Alabê Ketujazz: espiritualidade, jazz e referências africanas sobre o palco

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Alabé Ketujazz – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da ÁFrica

Rio – A música é fonte de expressividade, de espiritualidade, é ferramenta onde sentidos se conectam. A partir de diálogos da percussão com o saxofone e de referências ao ritual do candomblé, nasceu o grupo Alabê Ketujazz. Criado por um brasileiro e um francês, o “Alabê” reafirma a africanidade propagando uma música feita para sentir.

– O alabê é um cargo no candomblé (religião afro-brasileira), é quem cuida da música, quem canta, toca, cuida dos atabaques. Ketu é uma das nações do candomblé que veio de uma combinação de várias religiões do povo iorubá, e o jazz é uma forma de liberdade de pensar a música, de misturar a improvisação – explicou Antoine Olivier em entrevista ao Por dentro da África.

Alabé Ketujazz – Divulgação

Antoine (o francês) e Glaucus (o brasileiro) que hoje vivem no Rio de Janeiro, se conheceram há duas décadas na Europa, especificamente em Paris, onde o contato com a África era intenso, presente. Antonie trabalhava como produtor de vários artistas africanos, enquanto Glaucus passava uma temporada ao lado de Salif Keita, com quem trabalhou por cinco anos. Nascido no Mali, Salif é conhecido como a voz de ouro da África.

– Eu tinha esse olhar vindo da África, adaptado à Europa, ao candomblé… Então, nós começamos a fazer experimentos. Eu pegava o sax, e a nossa música ia nascendo com o jazz… Vale lembrar que as pessoas confundem um pouco o jazz… Ele não é apenas um tipo de música, ele é um princípio de abordagem que cria a sua própria verdade – contou Glaucus Linx em entrevista ao Por dentro da África.

Nação Ketu

O candomblé Ketu, que inspira e dá nome ao grupo, é a maior e a mais popular “nação” do candomblé. Para a nação Ketu, o deus é Olorum, para a nação Bantu é Zambi e para a nação Jeje é Mawu. No ritual de uma casa de Ketu, as particularidades estão no idioma, no toque dos Ilus (Atabaque no Ketu), nas cantigas, nas cores usadas pelos orixás. Entre os rituais mais importantes estão o Sassayin, o Axexê, o Olubajé e o Ipeté de Oxum.

benin– A região da nação Ketu está localizada onde hoje estão Nigéria e Benin. Uma parte da cidade de Ketu, que foi capital dos iorubás no século XVI, fica no Benin, outra parte, na Nigéria. Foi a nação Ketu que deu origem ao culto a Oxóssi, o grande caçador mítico – disse o babalorixá Marcio de Jagun em entrevista ao Por dentro da África, lembrando que o culto a Oxóssi é muito mais presente no Brasil do que nessa região da África.

Márcio destaca que essa presença do culto do lado de cá do Atlântico revela a transposição da cultura africana para o Brasil. Isso porque o Brasil recebeu cerca de 5 milhões de africanos escravizados durante mais de três séculos de escravidão (XV – XIX). Mais de 70% deles vieram de uma região chamada Reino do Kongo (que abrangia os países que hoje são chamados de Gabão, República Democrática do Congo, República do Congo e Angola). Também chegou em terras brasileiras muitos africanos de países onde hoje estão localizados o Benin e a Nigéria.

– Existem mitos interessantes sobre a criação de Ketu. Ketu teria sido uma etnia: a etnia Arô. O rei de Ketu tem a denominação de la ketu e o povo de ketu, Ara ketu. A própria saudação a Oxóssi é Oke Arô – contou Marcio, completando que, para ele, mostrar a espiritualidade das religiões de matrizes africanas na música ou em qualquer manifestação artística é importantíssimo para que as pessoas de fora do candomblé possam conhecer sobre uma cultura que está além da religião.

Alabê Ketujazz – Divulgação

Sobre as particularidades da nação Ketu, Marcio de Jagun diz que os alabês usam sempre três instrumentos de percussão chamados de HUM, HUMPI, LE. Esse nome já revela um sincretismo com a nação Jeje provando que não houve sincretismo apenas com o catolicismo, mas com outras formas de cultuar os orixás.

– As pessoas, às vezes, acham que o candomblé só sincretizou com a igreja católica. Houve muita troca nas senzalas, nos momentos em que os escravos tinham para cultuar os seus orixás. O sincretismo não é um comportamento apenas da religião, mas humano – ressalta o babalorixá.

Esse é um dos hinos da nação Ketu

Fará imóra
Olúwo
Fará imóra
Araketu Wúre
Fará imóra

“Tradução”

Usamos o corpo para nos abraçar
Nós nos abraçamos
Somos todos filhos do ovo de Kétu
E pedimos abenção.
E se abraçam
(“Somos unidos num corpo só”)

No palco 

Sobre o palco, durante as apresentações do Alabê, são posicionados os atabaques com toques que fazem referência ao candomblé. Nota-se a experiência dos músicos que acompanham Glaucus e Antoine, com relação à vivência na religião de matriz africana, que complementa a espiritualidade de cada um. Para Antoine, que aprendeu muito do que sabe com o mestre da percussão afro-brasileira Dofono de Omolu, essa busca de sintonia une corpo e alma porque a música não faz sentido fora da espiritualidade.

