Por Rodrigo Arreyes, Por dentro da África
Kelper é o nome dado aos ingleses que colonizaram as ilhas Malvinas. Como
argentino-brasileiro, sempre ouvi estranhado o argumento da autodeterminação dos
colonos para que as ilhas ainda continuem sob domínio inglês, mesmo tão longe da
Inglaterra e significando tanto para o nosso povo latino-americano. Certo dia, na III
Cúpula América do Sul – África, 54 países africanos reconheceram a soberania
argentina das ilhas. Poxa! Como África sempre lutou pela autodeterminação, pensei:
que mundo é esse em que a autodeterminação dos colonos vale mais do que a
autodeterminação dos colonizados?
Senti isso na pele e escrevi este conto pensando que as Malvinas ficam entre a África e a América do Sul, geologicamente fantasiando, parecem pedaços de terra americana que se jogam para a África. Por isso, imaginando mais e mais, inventei uma História paralela, em que as ilhas foram habitadas por africanos no século XIX, o qual nunca ocorreu, por certo. As Malvinas aparecem aqui neste mundo como um território de tríplice fronteira: Europa, África e América. Diferente da realidade, e para evitar confusão, nesta introdução deve ficar em claro que kelper neste conto é o nome dado aos malvinenses afrodescendentes e não aos colonos ingleses como é de fato.
Um estrangeiro a menos
Não somos animais, somos argentinos! Foi o grito que a multidão levou às ruas o
dia 31 de agosto de 1901. Até mesmo Magdalena, a carinhosa bisavó de Jonas, se
rebelou com violência contra o Governo das ilhas. Ao lado da família, quase todos os
integrantes, vó Magdalena foi uma protagonista das barricadas que, como outras
mulheres, abandonou o trabalho no palácio dos patrões para estar nas ruas e gritar
contra as injustiças ou inclusive atirar pedras; este fato histórico permitia que Jonás,
embora kelper, não se sentisse nem um pouco estrangeiro nestas terras geladas
dominadas por europeus. Acaso ele devia sentir outra coisa? Era mais argentino do que
os netos dos ingleses, pelo voto patriótico e a valente rebelião dos seus antepassados,
mais argentino do que uma grande parte dos seus vizinhos netos ou filhos de italianos.
Contudo, para o malvinense branco, ele era um kelper, uma espécie de migrante.
Era frequente a humilhação do insulto racista se ele demorava uns segundos a mais
para atravessar a rua ou se caminhava perto de um branco estacionando o automóvel,
por exemplo. Numa tentativa de atropelamento, já tinha ouvido: “Tche, Macumbo, de
noite ninguém consegue te enxergar!”. Se ele não atravessava pela faixa de pedestres, se
ele ficava sem muito que fazer em uma esquina ou uma praça, ou se um soldado
confundia a sua cara com a de um vilão dos documentos da Gendarmaria, então ele
sentia a sua história negra na pele.
Kelpers
Com a bíblia e a chibata, no que hoje é Moçambique, caçavam, trancavam e
torturavam kelpers, que, longe de suas famílias, sujeitos às diversas formas de tormento,
famintos e doentes, viajavam de barco para uma ilha distante e apavorantemente fria. O
lugar gelado, mais de uma vez, era confundido com o inferno da catequese. Os kelpers
levados para as ilhas Malvinas foram escravizados por meio século, os seus pequenos
filhos foram vendidos, descalços, sobre madeiras congeladas, e cada família foi fatiada
pela faca estupradora do branco. Sem sossego, os sequestradores entraram em suas casas arrombando as portas, aterrorizando cidades inteiras para pegar um ou dois negros.
Tempo depois, terminado o horror da escravatura, alma de selvagem reconhecida
pelos sacerdotes brancos, os kelpers se desenvolviam agora como comunidade em
determinados bairros da ilha do sul, onde, cada vez que era eleito um novo Governador
branco, a Gendarmaria entrava com carros blindados, reprimindo em clubes de baile ou
esportivos, legal ou ilegalmente. Os kelpers viviam em um mundo de emergências, sem
trabalho, sem saúde e onde cada favor devia ser agradecido ao inimigo. Quando estas
invasões aconteciam, e apareciam em jornais e na TV, então as duas ilhas eram de outra
forma divididas em duas partes: uns a favor, outros em contra.
