Por Ulrich Schiefer, Por dentro da África
(Artigo produzido em parceria com o Instituto Universitário de Lisboa)
Falar de sociedades africanas quer dizer falar de tribos ou de etnias, o que denota a mesma coisa, embora com conotações muito diferentes. O uso da palavra tribo (do latim tribus) foi, a partir das últimas décadas do século passado, criticado por algumas correntes antropológicas e banido do discurso científico alegadamente por ter sido um termo discriminatório do colonialismo.
Uma boa parte das elites africanas pós-coloniais tentou construir um estado-nação, portanto, orientou-se no sentido de modelo europeu do século XIX. A maneira escolhida por muitas foi a eliminação de tudo que diz respeito à tribo dos discursos – e a perseguição dos oponentes como tribalistas. Na prática, nenhuma elite de poder africana pode ignorar a força das tribos, o que levou a estratégias muito elaboradas para tentar produzir uma espécie de equilíbrio – com consequências nefastas onde tal fracassou.
E o fato de as guerras africanas serem apresentadas pela mídia, para o consumo internacional, como guerras tribais também não ajuda. O que torna difícil tratar sine ira et studio o princípio organizacional fundamental das sociedades africanas sem ser acusado de tribalismo ou de colonialismo.
As sociedades agrárias africanas são constituídas etnicamente; por outras palavras, são sociedades que seguem o princípio de auto-organização em padrões codificados de parentesco, de descendência, portanto, com uma extensão territorial (Sigrist). Acresce a esta definição uma dimensão espiritual.
Esta abordagem permite-nos fugir ao essencialismo que atribui a pertença étnica a qualidades intrínsecas (sangue, características físicas), ou ao construtivismo, que na etnia não vê mais do que uma “construção social” e para muitos relativiza, deste modo, a sua força existencial. Porque de uma força se trata – a etnicidade é um princípio estruturante das sociedades africanas e não só. Mesmo as partes das sociedades não se autodefinem como étnicas, ou em oposição às tribos, são colocadas num contentor étnico pelos outros.
A análise das sociedades agrárias pressupõe, por isso, o estudo de várias sociedades em conjunto, na medida em que a análise individual das sociedades limita seriamente a sua compreensão.
Um exemplo: Um domingo de manhã, recebi a visita de um antropólogo europeu que foi incumbido de organizar um livro sobre o uso dos recursos naturais das sociedades agrárias. Ele pediu-me para escrever o capítulo sobre uma determinada etnia. Sentados na minha varanda a gozar o lindo sol africano expliquei-lhe tintim por tintim, durante várias horas, que isso não seria possível. Para compreender o uso de recursos naturais na zona em questão era preciso compreender e descrever a interação de quatro sociedades étnicas. No fim da conversa repetiu o convite: não queres escrever o capítulo sobre a etnia X?
Essa limitação deve-se ao fato de as sociedades se constituírem mutuamente e não serem compreensíveis fora do seu contexto. Não se refere apenas ao fato de não existirem“sociedades nacionais” – isto é, sociedades cuja extensão e constituição coincidam com os limites dos respectivos “Estados” – a exercer, ou não, algumas funções nos seus territórios.
A sua constituição interna implica sempre a existência das outras sociedades. Há uma correlação estreita entre a estrutura societal étnica, o controle sobre os recursos naturais e a constituição do “poder” étnico, tal como se manifesta na dimensão espiritual e na organização guerreira. Espiritualidade e poder – mesmo em sociedades acéfalas – desempenham um papel essencial na regulação das relações interétnicas, tanto na gestão dos recursos naturais como na constituição destas alianças. De igual modo, determinam o relacionamento das sociedades agrárias com o Estado pós-colonial.
O acesso aos recursos naturais é regulado através de um nível espiritual de caráter étnico. Esse nível influencia, por sua vez, a constituição étnica, que proporciona os mecanismos de regulação para o uso dos recursos. O controlo do acesso aos recursos é constitutivo da estruturação societal. Da dimensão espiritual derivam, também, os mecanismos principais para a regulação das relações internas de poder e de autoridade.