– A abordagem que o jazz faz é parecida com a que os místicos fazem no budismo. Eles vivem o agora. Essa abordagem tem muito a ver com o lado religioso, mas não é só isso, embora existam muitos que se dediquem à religião. Por isso que a gente diz que a música que a gente toca não é para pensar, para dançar, mas para ser sentida – completa Glaucus.

Antonie – Alabê Ketujazz – Divulgação

No histórico do percussionista, o mergulho no candomblé foi seguido de um mergulho no drum base, gênero de música eletrônica que surgiu na Inglaterra no início dos anos 90. Na tradução, “Drum and Bass” seria “bateria e baixo”, quando há batidas de bateria acústica em algumas delas e som forte e grave do baixo.

– Eu estava na Inglaterra, e isso era o pulso de Londres. Acho que eu não dormi por uns 5 anos… E depois foi a mesma coisa no Brasil, quando comecei a mexer com percussão. Para mim, as batidas do candomblé são o pulso do Brasil de hoje, algo extremamente vivo. Não existe samba sem candomblé, a comida brasileira sem o candomblé… Toda essa raiz é extremamente profunda – acredita Antoine, que, ao chegar no Brasil em 2006, se encantou pela união de música e religiosidade do candomblé.

Aprendendo sobre a música africana

Glaucus – Alabê Ketujazz – Divulgação

Glaucus diz que, anos atrás, ele tinha um olhar bem ocidental, o que faz com o que as pessoas tenham muita dificuldade quando estão tentando aprender sobre a música africana. Para ele, o olhar voltado apenas para o Ocidente não permite compreender a música africana.

– A gente perdeu muito porque ficou perto demais dos Estados Unidos e longe da África. O olhar do negro é Oriental, por isso que a gente precisa mudar o nosso olhar! O olhar do africano é o olhar da sabedoria, do sentir. Quando eu aprendi a olhar a música deles como eles olhavam, aí perdeu o segredo pra mim. Eu tentava racionalizar a música (como eu poderia simplesmente escrever e tocar), mas não era esse o caminho: tinha que olhar como eles olhavam, como eles falavam. Então, eu comecei a entender essa dimensão espiritual – explica.

Salif Keita – Divulgação

Essa dimensão que Glaucus conta está em Salif, umas das suas grandes influências na música africana. Salif Keïta é descendente direto do fundador do Império Mali, Sundiata Keita. Esta herança significa que ele nem deveria ser um cantor, já que é uma função desempenhada por griots (considerados não apenas contatores de história, mas porta-vozes das sociedades africanas). A música dele é uma mistura de estilos de música tradicional da África Ocidental, Europa e América e, no entanto, mantendo estilo de música islâmica.

– Quando eu pisei pela primeira vez na África, eu percebi o que é a africanidade, o que é ser africano… É outra noção da vida, são outros valores, valores orientais! Com o Alabê, esse processo de sentir foi o caminho. As pessoas percebem essa profundidade quando a gente toca uma música desse tipo, que toca na religião. Religião quer dizer religar com o espiritual. O Alabê eleva isso no nível de energia, a gente está estimulando o que as pessoas não estão mais acostumadas – conta o músico que já produziu artistas como Elza Soares e tocou com muitos outros como Nelson Sargento, Dona Ivone Lara e Cláudio Zoli.

Brasil e África

Alabê Ketujazz – Divulgação

Em sua apresentação, Antoine e Glaucus afirmam que a riqueza da percussão africana é monumental. O conhecimento desta tradição é passado de mestre a aprendiz em espaços religiosos. Cada sacerdote-músico que tem a função de Ogã é possuidor de uma parcela de conhecimento. Numa cultura de tradição oral e num ambiente onde o estudo musical formal é incomum, há raros registros destes tesouros musicais. Muitos percussionistas destacados no Brasil e no mundo bebem nestas águas, mas raramente a musicalidade original extravasa estes espaços de culto.

– Para mim, o Brasil é uma mistura de ocidental com a África. Eu venho do sul da França e tenho essa cultura do Mediterrâneo, que fica à beira da África, mas aqui é mais especial. Quando você vai para o subúrbio do Rio, você faz uma viagem física e no tempo. O candomblé do subúrbio do Rio é uma África que existe aqui, que foi conservada com rituais, religião, cultura – conta Antoine.

Alabê Ketujazz – Divulgação

Com uma programação de shows dentro e fora do Brasil e um CD de composições próprias como Ijexá, o grupo começa a mostrar essa influência. Uma das músicas presentes no show é Canto de Xangô, de Vinícius de Morais e Baden Powell. Na apresentação do Alabê, se chama Alujá em um toque dedicado a Xangô.

– O Alabê é um chamado ao sentido, à música, ao ritual. No candomblé, as pessoas se olham. No Alabê, é a mesma coisa. Quando a gente toca, as pessoas se olham e se sentem. É um chamado dos orixás, também, que atinge diretamente a nossa espiritualidade.

Acompanhe o grupo por aqui