Por N´deyonghunfã Ká, Por dentro da África
Bissau – Mesmo ao colo, já me tornei numa moeda de troca. Por mim, o futuro marido investe na família para garantir o meu casamento. Eu cresci e recebi o carinho dos meus pais, mas nunca me entendi o acordo arrumado entre eles com o meu futuro esposo.
Aos doze anos eu nem queria que os meus seios, nádegas e o corpo inteiro se transformassem em mulher. Muitas meninas da minha idade já foram dadas ao casamento forçosamente, porque os pais lhes qualificavam pelas mudanças biológicas que viam nelas.
Os meus pais viviam a custa do famoso comerciante da nossa tabanca. Desde os primeiros dias que eu nasci, a aliança já tinha afirmada entre duas famílias. Eu cresci sem saber que sou a ponte que liga as duas famílias.
Agora percebi porque Malam me chamou de mãe a caminho de bolanha (pântano para o cultivo de arroz). Malam é o sexto filho de Mamadú e primogênito de Mariama. Três anos maior que eu. Filho da terceira mulher do famoso comerciante. Um amigo de bicia (cuidar de arroz) na bolanha.
Aos treze anos, o meu corpo me transformou de criança para adolescente. Uma vez, minha mãe me chamou e disse: ‘filha, seu pai um dia vai falar consigo’. Não diga não ao seu pai, porque se eu dissesse não aos meus pais, nunca teria tido você. Minha mãe não me deixou clara. Pensei que o meu pai ia falar comigo sobre os exames que se avizinham. Mas não.
Conheço Pansau no caminho de escola. Ele me ofereceu mandioca fervida, um pequeno almoço que me salvou de dormir na prova de história. Logo comecei a pensar muito nas conversas da minha tia que vivia em Bissau. Ela sempre falava: bu omi i na kampo di formason (seu marido é na faculdade). As falas da minha tia ficaram incutidas na minha cabeça. Já pensei em terminar o liceu e tirar um curso de medicina. Logo escolherei um marido com quem terminaremos juntos.
Os meus sonhos tinham mais idade que eu. Eu nunca parei de pensar no que seria amanhã. Jovens da minha tabanca já murmuram minha beleza. Na bancada os meninos sempre me falavam: bu na lanta diritu dé (está a se crescer bem). Elogios às vezes me fazem perder o jeito de andar. Passar em frente de um grupo de rapaziadas implica adotar novo passo.
Certa vez, meu pai me chamou e disse: ‘Binin, vai pegar uma folha de tabaco na loja de Mamadú’. Perguntei de dinheiro ele me respondeu: ‘Vai e diga para ele que seu pai mandou pegar. Ele sabe do que estou a falar’.
Fazia tempo que Mamadú não me via. Surpreendente ele me viu chegar na loja dele. Depois de tudo, ele me perguntou: ‘Binin, seu pai não te disse nada? E respondi não tio Mamadú’.
Minha curiosidade, às vezes, me levava a querer questionar alguma coisa. Mas preferi ficar em silêncio, para não me faltar a verdade. Nossos professores e as igrejas sabem que as meninas da minha tabanca passam esses problemas, mas poucos trabalharam para banir isso. Uma vez, meu pastor falou que nós devemos estudar e nossos pais devem nos orientar, porque a formação é o alicerce de cada indivíduo. Encarei todos esses ensinamentos porque quero ser uma referência na minha família.
Existe um canal onde passam todas as informações das nossas tabancas e das tabancas vizinhas. Habitualmente, todas as donas de casas, meninos e meninas encontram-se na fonte de lagoa a partir de quatro horas. Todos os segredos eram desvendados nessa fonte. Foi ali que eu ouvi que uma menina da tabanca vizinha havia recusado a se casar e foi espancada pelos pais até o ponto de ser socorrida pela igreja evangélica.
Depois dessa notícia comecei a sentir um pesadelo em mim. Parece-me que o meu corpo aumentou mais de dez quilos. Comecei a questionar que tipo de pais dão o casamento forçado para suas filhas? Como é que essas meninas vão assumir a gestão de uma casa aos doze anos? Em que tipo de sociedades elas vão se inserir?
