Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
Em 1442, no esforço da guerra contra os mouros e dispondo dos progressos obtidos pela Escola de Sagres, os portugueses alcançam a costa africana; dois anos depois, desembarcam na foz do Rio Senegal, dando início ao que se convencionou chamar de escravidão moderna1.
A partir de então, penetram no Golfo da Guiné, e encontram civilizações desenvolvidas, onde a agricultura, o artesanato em bronze e madeira, a indústria do vidro, marfim, cobre, tecidos, etc., eram práticas, no mínimo, comparáveis qualitativamente às existentes na Europa da época2.
Ali, algumas cidades contavam com mais de vinte mil habitantes; entre eles, oleiros, artesãos, marceneiros, etc.; no campo, o plantio, cultivo e armazenamento de inhame e de outros alimentos, encontravam-se bem desenvolvidos. Também assim no Golfo Guiné, onde floresceram civilizações que serão, neste breve artigo, sucintamente abordadas.
Civilização iorubá
Segundo o mito, a civilização iorubá, localizada, atual e especialmente, no sudoeste da atual Nigéria, com ramificações em Togo, Benim e países limítrofes, tem origem no rei Odudwa, que desceu dos céus sobre o mar, tendo, nas mãos, uma cabaça cheia de areia e uma galinha; despejou a areia sobre o mar, posando, nela, a galinha que, ciscando, deu origem à terra habitada. Os iorubás seriam descendentes diretos de Odudwa, primeiro soberano deste povo.
Isto, segundo a lenda. Já os estudiosos, atribuem esta origem a povos que, supostamente originários do Alto Nilo, se estabeleceram no entorno da cidade de Ifé, que foi subjugada pelo guerreiro Oduduwa, considerado o criador desta civilização, assim como seus seguidores.
Portanto, quanto a Odudwa, parece haver convergência entre pesquisadores e mito. Seriam os descendentes dele que estruturaram as distintas dinastias que se fixaram, entre os anos 600 e 900 d.C., no espaço geográfico que, atualmente, ainda ocupam.
Essa civilização que, segundo pesquisa arqueológica realizada em 1938, já utilizava a técnica metalúrgica da areia perdida no século XI, centrou-se, de início, em três cidades: Benin3, Oyó e Ifé, sendo esta a cidade sagrada; era ali que estava localizado o centro da civilização, posto que lá estava seu berço, bem como o palácio do chefe religioso, o Oni.
As outras cidades, todas mitologicamente fundadas por filhos de Odudwa e de seus companheiros, tinham por chefe um Obá. Considerado sagrado, usava ele, como símbolo real, um turbante, do qual pendiam fios de pérolas que, de tão juntas, não deixavam ver seu rosto.
Os reinos iorubás, embora ligados cultural, linguística, religiosa e historicamente, organizavam-se de forma autônoma, o que pode ter facilitado sua destruição quando da invasão europeia; essa configuração, certamente, impediu que os iorubás formassem um império, pelo menos conforme o termo é entendido, atualmente.
O reino de Oyó tornou-se, nos séculos XVII e XVIII, o mais poderoso dos reinos iorubás, graças à sua organização militar, que se apoiava em unidades de arqueiros montados, armados com lanças e espadas.
O reino decaiu no século XIX, sob os fulas; porém, nem esses, muçulmanos, nem os europeus, fortemente cristãos, conseguiram impor suas religiões aos iorubás, cujo panteão de orixás4 ainda hoje tem lugar de destaque entre algo em torno de 25% de sua população total, assim como em praticamente toda a diáspora africana das Américas.
Quanto à cidade de Benin, depois tornada reino por volta de 1300 d.C., ligava-se, também, à cidade sagrada de Ifé – assim como todo o mundo iorubá – por descendência de Odudwa; seu soberano mais célebre foi o Obá Ewaré, o Grande: entronizado em 1440, mandou construir estradas e embelezou a capital que, dividida em quarteirões especializados por atividades, produzia a principal receita do rei, gerada pela cobrança de tributos sobre o comércio.