Yard Society
Jonás era um garoto de família de ladrões, pessoas doentes, fanáticos religiosos e
assassinos. Gerações filhas de um sequestro na África patrocinado pela sociedade
secreta eugênica instalada na ilha ainda nas últimas décadas do século XIX. Na época,
as sociedades, secretas ou não, pulavam a corda à vontade em diversos campos das
ciências modernas. Os membros de cada país eram pregadores da prestigiosa ciência
prática, escola que repudiava a superstição com normas microscópicas. Era uma nova
geração que sonhava uma glória ainda maior que a conseguida pelos pais da ciência
prática.
Entre os grandes, vários nomes apareciam na lista, produzindo uma grande
inveja na comunidade científica: Henry Cavendish, Charles Darwin, Joseph Priestley,
James Keir e muitos mais, todos focados em resultados reais e isolados da mentira.
O grupo que sequestrou os kelpers no sudeste de Moçambique teve o auspício de
uma prestigiosa sociedade científica inglesa.
O seu presidente, o galés Tomás Yard, havia se obcecado com a relação entre a temperatura e o comportamento humano. O que aconteceria se mudamos as raças dos seus climas originais para outros ambientes com diferenças extremas? Entre o meio e o indivíduo, onde estaria, como uma coroa, a mudança mais significativa? A Yard Society gastou milhões de libras para responder as suas perguntas, reinstalando africanos no Atlântico Sul. O experimento não cobriu outras ‘raças’, apenas africanos. Yard era um pioneiro da eugenia na Argentina, um país unificado fazia poucos anos atrás. Foi expulso da cidade de Buenos Aires pelo poder extraordinário da Igreja Católica, que vigiava a cultura da família.
Certo dia, viu que no mapa aparecia uma ilha pequena no pé da Argentina. Malvinas. Escolheu a ilha Soledad porque era a que estava do lado africano. Como ensinaram para Jonás no colégio, e como ele escreveu em uma prova de história, os kelpers eram considerados o pior do pior da África, um cultura gravemente selvagem, ou seja, matéria humana mais barata, por isso foram comprados por Yard.
Os caminhos do nativo
Primavera de flores e pássaros nas Ilhas Malvinas. A praia e o centro eram como
Miami para o nativo, que caminhava com a camiseta do Boca para a confeitaria ou o
cinema. Na rua se apreciava um espetáculo formado por árvores, a luz tombada nos
tetos de latão ou refletida nos tijolos brancos como nuvens, o vento solitário, constante,
os jardins na sua máxima cor e a calçada recém-inaugurada com detalhes em verde.
Ouviam-se abundantes aves nas árvores, de várias espécies patagônicas, porém com
tamanhos parecidos, como flocos em um sorvete de hortelã. Os pássaros recebiam
carinhos dos malvinenses como se fossem enviados por espíritos, com alimentos em
bandejas ou artefatos inventados para eles.
O caminho dos tetos
O caminho dos tetos era um segredo compartilhado por gatos, ratos e ladrões, que
aproveitavam as curtas distâncias de teto em teto entre as casas do mesmo quarteirão.
Parte da população das Malvinas havia se apilhado ao longo de cinco décadas nos
quatrocentos quarteirões da cidade: nas áreas pobres, cada casa era uma latinha onde se
apertavam entre duas ou doze pessoas, dependendo o número se a origem da família era
italiana ou negra, pois os ingleses moravam, em grande parte, nos chalés da cidade.
Vista do céu, o bairro Villa Libertad era uma impressão digital de casas apilhadas. Em
Villa Libertad era possível passar de uma rua para outra, andando com a precaução de
não incomodar os vizinhos. Os vizinhos em muitos casos eram caçadores ou
pescadores, estavam armados para a caça e muito mais armados para paranoias de
segurança, prontos para disparar contra gatos ou humanos. Evitavam, quase sempre, o
homicídio, mas asseguravam uma marca de aviso e castigo por pisar uma área proibida:
o teto da casa alheia. É por isso que, de vez em quando, corpos decompostos de gatos
nos telhados apareciam pelo cheiro, com dezenas de balas alojadas no corpo.
