“A herança africana está presente quando eu canto. A minha ancestralidade fala por mim”, diz Mariene de Castro

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Mariene de Castro – Divulgação

Natalia da Luz, Por dentro da África

Rio – Quando ela sobe no palco, a cantora Mariene de Castro caminha sobre o sagrado e se diz levar pela espiritualidade. Os atabaques do seu samba embalam um espetáculo que faz referência às nações de Keto (maior “nação” do candomblé), de Jeje (candomblé influenciado por Daomé, hoje Benin) e também de Angola. Toda essa influência recheia o trabalho que emociona quem ouve, quem assiste.

– Eu sou uma pessoa espiritualizada. Ela caminha, sai de casa, chega ao teatro comigo… A música é uma forma de se conectar com o sagrado – diz Mariene em entrevista exclusiva ao Por dentro da África. 

Mariene nasceu e cresceu na Bahia, o lugar do mundo com a maior concentração de afrodescendentes fora da África. Respirar esse ar, certamente, moldou o trabalho da cantora, que lembra que “muita coisa nasceu ali, o axé (que na simbologia do candomblé significa energia) que está ali veio direto da África!

Mariene de Castro – Divulgação

– Estar na Bahia me acrescentou muito porque eu sou encantada e apaixonada pela minha cultura, desde muito pequena. Então, isso se reflete na música que eu faço porque eu falo de origem, de identidade, de verdade – contou a artista que sobe no palco do Teatro Rival Petrobras (no Rio de Janeiro) nesta sexta-feira para apresentar o espetáculo Colheita.

Ponto de Nanã

Presente do compositor Roque Ferreira, a música Ponto de Nanã é um dos momentos mais emocionantes do show de Mariene. Ela homenageia a nação yorubá, cultura trazida para o Brasil pelos escravos da região da Nigéria

Mariene de Castro – Divulgação

– Essa música fala da vida e da morte, do inicio e do fim. A gente pontua Nanã com Ijexá e canta também para Oxum. A música simboliza o encontro das duas senhoras: Oxum e Nanã – explica Mariene que, em 2004, venceu o Prêmio Braskem de Música e, em 2005, o Prêmio Tim de melhor disco regional com Abre Caminho.

Na simbologia do candomblé, Ijexá é a nação africana formada pelos escravos vindos de Ilesa, na Nigéria. Oxum é o orixá que reina sobre a água dos rios, o amor, a intimidade, a riqueza, o ouro. Nanã é o orixá das chuvas, senhora da morte e responsável pelos portais de entrada (reencarnação) e saída (desencarne).

– Quando eu canto Ponto de Nanã, há um momento ritualístico porque também tem a referência ao ouro, que há muito tempo faz parte do meu show. Ele simboliza Oxum. A chuva de purpurina é um momento esperado e emocionante, tanto para mim quanto para quem assiste -, detalha a cantora.

Clara Nunes

Ao ouvir e assistir à Mariene, não há como não lembrar de Clara Nunes. Considerada uma das maiores intérpretes do país, Clara (que faleceu em 1983) tinha um profundo conhecimento sobre as tradições afro-brasileiras. A primeira cantora brasileira a vender mais de 100 mil cópias enriqueceu a música com composições que contam a história do Brasil.

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– Clara teve um papel importantíssimo para o Brasil como uma mulher que carregou uma bandeira muito digna. Temos muitas semelhanças, mas ela não foi a minha influência direta. Eu fui descobrir a história de Clara depois. Antes disso, as minhas inspirações foram: Luiz Gonzaga, Elis Regina, Dorival Caymmi, Marisa Monte… Luiz Gonzaga foi uma referência muito grande que eu pude ter em casa.

Clara Nunes – Divulgação

Em 1980, Clara Nunes gravou o álbum “Brasil Mestiço”, que fez sucesso com “Morena de Angola” (de Chico Buarque). Ainda naquele ano, a cantora cruzou o Atlântico com destino à Angola, representando o Brasil ao lado de Elba Ramalho, Djavan, Dorival Caymmi e Chico Buarque, entre outros. No show de Mariene, Clara se faz presente com Canto das Três Raças, gravado em 1976.

Trecho do Canto das Três Raças

Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou

E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor

“Samba é o lamento do negro”
Mariene de Castro – Divulgação

Mariene começou sua carreira profissional como vocal de apoio para Timbalada, Carlinhos Brown e Márcia Freire. No seu terceiro álbum de estúdio, ela ressalta que o seu trabalho fala do samba na cultura popular, da dor, do suor, dos negros, da história do Brasil.

– Quem conta melhor a história do Brasil do que o samba?  Eu canto o samba porque era algo que eu precisava cantar, que era uma forma de falar de mim, das coisas que eu desejo, que eu acredito. Eu posso dizer que o meu trabalho está muito ligado ao povo. A partir da comunhão, a gente se encontra e faz festa – diz a cantora, que no final do show costuma fazer um ritual de agradecimento.

O trabalho de Mariene conta muito sobre a sua origem, mas ela diz que busca mais, busca algo que a antecede, os seus ancestrais, a sua história. Talvez, por essa busca, a sua entrega emocione tanto.

– Eu quero levar o amor, uma árvore de harmonia, de consciência, de humanidade, das coisas que eu acredito e que eu desejo.

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