Por Leonardo Lupi, Por dentro da África
Perdi a África de meu imaginar.
Em meu imaginário, perdi África.
Perdi os sabores e texturas que antes vagavam em minha mente, as formas e vidas que formavam minha visão mosaica.
Perdi a quentura de uma imagem d’África.
O sol na pele, o registro único, a natureza a se contemplar.
Da África que morre em minha mente, qual África renascerá?
Sabe-se lá qual minha visão do continente, tamanhas dúvidas, contrastes, ignorância e
obscurantismo dos olhares que temos de lá.
A África é distante. Não nos separa apenas o Atlântico – há um abismo, uma fenda de
proporções incalculáveis.
Onde está a África dos meus sonhos de criança?
Qual fora a África sonhada? A África criada, inventada por ideias pueris e noites de sono? De
fato havia uma África brincante, dos objetos de quarto de criança, das estórias que antecediam
o dormir, das imaginações de quem descobria o mundo?
Desconhece-se a África que havia. O olhar para o passado, agora, é ver-se diante de neblina e
escuridão. O ser criança morrera – o que domina agora é uma maturidade triste, uma
melancolia calculada, um pesar extremo e eterno que nos impede de fabular ou acreditar em
dias felizes.
A África agora é reflexo disto.
Espelho no lago onde brincam crianças sofridas, sorridentes, solitárias. Repletas de gentes
próximas, distantes das gentes do mundo. Solitárias como a África em um cenário mundano de
abandono e desigualdade.
Quais reflexos espelham África? Quais vidros, metais preciosos, diamantes valiosos e raros?
Hoje é o vazio quem domina – do ouro de um passado heroico, pouco resta. De reinos a
periferias, a maturidade fora como uma degradação – é ruína: empobrece-se, perde-se, morre-
se gradualmente. O abismo é o único rumo capaz de ser calculado.
Nos sonhos de criança talvez houvesse mulheres rendeiras, cantos tribais, mitos
moçambicanos. Talvez houvesse uma África fantástica, da fabulação descortinada, do realismo
mítico. África d’ambiguidades, de antiguidades e paradoxos, de paradigmas e ambições. África
mista – África de cor, de cores, da essência mais rica que só uma mente ainda criança seria
capaz de imaginar.
África de redes e rendas, das pestes e vestes, de ativistas e artistas. África de dourados tempos
antigos, das chamas de invasões, do monocromático imperialismo e da vermelha (apaixonante
e sangrenta) descolonização.
Qual fora a África aprendida em livros de escola? África esquecida, minimizada, subestimada.
Havia África em tempos de criança? Ou havia apenas ideias vagas, sugestões vazias?
Perde-se a África ainda no imaginário infantil.
Por isto de fato já perdi África – perdi-a antes mesmo de achá-la.
Quem algum dia apresentou-me África?
E quantas Áfricas ainda hão de me ser apresentadas?
Perdi África muitas vezes, reencontrei-a, desfiz e refiz pensamentos sobre ela, é eterno em
minha mente seu processo de desconstrução.
É a África um continente-quebra-cabeça. Um mosaico complexo, obra de arte viva, tabuleiro
de um jogo feroz. Quem é a África ao meio de um mundo? Uma desesperança repleta de
esperas e ambições. Distopia utópica – sonho real irrealizável.
Flutua a África em uma esfera desigual. Globo de antigas partilhas, de guerras infindas,
dissabores arraigados. O que esperar de uma África nova? Qual imagem dela se (re)construirá?
Que imagens podemos ter de África se ela nos é distante, apartada, renegada?
Perdemos África todos instantes. Escorre sua vida em nossas mãos, dilui-se sua beleza
continental em um pensamento oco e ocidentalista.
Quem dera, enquanto crianças, sonhássemos estórias africanistas. Tivéssemos fábulas de
tribos, dos impérios antigos, das culturas milenares…
Quem dera tivéssemos a nós mesmos. Nós, brasileiros, descendentes de índios e africanos,
terceiro-mundistas, periféricos.
Quem dera crescêssemos sonhando heróis de nossas terras, crendo em mitos de nossa gente,
amando e cuidando daquilo que é nosso.
A África, que é nossa, por que nos é tão segregada?
Perdemos África no perder de nós mesmos. No abandono das raízes, na privação do contato,
na contenção da autoestima.
Em qual imaginário vive África?
Em qual pensamento longínquo, utopia solitária, crença desconhecida?
Perdi e ainda perco África – toda hora, todo instante. Tantas vezes já perdi África…
Quantas vezes já perdi África?
Leonardo Lupi
Leonardo Lupi é estudante de jornalismo da UFRJ