Elisabete Nascimento, Por dentro da África
Queres dizer o que devo dizer?
Queres dizer como devo viver sem incomodar você
E lavar, passar, cozinhar e ainda ninar, como ama de leite, teus bebês?
Queres dizer porque devo existir
Mas não persistir e nem insistir em Ser,
Depois de calar-me à custa de flandres?
Queres dizer o que devo pensar
E me impor a alvura do Norte, a caligrafia de teus versos
E demonizar o Padê, o Agueré e o Alujá: comida e dança de Orixá,
Depois de calar-me à custa de flandres?
Queres dizer que não devo escrever meus poemas negros,
Nem cantar pra Oiá nas noites de Lua azul e de Xirê,
Que devo esquecer de Leopoldo no Congo
E Diogo, o cão, de suas misérias e barbáries,
Depois de calar-me à custa de flandres?
Queres dizer para eu crer na tua invenção do meu Ser,
De ser eu mesma a culpada de meus infortúnios
E sevícias em meu corpo de memória esgarçado por ti,
Que devo assumir que me fiz cativa,
Herdeira de Cam amaldiçoado de Noé,
Depois de calar-me à custa de Flandres?
Queres dizer o que devo Ser
E que repita rimas e sinas desgastadas:
Sou suja, lúgubre, nefasta, nefanda e encardida,
Boçal, cheia de mimimi, vítima de mim mesma.
E ainda assim devo amar-te e agradecer-te
Por desfrutar da mulata saborosa de ganho, enfim…
Já que me deste a máscara de flandres?
Quanta pretensão!
Acreditar que esgrimirei a forja de Xoroquê contra mim.
Cunhar e forjar coleiras, correntes e pentes de ferro
E submeter-me aos teus delírios, jamais!
Se a ti não devoto metáforas e alexandrinos,
Se não repito em meu corpo tuas selas:
Mulata gostosa e fogosa,
Colocas-me em cela: cabelo ruim.
Queres dizer como devo pulsar, vibrar e ouvir, vestir-me e sonhar, coser e cozer e gozar
E me impedir de falar: não conseguiste calar-me, de fato, à custa de flandres?
É que inventei uma Lírica de infinitos Itans e Orikis.
Quanto ao valor destas vivências, só a ti meu leitor, meu amor
Cabe tirar tantos versos da indigência de afeto.
Mas eles alertam: quebrar o ferro não abole o despautério.
Observai do ferro ao silício, o que não pode ser silenciado…
Ainda queres dizer o que devo pensar, dizer, rezar e amar
Depois que quebrei a máscara de Flandres?