Xixi de gato
Um ou vários gatos urinavam o teto. Os pingos da urina se filtravam entre as telhas
e a madeira do teto, onde se escorriam através de um prisma de luz pendurado, uma
lembrança de Uritorco, formando um reflexo de arco-íris de xixi. Jonás estava no quintal com uma xícara de leite morno nas mãos quando viu o incrível brilho do azulejo. Foi em busca do balde com cândida, já preparado para os gatos. Um cheiro ácido tomava o cérebro das pessoas, como morcegos em uma caverna.
Jonás pensava nos motivos que o povo contava, sabendo que nenhum era verdadeiro:
que talvez os gatos comiam ratos doentes que o departamento de Bromatologia não
controlava em restaurantes do porto, que o problema era causado pela mudança
climática, ou bem que urinavam com tanto cheiro para neutralizar outra espécie animal,
quem sabe uma ave. Se um gato pertence a outra pessoa, não deveria esse cidadão ser
responsável por aquilo que o seu bicho faz na casa dos outros? E como seria um mundo
em que um vizinho limpasse a casa do outro? Entrar com um balde próprio ou usar o do
vizinho? Absurdo! Não podemos amarrar os gatos, como acontece com os cachorros?
Será que neste bairro já não existem Babalorixás que sacrifiquem gatos? Também
escutava a voz ronca do tio Mingo, que rezava de segunda a segunda na igreja e nunca
ficava bêbado nem usava o nome de Deus em vão: “Os gatos são do diabo, por isso são
usados para fazer macumbas!”.
Matías
Pulando o pequeno muro, Matías se apresentou no pequeno quintal da casa, o
primeiro dos vinte quintais dos duplex no quarteirão onde morava. O seu amigo
acabava de sair do chuveiro, e estava pronto para dar um discurso grandiloquente.
Matias era pequeno, mas tinha força de atleta, e conhecia o Jonás daquele acampamento
organizado pelo colégio, em que subiram uma árvore para se esconder das atividades
dos professores.
— Os bichos estão mijando a tua casa, quía?
— Que vontades de morrer, Mati! Tenho vontades de vomitar a todo momento.
Não sei o que fazer. Nem a janela posso abrir.
— Tem gente que está usando armas para se defender. Aparece um deles, y pá,
quía, gato frito.
—Eu não faço semelhantes atrocidades. Gatos não são pragas como os ratos. O que
eu quero dizer é que alguém do Governo tem que entrar em ação. Todas as manhãs eu
limpo as fezes destes animais que eu não amo, mas também não odeio.
— Lá em casa a gente usou tudo que era remédio caseiro para não gastar dinheiro.
Primeiro foi com métodos que pareciam inventados: pimenta do reino, agua com limão,
querosene. Aí eu procurei na internet, achei uma informação sobre o crescimento brutal
do número de gatos nesta parte da ilha, e que havia um especialista que recomendava
um remédio vendido em veterinárias, sabe? Os resultados falavam do “aniMiau” como a
única solução como repelente de gatos. Também achei uma marca de segunda categoria
que parece não funcionava bem.
Em um site, um usuário anónimo acusava a marca de envenenar os gatos, outros diziam que era a melhor forma de cuidar deles, outros não duvidavam em usar o remédio para outras coisas, como para limpar encanamento entupido com pelo. E aí eu comprei. “Cut-cat”, produto de segunda categoria fabricada em Córdoba, valia a metade que “AniMiau”.
— É muito caro o “AniMiau”?
— Pois é… Barato cada frasco, mas da para comprar uma moto em doze meses de
AniMiau. E aí você precisa manter a dose, senão os gatos voltam. E voltam mesmo!
— E com o Cut-cat o preço como fica?
