Pedro Matos, Por dentro da África
Entre 1884 e 1885 aconteceu a Conferência de Berlim. Uma reunião entre as potências coloniais e imperialistas da época decidiram a “partilha” da África. A palavra “partilha” não foi uma escolha acidental. O continente europeu vivia os seus Cem Anos de Paz (1815-1914). Havia um esforço diplomático e militar para que qualquer conflito e rivalidade entre seus países fossem resolvidos de maneira cirúrgica, ao ponto dos países se apresentarem como “irmãos unidos”, cultivando um ideário da paz. A referida palavra nutre uma ideia de solidariedade, de comunhão e de fraternidade. Enquanto, etimologicamente ela corresponde à repartição de bens, divisão de lucros. Mas, repartir qual bem? Dividir qual lucro? “Irmãos partilhai-vos a África”. Neste contexto, a África é tratada como uma “herança” e um “investimento” a ser partilhados entre os irmãos europeus.
Mas, a herança é consagrada por um testamento. Na Conferência de Berlim não o havia, porque era impossível racionalmente: nenhum africano escreveu um testamento, colocando como beneficiários as potências europeias. Do mesmo modo, lucro suscita retornos positivos de um investimento feito por alguém, ou por um grupo. Não existia nenhum investimento feito por essas potências na África, naquela época. Tratou-se unicamente de explorar os recursos africanos, transformando-os em investimentos nas suas nações. Assim sendo, o continente foi tratado como um objeto.
Quando no continente chegaram, os europeus esquecerem-se dos ensinamentos da fraternidade e dos requintes de sua civilização. A África foi esquartejada, assaltada a sua soberania e assassinado o seu povo. Esse período caracteriza-se pela ocupação territorial, exploração e acumulação profunda dos recursos africanos para satisfazer a esfomeada máquina capitalista europeia. Para isso, o homem africano foi expulso de seu espaço social, principalmente, por meio das guerras fomentadas pelas potências, criando uma rivalidade endógena. Sendo essa rivalidade a cortina costurada para que escondesse a exploração dos recursos que estava sendo realizada.
Ao longo do processo riquezas africanas foram sendo sugadas, embelezando as nações prósperas. Os conhecimentos foram sendo apropriados, ao mesmo tempo em que se reforçava a inferioridade das tradições orais como fontes de conhecimento e se exaltava o eurocentrismo como o único parâmetro científico, amputando a chance de uma epistemologia alternativa. As experiências tradicionais de Estado/Desenvolvimento/Democracia foram suplantadas pela lógica eurocêntrica que apontava para a modernização desenfreada do século XX. Porém, esqueceu-se que o moderno é uma questão de parâmetro, e a África já o havia realizado séculos antes. Da ideia do Estado não como árbitro e sim guardião do bem público, do Bem-Estar Social, à noção do desenvolvimento sustentável plasmada no coletivismo como forma de evitar o desperdício, e à participação democrática, começando desde o nível familiar, inclusive incorporando a voz feminina, isto é, um sistema matrilinear, diferentemente do sistema patrilinear europeu.
No entanto, de maneira violenta, introduziu-se o modernismo ocidental, e após despir a África de seus recursos (essencialmente os recursos humanos), tanto pela subalternidade incutida neles, quanto pelo assassinato de vários pan-africanistas (intelectuais, políticos e líderes), a África virou órfã de uma perspectiva de reanimo sociopolítico. Na medida em que o continente chorava os seus filhos perdidos, e o caos político parido pelo neocolonialismo, as potências capitalistas voltaram para casa, mas, mantendo a máquina sugadora ligada que continua, sucessivamente, solapando os recursos do continente.
Uma vez bem abastecidas, essas mesmas potências apartaram a África do mundo e de si mesma. Criam fronteiras para barrar o vírus da pobreza às suas zonas prósperas, e como “solidariedade”, elas endereçam uma ínfima parte do Orçamento do Estado para ajudar os países africanos, propalando aos outros o quão é venerável a sua causa humanitária, contudo, sem declarar o quanto ainda extrai desses pobres países. Formulam rígidas leis para conter os emigrantes africanos; negligenciam o ato xenofóbico dos nacionais contra os que ali residem, pois, não querem dividir a “riqueza do país” com esses emigrantes.
Já que as condições de vida nos países africanos foram minguadas, pela lógica estrutural, mantendo os termos de trocas injustos, fomentando, de novo, a instabilidade política, estes africanos partam para Europa, fazendo uma travessia que reservada às proporções, relembra os africanos que foram transformados em escravos, cruzando o Oceano Atlântico em direção às plantations nas Américas. Só que estes vão à busca de uma vida melhor “nas Europas”. Pena que isso não se concretize. Muitos são mortos pelo destino sorrateiro. Os que alcançam o litoral são barrados pela Fortaleza Europeia, contidos pelo civilizado velho continente, colocando-os em prisões de segurança alta, até a data de serem repatriados, voltando de novo ao mundo destruído por aquelas potências, de onde segunda elas “nunca deveriam ter saído”.
Esta é a semana da África, que rememora a unidade africana, plasmada na Organização da Unidade Africana (25 de Maio de 1963), atual União Africana (2002). É o momento não de reflexão, e sim de ação. Enquanto se reflete, de olhos fechados, a África é roubada. É preciso ação: contra as atrocidades cometidas no continente, contra a subalternidade, contra as relações e cooperações injustas; agir também contra os líderes políticos e governos corruptos africanos, vários deles são extensões dos braços da elite das grandes potências.
Agir a favor do povo africano.
A África já foi partilhada, apartada, só falta ela ser atada. Isso não pode acontecer.
Viva à África!