Magnusson Da Costa, Por dentro da África
Cedo se fez homem. O sol de Bissau cedo caiu sobre sua cabeça, nas costas de mamã protegido de “bambaram” (pano usado para amarrar a criança nas costas). Soube desde bebê que precisava ser blindado para encarar o mundo. Com olhar curioso nas costas da mãe, decorava os caminhos que ia passando até chegar à feira, que, muitas vezes, não eram iguais. Percebia, nos olhares da multidão, que à volta dele se embaraçava que teria um futuro difícil e agitado.
Com três meses de idade já sabia que não era um bebê que teria uma vida igual a de muitos. Às cinco de manhã começava seu dia. Antes de sair de casa, a mãe lhe dava banho matinal e o amamentava. Logo, ele ia para as costas, onde só sairia no meio da feira, depois do sol de meio-dia, assim que o movimento fracassasse o que não tinha horário certo.
O pequeno curioso sempre sentiu a vontade de ver a cara do pai durante o dia, e dele receber alguns mimos e carinhos, o que era pouco provável, porque só voltava para a casa depois das cinco da tarde, e olhava nos olhos da mãe só uma hora durante o dia, no momento da segunda dose de amamentação. Ele podia perceber o sofrimento e a vontade de superação dela, e um olhar que dizia:
– Meu filho não será igual a mim.
Sobre ele, caía o suor da testa dela que parecia uma vela derretendo quente e lentamente. São poucas as lições que o Miro aprendeu da vida que lhe foram ensinadas. Ele aprendeu quase tudo sozinho e nos olhares da multidão da feira de Bandim. Debaixo do sol da África com sombra da bandeja de cuscuz, preso nas costas com bambaram de pano legós, ali crescia um lutador.
Se for verdade que “Deus ajuda quem cedo madruga”, o pequeno Miro não conhece outra vida. Uma das coisas que tanto inquietava o pequeno curioso eram os carros que passavam na Avenida dos Combatentes de Liberdade da Pátria, aqueles tipo Jeep, hummer, Q7, X5, Ford e tantos outros que quebravam as molas nos buracos da estrada de Bandim, admirava a correria das crianças que vendiam guardanapos, água, ambientadores para os patrões, taxistas e condutores de toca-toca.
Diante de toda correria, tristezas e alegrias, Miro amadurecia. Escutava da boca de estudantes que ali passava assuntos de biologia, química, educação social, matemática e política. Foi assim que soube que os carros que admirava, tinham algumas formas para obtê-los.
Mas tinha perguntas que tanto o incomodavam, por exemplo: por que de tantos carros de luxo para uma estrada pequena e cheio de lombas? Por que é que minha mãe caminha quilômetros e quilômetros para chegar à feira comigo nas costas? Estas perguntas que tanto faziam parte do seu mundo, infelizmente não tinham respostas, pois não tinha ainda a fala para fazer tais perguntas, mas jurava que estas seriam as primeiras coisas a perguntar assim que aprendesse a manusear a língua.
Um dia, Miro ouviu dois jovens a falar de política, percebeu que um falou que os culpados de tudo o que estão a viver são os políticos, e que nunca souberam fazer o uso correto dos bens públicos, fizeram do Estado seus quintais privados. Aquilo pode não ser uma resposta para suas perguntas, mas considerou isso um meio caminho andado.
O garoto ouviu muitos a jurarem no passeio de Bandim que um dia seriam felizes. Alguns culpavam a falta de sorte por estarem naquela situação levando aquela vida. Ele ouviu muito sua mamãe a dizer kossena para mulheres dos patrões que ali faziam compras. Ouviu também muitas elas serem chamadas de “senhoras”, adjetivo que sua mamãe nunca foi atribuída. Sempre ouviu ela a ser chamada de cuscuz (produto que ela vendia), o que o fez acreditar que era o nome da sua mãe.
No passeio de Bandim, o pequeno Miro aprendeu como as pessoas são diferentes e compreendeu o real valor do dinheiro. Quanto mais dinheiro tem, mais idolatrado você é, ou seja, uma pessoa será, pois sua mãe era vista só como mercadoria, ela não tinha um nome como um ser humano, ou seja, não tinha um valor na sociedade, o que importava para as pessoas era o que ela vendia. Era mais fácil saber das pessoas que compravam do que as que vendiam. Afinal as que compravam tinham o que as que vendiam chamavam de sorte.
As bideras não almoçam em suas casas, muitas são mulheres e homens de casas, literalmente moram na feira e dormem em casa. Neste mundo de desencontros e encontros de “sorteados” e “amaldiçoados”, nas costas de uma bidera ambulante estava o pequeno Miro. Um menino de olhos castanhos e atentos que sabia desde cedo que iria precisar de muita força e coragem para encarar este mundo injusto.
Virtudes que os filhos dos patrões que ficavam dentro de grandes carros esperando os pais fazerem suas compras não precisavam ter, afinal, são os filhos dos “sorteados”. Ele, então, percebeu que não terá uma infância comum, e que logo terá que saber cuidar de si.
Magnusson Da Costa-estudante guineense de UNILAB-CAMPUS DOS MALÊS.