O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro receberam no último dia 1° de março comunicado do Centro do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, informando que aceitou o dossiê da candidatura como completo e apto a iniciar os trâmites de análise por suas instâncias técnicas.
Elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Prefeitura do Rio de Janeiro, com o aporte de um qualificado corpo de especialistas contratados, o dossiê servirá como base para o trabalho de uma missão de avaliação, formada por representantes dos órgãos consultivos da UNESCO, que visitará a região portuária e o Cais do Valongo nos próximos meses.
O trabalho técnico prosseguirá com a participação da comunidade e do Comitê Consultivo da Candidatura, composto por várias instituições governamentais e da sociedade civil, especialmente as representativas da preservação e valorização da herança africana.
O Iphan e a Prefeitura do Rio afirmaram estar otimistas com a possibilidade de inscrição do Cais do Valongo na lista do Patrimônio Mundial que, uma vez concretizada, representará o reconhecimento do seu valor universal excepcional, como memória da violência contra a humanidade representada pela escravidão, e de resistência, liberdade e herança, fortalecendo as responsabilidades históricas não só do Estado brasileiro, como de todos os países membros da UNESCO. É, ainda, o reconhecimento da inestimável contribuição dos africanos e seus descendentes à formação e desenvolvimento cultural, econômico e social do Brasil e do continente americano.
A grande porta de entrada de africanos escravizados no Brasil
O Brasil recebeu cerca de 4 milhões de escravos nos mais de três séculos de duração do regime escravagista, 40% de todos os africanos que chegaram vivos nas Américas, entre os séculos XVI e XIX. Destes, aproximadamente 60% entraram pelo Rio de Janeiro, sendo que aproximadamente um milhão pelo Cais do Valongo.
A partir de 1774, por determinação do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Brasil, o desembarque de escravos no Rio foi integralmente concentrado na região da Praia do Valongo, onde se instalou o mercado de escravos que, além das casas de comércio, incluía um cemitério e um lazareto.
O objetivo era retirar da Rua Direita, atual Primeiro de Março, o desembarque e comércio de africanos escravizados. Após a chegada eles eram destinados as plantações de café, fumo e açúcar do interior e de outras regiões do Brasil. Os que ficavam no Rio de Janeiro, geralmente eram os utilizados em trabalhos domésticos, ou nas obras públicas. A vinda da família real portuguesa para o Brasil e a intensificação da cafeicultura ampliaram consideravelmente o tráfico escravagista.
Em 1811, com o incremento do tráfico e o fluxo de outras mercadorias, foram feitas obras de infraestrutura, incluindo o calçamento de pedra de um trecho da Praia do Valongo, que constitui o Sítio Arqueológico do Cais do Valongo.
O local foi desativado como porto de desembarque de escravos em 1831, quando o tráfico transatlântico foi proibido por pressão da Inglaterra – norma solenemente ignorada, que recebeu a denominação irônica de ‘lei para inglês ver’.
Doze anos depois, em 1843, o Cais do Valongo foi reformado para receber a Princesa das Duas Sicílias e Princesa de Bourbon-Anjou, Teresa Cristina, esposa do Imperador Dom Pedro II, recebendo o nome de Cais da Imperatriz.
Com a assinatura da Lei Eusébio de Queirós, em 1850, pôs-se fim verdadeiramente ao tráfico para o Brasil, embora a última remessa conhecida date de 1872 e a escravidão tenha persistido até a Abolição, em 1888.
Em 1911, com as reformas urbanísticas da cidade, o Cais da Imperatriz foi aterrado. No entanto, durante as obras na região, com as escavações realizadas no local em 2011, foram encontrados milhares de objetos como parte de calçados, botões feitos com ossos, colares, amuletos, anéis e pulseiras em piaçava de extrema delicadeza, jogos de búzios e outras peças usadas em rituais religiosos. Entre os achados raros, há uma caixinha de joias, esculpida em antimônio, com desenhos de uma caravela e de figuras geométricas na tampa.
Em 2012, a Prefeitura do Rio de janeiro acatou a sugestão das Organizações dos Movimentos Negros e, em julho do mesmo ano, transformou o espaço em monumento preservado e aberto à visitação pública. O Cais do Valongo passou a integrar o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, que estabelece marcos da cultura afro-brasileira na Região Portuária, ao lado do Jardim Suspenso do Valongo, Largo do Depósito, Pedra do Sal, Centro Cultural José Bonifácio e Cemitério dos Pretos Novos.
Em 20 de novembro de 2013, Dia da Consciência Negra, o Cais do Valongo foi alçado a patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, por meio do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). Representantes da UNESCO também consideraram o sítio arqueológico como parte da Rota dos Escravos, sendo o primeiro lugar no mundo reconhecido pela UNESCO. O evento reforçou ainda mais a intenção da cidade de lançar a candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade.
O dossiê elaborado ao longo de um ano de trabalho, coordenado pelo antropólogo Milton Guran, resgata a história trágica e cruel do tráfico negreiro e analisa com detalhes a importância histórica e o simbolismo do sítio arqueológico para todos os brasileiros, em especial os afrodescendentes.
O Sítio Arqueológico do Cais do Valongo não só representa o principal cais de desembarque de africanos escravizados em todas as Américas, como é o único que se preservou materialmente. Pela magnitude do que representa, coloca-se como o mais destacado vestígio do tráfico negreiro no continente americano.