vida. Pelo muito tempo que passava nas costas, teve problemas de crescimento irregular, demorou a aprender a andar, pois seus joelhos ficavam muito tempo presos. Ficou desnutrido. A vida que para alguns é uma casa na praia com piscina, rede presa a duas palmeiras, água de coco nas mãos e eterno verão, para Miro, resume-se um drama gravado em Bissau.

Era segunda-feira. Dia de trabalho e movimento na Praça de Bissau. Também era o primeiro dia de aula da semana para as crianças. A bidera acordou bem cedo, como de costume, e bateu com a mão na coxa esquerda do Miro, para acordá-lo e, disse-lhe:

-Filho, a partir de hoje vais ter que começar a ficar em casa!
Foi um choque grande. Apesar de Miro não saber falar, ele entendia tudo muito bem, e até demais. Então, ele olhou como quem quisesse perguntar: “mas, como? Com quem?”.

Percebendo o olhar, a mãe disse-lhe:
-Filho, precisa aprender a andar, pois já passou do tempo de aprenderes a sentar, a engatinhar e até falar. Para isso, precisa ficar em casa com a sua avó. Ela vai chegar logo de manhã, deixarei sua comida com ela, tá? Amo-te meu herói – com um olhar emocionado beijou o rosto do Miro. Saiu de casa, como sempre, com sua bandeja na cabeça, mas agora sem o seu herói nas costas. Uma nova aventura se lançava ao pequeno guerreiro.

Caminhando para a feira com passos lentos, diferente do costume, quase a chorar por não estar com seu companheiro de canseira, sentiu que estava faltando algo para completar seu dia. Miro não era apenas um bebê, mas uma parte dela e um amigo de caminho. Seus dias não serão mais iguais. O instinto materno lhe bagunçava a alma. Passou a mão na cara e fez um gesto para limpar as lágrimas e disse:

-Meu filho, meu filho, meu filho, por favor, me compreenda isso é para seu bem, jamais lhe deixaria só. – Distraiu-se e deixou soltar a voz. Uma senhora que ali passava, ouviu e perguntou:

Foto: Virginia Yunes - Guine-Bissau
Foto: Virginia Yunes – Guine-Bissau

– Falou comigo? Não, respondeu a Ekém.
E a senhora murmurou: -Só pode estar louca, falando sozinha no caminho. E soltou uma chiadeira.

Logo depois, Ekém saiu de casa deixando o Odendjon (nome dado ao Miro pela avó) em casa dormindo de olhos fechados e a cabeça pensando na nova rotina da sua vida e a curiosidade de como é sua avó.

Com tudo isso, pensou no lado bom das coisas, uma oportunidade de conhecer sua casa, seu bairro e até seu pai. Não sabia que seu pai também não ficava em casa.

Sem fazer nada na cama sozinho, foi levado por um sono de mel. Era exatamente nove horas e quarenta e sete minutos, quanto sua avó chegou à casa.

-Odendjon, Odendjon, Odé…
Era uma voz rouca da sua avó, a chamar por ele.

Miro acordou. Tentava levar as mãos nos olhos para se defender da claridade, mas não entendia quem tinha esse nome. Na verdade, ninguém tinha lhe chamado por um nome. A única pessoa que ele tinha contato era sua mãe e ela nunca havia lhe chamado pelo nome.

Tentou abrir os olhos pouco a pouco e viu uma senhora com turbante na cabeça e uma bacia de cargas por cima, uma espera comprida, um pano-de-pinte preso ao quadril e uma mandioca na mão. Era a avó Nadilé.

Ensanduichado entre os panos na cama, era tão pequeno no meio da cama que parecia uma bola no meio de um estádio vazio. Apreciando bem, sua avó, percebeu-se o quanto era nova a sua mãe e quanto o sacrifício podia acelerar o envelhecimento. Sua avó desceu e colocou as mãos por baixo dos seus sovacos e o arrancou da cama, resvalou-o lentamente de dentro dos panos.

Guiné-Bissau – Virgínia Maria Yunes

A dona Nadilé levou-o para fora, onde já tinha deixado uma banheira com água morna. O colocou dentro da banheira. Foi a primeira vez que Miro viu sua casa de dia, uma casa construída com adobes castanhos; sem reboco,  varanda estreita de lama, moída pelas chuvas; uma porta de zinco com uma batente levantada. Trinta centímetros e quarenta e sete era o número escrito na parede da casa com a cal branca. Percebeu na frente da sua casa um pequeno campo de futebol e uma escola primária.

Terminando o banho, a avó o colocou no colo e começou a dar para ele a canja. Dona Nadilé estendeu uma esteira e almofou-lhe com alguns panos dela, colocou o Miro para sentar entre as pernas dela, encostou-se à parede ouvindo as crianças de entre sete a dez anos de idade, a ler em voz alta na escola primária em frente da casa.

Depois de um tempo, finalmente deu-se intervalo e as crianças saíram para brincar no campo. Os meninos se dividiram em duas equipes para jogar futebol, as meninas formaram um círculo ao lado do campo e começaram a cantar e a bater palmas. Miro estava assistindo tudo da varanda. O curioso é que não podia se sentir encantado com aquilo. Fixou o olhar assistindo à partida do futebol. Foi a primeira vez que via algo sem precisar torcer o pescoço.

Um menino pegou a bola, driblou três colegas, ficou isolado com o goleiro, fez uma simulação de fazer um remate forte e colocou a bola entre as pernas do goleiro. Um excelente gol!

Miro ficou tão impressionado com aquilo que não pode conter e rasgou um sorriso de quatro dentinhos. Foi a primeira vez que viu crianças brincarem e felizes. Começou a imaginar-se naquela idade e, naquela posição, olhou para suas pernas pequenas e fracas, viu-se impotente. Apesar disso, sentiu-se mais próximo daquelas crianças das outras da feira. Afinal, ali era um Bissau menos sacudido do que feira de Bandim.

Ele via um novo mundo, outra realidade de Bissau.

Leia o “Filho da bidera, parte 1”

Magnusson Da Costa-estudante guineense de UNILAB-CAMPUS DOS MALÊS.