— Fica bem… da para sobreviver. Primeiro você tem que limpar a área com urina
ou fezes… aí, misturar com água limpa…. depois sacode um pouquinho, e vai jogando o
remédio na área suja usando um rodinho e um pano. Não tem que ficar charcos de água
com o produto, tem que ficar só umedecido com a preparação. É fácil. Todos os dias o
mesmo procedimento.
— Eita preguiça que me da essa história! Que injustiça! Antes não era assim…
— Lembro sim. É verdade.
— Não existia essa de você acordar e achar a tua casa mijada. Passam os meses e
nós, os kelpers, estamos cada vez mais acostumados a viver mal, não sair no quintal e
limpar todo o dia, como se o trabalho do dia não fosse suficiente. É verdade, precisando
de tantas coisas para nós mesmos… Isso é o que pensam os que disparam: “Precisamos
sobreviver… racionalizar a vida ao máximo”.
— É isso mesmo!
—Sim, mas eu não faço semelhantes atrocidades. Gatos não são pragas. E não
nego, tenho vontades de mijar na almofada do dono de cada gato que faz as suas
coisinhas na minha casa. E cobrar cada litro de cândida que eu gastei para viver em
harmonia com os seus bichos de estimação, mas da estimação deles em particular.
Ninguém mais estava por perto do quintal, as janelas das casas vizinhas estavam
fechadas, o qual era ideal para contar um segredo em um bairro com tantos xeretas.
Matías disse para Jonás:
— Eu posso te afirmar que esses gatos são um fruto da superstição humana.
— Que doido!
— Tenho uma coisa para contar sobre os bichinhos. Foi uma situação horrível. Não
sei como foi que eu me meti naquela, mas é verdade, tudo. Eu sei por que os gatos estão
invadindo as casas e causando tantos estragos em nosso bairro, que mais que Villa
Libertad agora tem que chamar “Villa Xixi”.
— Pode largar tudo de uma vez! Não vou te interromper porque estou
completamente livre esta tarde. Talvez podemos pensar juntos o que fazer. Mutantes?
— Pior. Uma seita tipo Opus Dei. É uma história séria, mas quando eu contei por
primeira vez lá em casa, até a minha irmãzinha de cinco anos ria de mim, disse que eu estava doido como Papai Pig. O resto só acreditou na parte em que eu subia aos tetos
das casas alheias.
— Ha, ha! Quem sabe você não contou bem a história!
— Então, é a verdade mesmo. Não era o contexto. Os pais não gostam de ouvir as
aventuras dos filhos, o mesmo medo que nos gera emoção para eles equivale à brincar
com a morte ou brincar com a falta de vergonha e, por tanto, com o nome da família. Os
meus irmãos não têm ouvidos para histórias do primogênito. Lá em casa eu sou uma
voz mais com uma teoria sobre o mundo, um rival dos quatro irmãos e dois pais.
— Uma das patas do gato.
— Só um amigo para acreditar na gente, quía. Deixa eu te falar… pensando bem,
talvez eu não contei bem e por isso ninguém entendeu nada. Vou te contar tudo
certinho, assim eu aproveito para praticar como contar a minha denúncia na polícia sem
causar constrangimentos e sim esclarecimentos.
Jonás viu a camiseta com as letras ‘M.A’ de Matías Águila, pois ele já era um
reconhecido cantante do hip-hop típico de Malvinas e cantava em bares e praças desde
os quinze anos, administrando vários perfis nas redes sociais. Seu amigo certamente era
um militante cultural do black power malvinense e assim era visto por Jonás.
– Vamos tomar uns matecitos, seu Matias! Matias foi tomar o matecito. Pulou a
cerca do quintal, pisando as plantas do vizinho, e depois foi entrando na casa, pois o frio
dominava cada canto da existência. Por trás dos duplex, o sol malvinense seguia
descendo as ondas do oceano Atlântico.
A história do Matías
— Repeti oitava série duas vezes no Pio XX, as duas vezes por não passar em
Física e Química. Isso foi faz bastante tempo, mas naquela época mesmo começou o
problema da invasão dos gatos. Eu não era vagabundo, como dizia a minha professora
Laura, sempre quis me adaptar às regras. No verão estudava horas e horas para passar
de série, pois a minha mãe gastava uma fortuna em cursinhos das matérias
desaprovadas!