Essas questões engolem o meu corpo. Às vezes, me coloco no lugar dessas meninas para entender como é doloroso passar por essa dura realidade. Essa realidade me prende todos os dias da minha vida. Chegam momentos em que eu queria até colocar essa questão durante as aulas para poder merecer um tratamento dentro da sala.
Uma vez saí da igreja sete horas da noite e cheguei em casa quase nove horas. Meu pai me chamou e me disse: ‘Filha você já começa a meter com esses meninos irresponsáveis que andam a engravidar meninas sem nenhum tostão? Você já tem namorado nessa idade? Ele tem algo para te dar? Ele pode fazer um trabalho para nos sustentar?’
Minha mãe não me defendeu naquela hora. Fiquei sem respostas ao meu pai. Última palavra que ele me falou na nossa língua é o provérbio que diz assim: ‘melhor aproveitar do tomate antes que o bicho o estrague’. Nunca pensei que seria um tomate que serviria de troca entre duas famílias.
Três dias depois, minha mãe me disse, a caminho de fonte, que ela me defendia há muito tempo, mas meu pai ainda continuava a insistir. Eu perguntei sobre o que ele estava insistindo? Ela me disse: ‘seu pai está com medo de você engravidar antes de casamento.’
Eu falei para ela: mãe, eu nunca vou me engravidar. Além das conversas que a titia sempre fala de ter um homem depois da formação, sinto-me também responsável em ter um homem na igreja e que seja uma pessoa formada. Ela me disse: ‘filha, os sonhos às vezes estão certos, mas as decisões não cabem a quem sonha. O mundo dá muitas voltas, às vezes, é necessário sacrificar algo para obter o outro.’ Queria prolongar a conversa com minha mãe, mas já estávamos perto de casa. Somos obrigados abortar o diálogo.
Sobre Pansau
Um menino que empenhava muito na escola e também na igreja. Ele tinha o dom de liderar as pessoas. Ele assumia de organizar muitas atividades na escola e na igreja. Eu nunca me apaixonei por ele, mas sabia que ele poderia ser um homem com perfil que a minha tia sempre falava.
Ele queria ser professor e eu queria ser enfermeira. Uma vez ele me falou que pretendia dar aula aos adultos para que eles pudessem saber ler e escrever. Eu também falei que queria ajudar as mães que sofrem nos hospitais sem nenhuma enfermeira. Até desenhamos alguns planos juntos.
Pansau se preocupava tanto comigo… Quando chegava tarde na escola ele me perguntava sempre os motivos. Às vezes, ele deixa a bolanha dele para me ajudar na nossa. Nunca atirou em mim, mas faz gestos que me faz perceber que ele precisava de mim por toda vida. Num dia desses, sai da igreja à tarde, vi meus tios em casa. Fazia tempo que não os via. Eles só apareciam em casa se houvesse um problema na família. Sempre a ida deles justifica algum motivo.
Logo que subi na varanda, um tio disse na nossa língua que ‘quando cacho de banana já está pronto, se não o cortar, um ladrão pode o cortar.’ Irmão mais novo da minha mãe que trabalha com os padres perguntou se eu estava a estudar. Minha mãe disse que sim. Ela comentou que nada impede continuar estudando. Esse meu tio queria rejeitar proposta, mas ele viu que os meus pais estavam em sintonia.
Essa reunião me faz perceber que vou cair na mesma cena que das meninas que eu acompanhava de longe. Entrei no quarto e chorei por duas horas. Na nossa tradição, nossos tios são nossos defensores. Acontece que eles também já estão de acordo de eu ser entregue há um homem de cinquenta e dois anos.
Perdi confiança neles. Não tenho a quem pedir ajuda. Foi naquele dia que o meu pai ficou mais embriagado na sua vida. Eles já receberam a primeira parte de coisas que o cunhado vai pagar. Minha mãe recebeu camisas e alguns utensílios da utilização doméstica. Ficou acordado que o Mamadú ia trazer últimas coisas e me levar de vez para sempre.