Nas sociedades com régulos, esta dimensão orienta a legitimação e a limitação do poder do régulo. Nas etnias acéfalas, serve para evitar o nascimento de relações de poder econômico, ou político. Nenhum indivíduo ou grupo pode adquirir riquezas ou poder, sem sofrer as sanções espirituais. Deste modo, serve como garantia da manutenção da acefalia. Os mecanismos do nível espiritual são fundamentais para a identidade social dos seus membros e para a produção dos respectivos caracteres sociais.
A estrutura societal étnica interna inclui, por norma, uma organização, secreta e guerreira, que serve de defesa ao acesso aos recursos e contra perigos externos. Como forma de expressão do poder do próprio grupo étnico, entendido como emanação do poder espiritual, a organização guerreira serve para a projeção exterior do poder. Este é, também, utilizável para a apropriação de recursos externos, por exemplo através de roubos ou de raids.
A pertença a um grupo étnico é fundamental em sociedades que se estruturam consoante este princípio. O acesso é, portanto, estritamente definido: uma pessoa pertence através de nascença – embora os velhos digam que “um menino não tem raça”, todavia eles sabem que é a educação que imprime as características específicas que fazem de uma criança um membro da sociedade. Não está prevista a saída de uma tribo – a não ser através da fuga, ou de banimento, que é considerado o pior castigo e que pode assumir a forma de colocar uma pessoa no papel de “não-pessoa”, que existe e come, mas é tratada como se não estivesse presente.
No caso de uma alma perdida, por exemplo através de “loucura”, são mobilizadas todas as técnicas de cura disponíveis. As almas dos mortos ocupam um lugar especial, mas não deixam de ser membros.
As etnias também têm estatutos secundários, bem definidos, para prisioneiros de guerra, hóspedes, migrantes, embaixadores, visitantes, entre outros, que gozam de certos direitos e têm certas obrigações. A força do princípio étnico das sociedades agrárias africanas é evidente.
Durante milênios, em parte em coexistência pacífica com as sociedades nômades, em parte em conflitos com eles, que às vezes ganhavam e às vezes perdiam, elas produziram as estruturas sociais, os valores, os comportamentos, a riqueza cultural e espiritual das sociedades africanas. Muitos dos modos de funcionamento, os modos do exercício do poder e do controlo social que ainda dominam as sociedades, inclusivamente as sociedades urbanas e periurbanas, têm as suas origens nas sociedades agrárias.
Elas resistiram e souberam lidar com mudanças climáticas profundas e ainda continuam a existir. Demonstram, portanto, uma impressionante resiliência. Elas controlam, embora cada vez com menos sucesso, o potencial de violência dos seus cadetes e quando falham fornecem, para muitos conflitos violentos, a mão-de-obra.
E estão na origem de muitas migrações, sejam estas intra ou intercontinentais que servem igualmente de destino para migrantes ou refugiados de outras sociedades. Em tempos mais recentes, depois do sucesso parcial das tentativas da sua destruição, entendida e intencionada como preço a pagar pela modernização dos países africanos, implementada pelo complexo desenvolvimentista em cumplicidades com “elites nacionais”, as sociedades agrárias constituem para as agências internacionais, objeto de desenvolvimento. É discutível se este facto não contribuiu nas últimas décadas mais para a sua destruição do que as décadas anteriores da ocupação colonial efetiva.
Dentro da lógica global de desenvolvimento, não são tratadas como sociedades concretas e específicas, mas sim, divididas em grupos alvo pelo desenvolvimentismo internacional e sujeitas a tentativas de modernização que visam o aumento da produção agrícola por todos os meios. Esta atenção para com a produção agrícola que se manifesta numa produção múltipla de teorias, políticas, abordagens, estratégias, metodologias de intervenção etc., a nível internacional, somente é ultrapassada pela negligência quase total e absoluta por parte das elites de poder nacionais. Para estas, em muitos países, as sociedades agrárias já não servem como fonte de rendimento, mas sim de massa a ser manipulada para eleições, ou de recrutamento para conflitos entre diferentes facções políticas.
Entretanto, a segurança alimentar, entendida como capacidade das sociedades de alimentar toda a população, inclusive a população urbana, está a diminuir drasticamente. Convém, portanto, lançar um olhar mais profundo sobre o potencial e o contexto produtivo destas mesmas sociedades.
Artigo desenvolvido pelo Curso de Estudos Africanos, do Instituto Universitário de Lisboa, para a parceria com o Por dentro da África. Saiba mais sobre o curso e a instituição aqui