Ela chorava dizendo que eu ia ser um ignorante como ela, uma pessoa
sem profissão, e que sofreria humilhações na vida. Já passaram anos, mas ainda tenho
pesadelos em que estou fazendo estes cursinhos e desaprovando depois. Já naquela
época o número de gatos horrorizava aos turistas argentinos, eu lembro dessas
conversas com portenhos ou cordobeces. Então, estava já acabando com Geografia,
aquela parte das regiões da Argentina, as exportações e importações, da professora
Fernández, lembra? Sabia tudo de memória como ela pedia, aí eu decidi parar de
estudar. E você sabe, naquela época eu era muito mais chegado em gatinhos
abandonados do que hoje. Lembra do meu gato Igor?
– Lembro do querido Igor, que foi enterrado aqui em casa.
– Chorei muito… nunca mais tive um gato como ele, que gostava de ouvir minha
música e dormia enquanto eu cantava. Então, parei de estudar e pulei pela janela para
ver de perto um gato cor cinza brilhante que eu vi no teto da tua casa.
– E você nunca contou pra mim dessa história por quê?
– Você vai saber no final por que nunca te contei nada, eu fui humilhado. Tudo
começou com a pelagem cinza brilhante deste pequenino gato que estava miando no
teto da tua casa. Eu sei que os gatos são seres iluminados e, apaixonado, comecei a
perseguir o pequenino ponto cinza que, em vez de procurar a minha proteção, fugia
miando. Fui andando pelo teto de pessoas conhecidas ou desconhecidas, casas de
famílias ou de solteiras e solteiros, casas de idosos, casas abandonadas…
Do açougue passei para a Igreja, e passando a sede do Partido Comunista, já com quinze minutos de caminhada pela minhoca dos tetos, vi que a quantidade de gatos aumentava. Cada vez encontrava mais gatos se lambuzando ou simplesmente confabulando uma trama secreta dos tetos. Passando a igreja, e quase já mudando de bairro, com um espaço entre os tetos cada vez maior por causa do tipo de propriedade, que já não eram duplex e sim casas, o gato que eu perseguia me levou até uma mansão no final de um corredor estreito, no centro do quarteirão formado pelas ruas Mozart, Panamá, Honduras e Tomás Salk.
Vi centenas de gatos, de todas as cores e tamanhos, e umas dez camionetes de luxo estacionadas a cem metros. E aí foi que eu senti medo. Pelo corredor estreito que levava à mansão, eu vi pessoas vestidas de branco e mascaradas. Calças brancas, camisas brancas, luvas brancas e sapatos brancos, além de umas espantosas máscaras brancas, como as
máscaras da comédia e tragédia, sabe?, mas máscaras sem expressão, apenas uma tela
que cobria o cabelo e resto da cabeça e se enfiava na máscara.
Senti medo, mas também gostei de ver. Minha suspeita era que essa gente tinha muita grana e que eram artistas ou políticos, mas se escondiam com uma máscara para não serem fotografados em redes sociais ou algo semelhante. O que eles estavam fazendo não estava certo. Essa era uma verdadeira seita, o segredo que explicava a origem de tanta acumulação de gatos, pensei: “Nessa mansão tem mais gatos que tijolos!”
—Tá certo. Mesmo assim, nem todas as seitas são de ricos, quía, tem seita de rico,
de pobre, seita de classe média e seitas de ricos que procuram pobres e pobres que
procuram ricos. Mas nunca ouvi falar de uma seita das máscaras brancas e esse negócio
dos gatos. E, vamos dizer a verdade, por que uma seita agora vai se dedicar a cuidar dos
gatos? Hoje em dia na ilha apenas existem oito centros de umbanda, mas em nenhum
fazem sacrifícios de animais, e não existe ninguém interessado em matar gatos, com
exceção dos cachorros.