Na direção do Estado, o soberano contava com a assistência de aristocratas e do senado – Sociedade Ogboni – que, formado por anciãos, podia, inclusive, destituir o próprio rei. Quando da Partilha da África5, os ingleses tentaram impor seu protetorado ao reino do Benin; mas encontraram forte oposição do rei, o que resultou no assassinato do cônsul inglês.
Em represália, a Inglaterra enviou, para lá, expedição punitiva que, em 1897, tomou e pilhou totalmente a capital: os soldados ingleses apoderaram-se de milhares de obras-primas da arte beninense, que podem, atualmente, ser vistas em museus e galerias diversos da Europa.
Há que destacar a importância iorubá deste lado do Atlântico, onde seus filhos podem ser encontrados em Cuba, Haiti e, principalmente, Brasil, onde influenciaram não só a história com, entre outras ações, a Revolta dos Malês, como, também e principalmente, a cultura assentada em solo baiano, de onde seus afoxés, candomblés e acarajés espalharam-se por Rio de Janeiro, São Paulo e interior mineiro, lugares onde sua influência ainda pode ser fortemente sentida.
Reino do Abomé
O Abomé6, fundado no início do século XVII por Do Aklim, ainda ao final daquele século não passava de pequeno Estado, controlando, apenas, uma centena de quilômetros quadrados em torno da capital do reino; foram os sucessores deste rei que, por conquistas, o ampliaram, obtendo acesso ao mar em 1747, quando conquistaram Ouidah.
O Abomé possuía poderoso exército, armado com fuzis, e contava com amazonas, tornadas famosas por sua valentia. Expandir as fronteiras e obter escravos para venda: eis os principais papéis desse exército, instigado que era pelas potências europeias, cuja economia, então, sobrevivia graças à exploração e comércio de mão de obra escrava.
Os principais inimigos desse reino eram os reis iorubás de Oyó, que lançavam campanhas militares anuais contra os senhores de Ouidah; porém, o declínio de Oyó possibilitou ao Abomé expandir-se, sentindo-se livre para escravizar iorubás, agora desprotegidos.
Na segunda metade do século XIX, quando os países europeus impuseram o fim do tráfico negreiro, os soberanos do Abomé viram-se obrigados a modificar sua política: devido à grande procura por óleo de palma, organizou-se, então, forte produção deste produto, baseada em mão de obra cativa.
Em 1894, os franceses depuseram o último rei de Abomé, Behanzim, exilando-o na Martinica; depois, foi ele levado a Argel, onde morreu, em 1906. Em sua evolução, Abomé, ou Abomey, passou a designar, apenas, a capital do reino do Daomé, hoje Benim.
É lá no Daomé que, durante o final do processo escravista, dominou o brasileiro Francisco Félix de Souza, o Chachá, exportando escravos, especialmente iorubás, para o Brasil. Isto, a partir do Forte de Ouidah, onde está a “árvore do esquecimento”, de tão triste memória.
Reino Ashanti
O reino Ashanti, localizado na atual República de Gana, desenvolveu-se onde os europeus denominaram Costa dos Escravos, no Golfo da Guiné.
Ali, os portugueses estabeleceram-se para iniciar o tráfico negreiro, fundando, em 1481, o forte de São Jorge das Minas; seguindo os portugueses, vieram mercadores franceses, holandeses, suecos, dinamarqueses, ingleses, alemães, que, também ali, construíram fortes escravistas. Em pouco tempo, havia trinta e cinco fortes na região, de diferentes nacionalidades europeias, todos dedicados ao tráfico negreiro.
Como o reino estava localizado em posição estratégica, facilitando o acesso às rotas que conduziam, ao norte, aos Estados muçulmanos da África Branca e, ao sul, ao litoral atlântico das Américas, significativo fluxo de produtos de alto valor comercial passavam, por ali: ouro, nozes de cola, escravos, tecidos, marfim, etc.; assim sendo, o reino alimentava o comércio de longa distância, assegurando a prosperidade econômica da região.