No dia seguinte, fui para a igreja. No fim de culto pedi para falar com meu pastor. Acontece que ele não teve tempo. A igreja recebeu visita de missionários e o pastor estava ocupado. Chorei durante o caminho porque voltaria para igreja só no próximo sábado. Fico-me a pensar no que vai acontecer ao longo da semana. Já estamos de férias, se for durante as aulas podia aproveitar para ir à casa de pastor.
Durante a semana parece-me que estava no meio de oceano. Perdi apetite. Meu corpo começou a emagrecer-se. Pensei em mil planos. Cheguei à conclusão de que a única solução era ir direto para pedir socorro na casa do pastor. No dia seguinte fugi para casa do pastor. Expliquei tudo o que aconteceu. E ele me pegou de volta para casa. Lá em casa, meus pais recusaram que nunca pensavam em me dar casamento. Diziam que tudo que eles receberam foram as coisas da minha prima que casou na outra tabanca.
Minha mãe disse ao pastor que a ideia dela era para eu ser primeira pessoa da família com formação superior. Meu pai não comentou nada. Uma amiga da minha mãe disse ao pastor que as crianças de hoje mentem muito. Elas inventam coisas sem saber de onde elas vêm e de onde vão. Ela atribuiu culpa aos professores, porque eles ensinam obedecer aos brancos e desobedecer aos pais.
Tudo que eles diziam me colocava no lugar de mentirosa. Midana, meu irmão mais velho queria comentar alguma coisa, mas ele era impedido pelo meu pai. Ele sabia muito cedo dos planos. Desapontado com o procedimento dos nossos pais, Midana sempre chorava ao lado de mim. Ele sempre justificava a falta de força para me defender. Chegou até jurar fugir comigo para que eu pudesse escapar dessa armadilha.
No fim da reunião, o pastor saiu de casa com mente de que eu mentia para meus pais. Mas deixou aviso aos meus pais que se eles fizessem algo comigo ele iria se queixar no Comitê da tabanca. Foi ali que o meu pai respondeu que ele vai saber se as tradições são para serem conservadas ou para serem banidas pelo Estado.
Logo na madrugada do dia seguinte, meu pai me acordou e mandou me escutar tudo o que ele tinha para me dizer antes de bater em mim. Ainda lembro-me quando ele falava assim: ‘filha, você pensa que quando se fala que uma princesa casou-se com um príncipe tudo era da vontade do casal? Quando se fala do casamento entre filhos dos ricos você pensa que foram os filhos que arrumaram tudo isso?’
Ele continua dizendo: ‘filha, você deve entender que os europeus que vocês estão a copiar faziam tudo isso forçosamente. Depois, na festa eles apresentam dentes fora. Mas dantes os filhos nem queriam. Esses homens faziam de tudo para conservar a família. Nenhum homem rico deixa a filha dele para se casar com um simples caçador. Existem acontecimentos onde os pais violam os filhos, os irmãos contra irmãs. Nossas tradições que são consideradas ruins e precárias, delas servem de copias.’
Depois de tudo isso, ele bateu em mim. Deixou o meu corpo tudo esfolhado. Arrancou meu cabelo. Quando ele bateu com pau na minha cabeça, desmaiei quase duas horas. Minha mãe morria de chorar, mas nunca nem se quer dizia uma palavra. No dia seguinte, ele me falou: ‘você vai se casar com Mamadú, antes que seja usada por esses bandidos que andam a dançar aqui.’
Foi exatamente nesse preciso momento que começou a cair em mim respostas de questões que remontavam há muitos anos. Além de dar respostas a mim mesmo, comecei a formular questões futuras. Sei que a decisão não vai mudar. Era preciso me preparar para enfrentar consequências. Sei que já não vou poder estudar. Além disso, eu sou cristã e vou me casar com um homem muçulmano. Na tradição muçulmana, sou obrigada a se converter ao islamismo. O que me deixa mais triste é que vou ter que ser excisada para poder encaixar nessa nova sociedade.
Na noite de sexta-feira, meu pai me disse: Binin, amanhã vai ser seu casamento com Mamadú. Depois de ele ter me falado isso, fugi. Fui dormir em cima da mangueira que estava ao lado da casa.
N´DEYONGHUNFÃ KÁ é estudante de Curso de Bacharelado em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro/Brasileira-Unilab. Campus de Malês, São Francisco do Conde, BA.