— Tudo de branco. As mãos, os pés, o cabelo. Não dava para enxergar um
centímetro de pele. Não sei se eram ricos, as camionetas, que estavam perto, pareciam
de ricos, sabe. Me deu um ataque de curiosidade, mas não esqueci do gato, que entrou
por uma janela onde tinha outros gatos. Aqui quando eu contei essa parte em casa meu
pai pensou que eu queria roubar a casa. Não, meu plano era seguir esse gato para saber
se nesta seita realmente ocorriam crimes de maus-tratos aos animais. E se eu conseguia
subir ao teto dessa casa pela janela, o a janela do outro lado da casa, o lado mais
escondido, então já podia correr para a polícia. Pulei e caminhei em silêncio até um
lugar que parecia um banheiro…
— Um banheiro?
— Só um amigo para acreditar na gente… era um lugar tão bonito! Dava para ver
que o prédio foi criado para fazer reuniões secretas, era bem antigo e cor de rosa, como
a Casa Rosada, mas com apenas um andar e luzes discretas. Imagina só, um palácio
invisível no meio do quarteirão, feito só para que as pessoas interatuem com gatos? Por
que não abriam as portas ao público geral? Por isso nem tinha segurança no prédio, era
um lugar invisível ao cidadão ordinário que passava do lado da rua. Sem passar pelo
corredor, como chegar ao estômago do quarteirão? Mais de uma vez tive que improvisar
pontes para chegar até lá, arrancando pedaços de madeira dos tetos, ou pulando
distâncias mortais, não foi tarefa simples.
A verdade é que eu era muito tonto naquela época e estava deprimido por causa do colégio, da minha mãe, e não dava valor a minha vida. Talvez a falta de amor a mim mesmo me ajudou a pular de teto em teto sem reparar no fato de cair e arrebentar como um iogurte no chão. Se esta é a minha cidade e eu conheço cada canto, se os gatos tinham direito à vida, se eu precisava fazer algo grandioso com a minha vida, ser um motivo de orgulho… sabe? Pensava em coisas assim.
O corredor em si era uma obra de arte, com árvores de diferentes espécies, além de três mosaicos com figuras metade animal e metade humana: cavalos com corpo de
gente, cachorros com corpo de gente e pássaros com corpo de gente… os três mosaicos
em cenários naturais.
A crueldade é revelada
— Será que este lugar é uma espécie de laboratório de clonagem de gatos? E será
que tem outros lugares assim nestas ilhas?
— Não! Não sei se fabricam gatos, mas sim que eles matam gatos! Em um quarto…
o primeiro de todos… um dos membros cuidava um mar de gatinhos de diversas idades
e espécies. Sabe essas casas com muitos gatos? Imagina agora como seria um quarto
com pelo menos cem gatos. Este era o banheiro… o banheiro não era banheiro, na
verdade era uma câmara de extermínio. Sim, Jonás! Tantos gatos só podiam ter sido
fabricados em outro quarto, uma espécie de laboratório de clonagem, mas eu não vi
nada disso não. Só vi a câmara da morte. E vi gatos convivendo tranquilos em prisão,
esperando a morte. No meio do quarto, ração para gato e água. E, claro, um cheiro
insuportável de fezes e urina que era expulso através de potentes ventiladores de teto.
Comecei a escutar o que o cuidador dos gatos dizia, fazia piadas que eu não entendia
nada. Finalmente ele rezou um pai nosso em inglês para dar graças a Deus pela comida.
— Era um Centro de Espiritismo, o Opus Dei ou a seita de Tomás Yard? Qual das
três?
— Não tenho como saber, nunca mais vou voltar! Caminhei uns metros mais me
escondendo nas plantas perto da piscina. Poucas luzes me ajudavam a me esconder. O
jardim da casa era profundo e escuro, pelo que nem precisava olhar para trás para ver se
tinha alguém. Se aparecer alguém, pensava, pulo a parede através daquela árvore e fujo
correndo seguindo o caminho de entrada. Ninguém vai me ver, aqui não tem luz. Assim
pensado, e medindo a velocidade e a distancia passo a passo, fiquei tranquilo. Conforme
avançava, sentia que descia no inferno… Agora é que você não vai acreditar na minha
história…
— Vou acreditar sim, amigo!
