África em Crônica: “De senhoras, de donas e da Bahia”

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Foto – Victor Uchôa

Por Michele Louvores, Por dentro da África 

Uma senhora teve de sair de um dos shoppings mais tradicionais de Salvador sob proteção da polícia na semana passada. Foi hostilizada pela população por ter recusado o atendimento de vendedores negros e chamado o segurança de macaco. Senhora: era assim que Núzia Santos de Aquino estava sendo chamada até que a imprensa descobriu seu nome e que ela é investigadora da Polícia Civil.

Tudo isso aconteceu na semana passada, na minha cidade preta, aquela que sempre personifiquei como “Senhora Dona Bahia” antes mesmo de conhecer o poema de Gregório de Matos.

Senhora Dona Bahia,

nobre e opulenta cidade,

Madrasta dos naturais,

e dos estrangeiros madre:

Dizei-me por vida vossa

Em que fundais o ditame

De exaltar os que aqui vêm,

E abater os que aqui nascem?

Se o fazeis pelo interesse

de que os estranhos vos gabem,

isso os paisanos fariam

com conhecidas vantagens.

E suposto que os louvores

em boca própria não valem,

se tem força esta sentença,

mor força terá a verdade.
Salvador da Bahia, de senhoras e de donas. Cidade que nem precisava do IBGE para saber que tem o maior número de descendentes de africanos no mundo. Mas carecia porque só ouve louvores de boca alheia. Aqui, só com o aval da ciência a sentença vira verdade. E olhe lá.

Diz o mesmo IBGE que para cá vieram africanos da Nigéria, Togo, Benin e Gana, países presentes na exposição “Bahia é África também”, em cartaz ali no Palacete das Artes, pertinho do shopping de onde Núzia saiu coberta de medo do linchamento.

Foto – Tacun Lecy

No museu, estão expostos objetos africanos sagrados e artísticos de nações e períodos diferentes que compunham a coleção do italiano Claudio Marsella. Claudio rodou vários países, casou com uma nordestina e veio morar na Bahia, estado para o qual doou a coleção. Para ele, diria Gregório de Matos, a Bahia foi madre.

Para Bernardo Catharino também. O Palacete das Artes onde está a exposição foi por muitos anos seu lar. Na Bahia, o imigrante português progrediu, abriu fábricas, escolas e retribuiu as graças ofertando os altares-mor da Catedral Basílica e da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, aquela no alto da colina onde se amarram fitas para fazer pedidos.

Bastardos e paridos, todos filhos da Senhora Dona Bahia. Madrasta para a (senhora?) Núzia e para os pretos funcionários do shopping. Madre para estrangeiros como Bernardo Catharino e Claudio Marsella. A cidade da Bahia tem tensões que, para quem está de passagem, a tornam interessantes.

Tensões que explodem matando 20 em um único fim-de-semana, a maioria em bairros periféricos da região metropolitana, onde vivem 51% de pessoas negras para quem ser chamado de “macaco” é muito mais comum do que ser chamado de “senhora”. Tensões que são interessantes para um visitante, mas venha viver num barril deste tamanho sem ter medo da pólvora. Nobre e opulenta, Salvador é dessemelhante.