Por Miriane Peregrino, Por dentro da África
“Na época colonial nós eramos obrigados a falar a língua portuguesa e havia a discriminação por via da língua também. Portanto, o estatuto social do angolano também se media sobre a forma e o modo como esse angolano se expressava na língua portuguesa. As autoridades coloniais proibiam o uso das nossas línguas. Com a independência há o inverso.”- relatou o presidente da Academia Angolana de Letras, Boaventura Cardoso.
As questões que envolvem o estudo, ensino e incentivo das línguas nacionais e a relação das mesmas com a língua portuguesa fazem parte do plano de ação da Academia Angolana de Letras (AAL) que completou seu primeiro aniversário este ano.
Assim como no Brasil e outras ex-colônias portuguesas, o português falado em Angola tem marcas próprias: “Há linguístas que consideram que há erros que já não devem ser considerados como erros mas sim como marcas da nossa angolanidade linguística e literária” – afirmou o presidente da AAL, Boaventura Cardoso – “A língua portuguesa coexiste com as línguas nacionais. Há empréstimos quer da língua portuguesa quer das línguas nacionais. Temos escritores que acabam por contribuir para a afirmação dessa variante angolana na língua portuguesa. E nisso o nosso grande mestre é Luandino Vieira que é, pra mim, o nosso João Guimaraes Rosa.”
De acordo com o acadêmico, Boaventura Cardoso, a língua portuguesa é a “língua da unidade nacional” pois “cerca de 70% do povo angolano fala ou entende português”. O que não exclui a necessidade de políticas públicas para incentivo do estudo e ensino das línguas nacionais.
“É preciso desenvolver, promover, estudar as línguas nacionais porque há muitas situações de bilinguismo no nosso seio. Não propriamente em Luanda, mas no interior há.” – afirmou Boaventura Cardoso.
Crítica ao conceito de lusofonia, a acadêmica Irene Guerra Marques também defende o incentivo às línguas nacionais: “Eu não gosto da palavra lusofonia. Eu não gosto. Por que lusofonia? Só por falarmos português? A língua portuguesa na sua terra, na minha terra não está à serviço de Portugal. Ela já não reflete a cultura portuguesa” – afirmou a acadêmica Irene Guerra Marques à jornalista brasileira.
O país, de maioria bantu, conta com dezenas de línguas nacionais dentre as quais destacamos o kikongo, kimbundu, cokwe e umbundu. A atual ministra da Cultura, Carolina Cerqueira, na entrega do Prêmio Literário António Jacinto realizado no ínicio de dezembro, anunciou que o ministério lançará em 2018 um prêmio literário para textos produzidos nas línguas nacionais.
“Os jovens escritores tem muita dificuldade em conseguir uma edição.” – afirmou em entrevista o presidente da AAL, Boaventura Cardoso – “Nos primeiros anos da independência a União dos Escritores Angolanos fazia edições. O livro circulava bem e também havia muita importação de livros. Nessa altura as pessoas liam muito, hoje nem tanto”.
Boaventura Cardoso lembrou que livrarias importantes se transformaram em outros negócios (lavanderia, supermercado) ou fecharam, como no caso da Lello cujo edificio podemos ver abandonado na Baixa de Luanda. A crise do mercado editorial angolano é agravada pela falta de incentivo governamental na promoção e difusão do livro.
“Hoje, com a situação econômica e financeira, as dificuldades aumentaram. Mesmo aqui, em Luanda, os livros circulam muito mal. Nem sei se o livro chega a todas as capitais de províncias [em Angola]. É um problema muito complicado” – observou Boaventura Cardoso.
No plano internacional, o escritor afirmou que a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) poderia atuar mais na promoção e circulação dos produtos culturais: “A nossa comunidade, a CPLP, faz muito pouco pela circulação do livro, disco e cinema no espaço de língua portuguesa. No meu tempo, eu lia com muita frequência escritores brasileiros e portugueses. Jorge Amado era muito conhecido. Mas hoje já não.”
Embora a AAL, ao contrário da maioria das academias, nasça no século XXI e tenha desde a fundação mulheres escritoras em seu quadro, um outro desafio que se coloca é a ampliação da participação de escritoras na AAL uma vez que dos 40 membros apenas três são mulheres – Maria Eugénia Neto, Irene Guerra Marques e Fátima Viegas, recentemente eleita.
“Antigamente não havia mulher em muitos cargos. Hoje há muitas ministras, diretoras e é assim que tem que ser” – afirmou em entrevista a acadêmica Irene Guerra Marques – “Não é muita ainda, mas está acontecer. Principalmente agora com o movimento de jovens”.
Se enquanto escritoras acadêmicas o número de mulheres ainda é pequeno, o número como membros correspondentes promete ser maior. Segundo o presidente, Boaventura Cardoso, do Brasil, já foram confirmadas como membros correspondentes as professoras Carmen Tindó, Laura Padilha, Maria Nazaré Fonseca, Rita Chaves, Tânia Macedo entre outras que se destacam nos estudos da literatura angolana. Para o próximo ano, a AAL deve realizar cerimônias de posse no Rio de Janeiro e Lisboa nesta categoria: “Provavelmente, serão uns 20 membros correspondentes entre brasileiros, portugueses e alguns africanos” – informou o presidente Boaventura Cardoso.
A academia, cujo patrono é o poeta e ex-presidente, Agostinho Neto, elaborou um plano de ação 2016-2020 onde se destacam projetos ligados aos Estudos sobre a Variedade Angolana do Português, a História da Literatura Angolana e os Vocabulários Temáticos e Terminologia das Línguas Nacionais. Palestras e conferências em colaboração com escolas do ensino secundário e universidades além de um Colóquio Internacional sobre o Ensino da Literatura Angolana e a Formação do Cânone Literário em Angola, também devem ser promovidas até 2020.
A expectativa para o próximo ano é que seja cumprido o plano de ação para o quadriênio: “O que será muito, pois esse Plano é muito ambicioso. Certamente algumas das ações terão de ser repartidas por mais mandatos” – avaliou o acadêmico Pepetela – “Este primeiro ano foi só o de instalação da AAL e organização do Conselho de Administração. Não podia ser mais, dadas as grandes carências que o país enfrenta neste momento.”
A representação e preservação das tradições angolanas também é uma preocupação dos acadêmicos. Autor de “Olhar de lua cheia”, prêmio literário António Jacinto 2006, o recém empossado Albino Carlos afirmou que tem preocupação especial com a tradição e identidades angolanas no contexto da globalização:
“Há uma globalizante muito asfixiante. Países como Angola, da periferia, tem dificuldades de se afirmar. E a cultura é uma das formas de nós pelo menos contrabalançarmos e de nos afirmamos como nós mesmos. Somos um país muito particular e muito orgulhoso das suas tradições e cultura. Um país como nosso, um país jovem, deve assentar seu desenvolvimento em duas questões: na área da educação e da cultura.” – disse o empossado Albino Carlos.
Cada academia tem o seu percurso e Boaventura Cardoso lembra que a AAL teve como ponto de partida para redação de seu estatuto o estatuto da Academia Brasileira de Letras. Além de Angola, Cabo Verde também criou sua academia literária em 2013. A AAL encontra-se provisoriamente instalada em espaço cedido pela União dos Escritores Angolanos
*Miriane da Costa Peregrino realiza estágio doutoral na Universidade Agostinho Neto, em Angola, e é doutoranda da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no Brasil.