— Você pode respeitar a minha palavra?
— Completamente.
— Então, comecei a sentir um cheiro a carne queimada muito enjoativo, misturado
com o cheiro do pelo queimado, pelo que entendi que este membro da seita era quem
alimentava o fogão com os gatos. A comida com sedantes imobilizava os gatos. Isso foi
o último que pensei, porque o que eu fiz depois foi não pensar. Com um espírito
entrando em mim como um raio, pensei em empurrar o velho no fogão. E me senti um
doido: por que não dar um susto nele e sair correndo? Comecei a rir drogado pela
possibilidade… e não pensei, como se eu fosse outra pessoa, me empurrei. Abri a porta
com um chute para salvar os gatos do fogo, gritando: ‘Esse é meu gatoooooooooooo,
assassinooooooo!’
— Nessa parte a tua família deve ter te humilhado com comentários…
— Peguei fogo com a minha raiva, e sem pensar nada, corri e chutei outra porta. E
que susto que fabriquei do nada! O maluco da seita disse: “Pega ladrão, pega ladrão!” E
os gatos, quase mortos, também levaram um susto, e miaram com o cuidador como um
sistema de alarmes em uma base militar. Do outro lado do quarto, uma terceira porta se
abriu violentamente e apareceu um grupo de cinco mascarados, que correram na minha
direção e me imobilizaram.
A piada da matéria gelatinosa
Matías baixou os olhos e o seu pensamento subiu a um mundo atemporal. Jonás, na
sequencia do companheiro, habitava a baleia que formava a história do amigo: ele
acreditava, não acreditava, mas nessa hora com o frio tudo era a mesma coisa. O vento
mexia cada folha das árvores e as flores das esquina do bairro Villa Libertad. Era quase
de noite e os aviões voavam com suas luzes em direção ao continente.
— Eu desmaiei ou fui drogado, mas logo acordei em uma camionete sentindo uma
matéria gelatinosa nas bochechas, o nariz, a orelha, pescoço e braços… Uma, duas, três,
quatro e cinco vezes, ao mesmo tempo, sentia uma umidade nojenta e fria se mexendo
em meu corpo enquanto o carro avançava no meio do nada. Alguns dos meus captores
respiravam lento e outros rápido, mas nada falavam.
O primeiro que eu senti foi o motor da camionete vibrando, um carro daqueles, pensei, depois senti a matéria gelatinosa, depois as respirações. Duas pessoas apertavam meus braços, que estavam amarrados, igual que minhas pernas. Eu sentia dores em todo o corpo, inclusive dores de golpes na cabeça. E as dores aumentaram e se misturaram com a matéria fria que estava sentindo.
Comecei a chorar de dor e medo. Então eles começaram a dar risadas, enquanto
passavam uma, duas, três… matérias gelatinosas, agora todas na minha cara. Um deles
gritava: ‘passa na orelhinha’, e o outro respondia, comicamente: ‘vou passar na boquinha do negro’;. E o que dirigia dizia: ‘Boludos, vocês estão gravando? Tem que gravar, tem que gravar!’. De repente, o carro parou, fui liberado e, já não chão da rua, percebi que os bolsos da minha calça estavam cheios de tomates, que eu estava manchado com o meu sangue, mas também com tomates, a matéria gelatinosa que tanto desespero havia me causado instantes atrás. Eles me soltaram aqui pertinho de casa, porque viram o meu endereço na caderneta de estudante. Lembro do último que ouvi deles aquela noite: “Cuida da tuas coisas, Matias, se eu te vejo de novo, eu mato você e a tua família!”. O carro foi embora a toda velocidade.
Uma hora depois, no caminho da padaria, minha mãe me achou jogado na rua. Ela
sentiu muita dó de mim, mas não demorou em associar a situação com o fato de que eu
não gostava de estudar, dizendo que essa de “ficar jogado na rua” era coisa de
“chapado”, e que ela não ia descansar até ver o filho “feito um homem de verdade”.