O contexto favorável e a necessidade de unir-se para enfrentar inimigos, determinaram o surgimento das primeiras chefarias e principados akan, ainda antes do século XV; porém, já no início da dominação europeia, outros povos estabeleceram-se ao norte e, comprando armas dos europeus, capturavam e escravizavam akans, a quem impunham tributos para proteção.
Foi para quebrar esse estado de dominação que os ashanti, em 1700, reuniram-se e constituíram a Confederação de Estados Autônomos, idealizada e concretizada pelo príncipe Osei Tutu.
Conta a tradição que, nessa reunião, sete reis se reuniram em Kumasi – futura capital do reino – e, após beber a poção mágica oferecida pelo sacerdote Okomfo Enokye, viram descer, do céu tempestuoso, um tamborete de ouro que veio a pousar no colo de Osei Tutu, que se tornou, assim, chefe de todos os ashanti. Por isto, os reis desse povo conservaram, como símbolo do poder, uma cadeira de ouro que, venerada por todos, serve como símbolo do reino.
O desenvolvimento local deve-se, em grande parte, ao poder militar: todos os soberanos desse povo desenvolveram grandes esforços para tornar o aparelhamento bélico o mais moderno e perfeito possível.
Já Osei Tutu começou, até por motivos de defesa, a operar profunda militarização das estruturas sociais antigas: implantou o exército regular, que compreendia, além do corpo de inteligência, divisões bélicas, subdivididas em alas esquerda, direita, centro e vanguarda, além da guarda pretoriana.
Relata-se que, em 1871, a quinta parte da população ashanti era mobilizada; os serviços britânicos de informação avaliavam o contingente militar do Reino nessa época, talvez com certo exagero, em oitenta mil homens!
Mas, não só de guerra vivia o Reino: a administração central e o sistema financeiro também sofreram reorganizações; a partir do final do século XVII, a estrutura confederativa inicial transformou-se em Estado, fortemente organizado e centralizado no rei que, no entanto, não dispunha de poder absoluto: devia obter, para qualquer questão importante, o consentimento do Alto Conselho que, composto por notáveis de Kumasi e por representantes das províncias, reunia-se, ordinariamente, uma vez por ano, podendo ser convocado, em caso de necessidade, para reuniões extraordinárias.
1 Sobre esta saga, ver Gomes Eannes de Azurara. Chronica do descobrimento e conquista da Guiné.
2 Sobre a qualidade da indústria africana à época da chegada dos europeus, Claude Meillassoux: Antropologia da Escravidão
3 Reino iorubá, que não deve ser confundido com o Benin atual, antigo Daomé.
4 Aqui, em idioma nagô, significando, em tradução solta, senhor da cabeça, ou seja: ori=cabeça, mais xá= possuidor, senhor, habitante.
5 Divisão da África ocorrida em Berlim, entre nov.1884 e fev.1885, que distribuiu poderes às potências europeias para colonizar todo o continente africano, jugo do qual só a Libéria e a Itália conseguiram se livrar: a primeira, por ser oriunda de compra efetivada pelos norteamericanos sob o governo Monroe, para o retorno de ex-escravizados ; a segunda, por resistência militar às tentativas italianas, inclusive durante o governo Mussolini.
6 Para aprofundamento sobre o Abomey, Claude Meillassoux em Antropologia da escravidão.
REFERÊNCIAS
ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
AZURARA, Gomes Eannes de. Chronica do descobrimento e conquista da Guiné. Paris; J.P. Aillaud, 1851. Disponível em http://purl.pt/216/4/#/0>. Acesso em 30 jan.2006.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1989; 3. ed.
GURAN, Milton. Agudás: os “brasileiros” do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004
HERNANDEZ, Leila Leite. África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, 2008.
MEILLASOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e de dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
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