Por dentro da História: Dia da Juventude relembra o ‘Levante de Soweto’

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SOWETO – SOUTH AFRICA, JUNE 16: On 16 June 1976 – (Photo by Bongani Mnguni/City Press/Gallo Images/Getty Images)

Natalia da Luz, Por dentro da África

(atualizado em 2018)

Joanesburgo, África do Sul – Durante o apartheid, o 16 de junho de 1976 entraria para a história da África do Sul devido a um evento que mobilizou a juventude de Soweto, em Joanesburgo. Na ocasião, mais de 10 mil estudantes (recebidos a bala) foram às ruas com cartazes que diziam: “Abaixo o Afrikaans”. Eles falavam suas línguas maternas como zulu, xhosa, sotho e não queriam ter a obrigação de aprender o idioma dos colonizadores.

Hector Pieterson após ser baleado – Foto de arquivo da África do Sul

– Por que falar a língua de um povo que nos aprisionou? Já tínhamos que seguir muitas regras. Não podíamos frequentar os lugares onde tínhamos nascido e aí queriam nos obrigar a falar afrikaans? – perguntou ao Por dentro da África do Sul, o sul-africano Thebo Moklate, de 50 anos, que vive em Soweto, o cenário de um dos maiores massacres estudantis do período do apartheid.

A foto de Hector Pieterson (de apenas 13 anos), morto após o ataque violento da polícia, durante o Levante de Soweto, ficou eternizada. Rodou o mundo, levando repúdio ao sistema implantado na África do Sul, que havia assassinado mais de 20 jovens naquele dia e, apenas naquele ano, mais de 700 jovens.

Steve Biko: o líder da Juventude

A revolta contra o governo teve grande influência de Steve Biko, um dos grandes ativistas sul-africanos e fundador do movimento Consciência Negra, proibido pelo governo após o massacre. Inspiração dos estudantes, Biko também foi o fundador, em 1968, da União Nacional de Estudantes Sul-Africanos tornando-se presidente honorário da Convenção dos Negros em 1972.

allafrica steve biko
Steve Biko – Foto: sahistory.com

Devido ao seu ativismo contra o apartheid, em 1973, ele foi banido pelo governo e proibido de se comunicar com mais de uma pessoa por vez. Nesse mesmo ano, a Organização das Nações Unidas considerou o apartheid um crime contra a humanidade. Mesmo assim, ele encontrava mecanismos de burlar o exílio para levar à mensagem de valorização da raça negra.

O propósito dele (de Biko) era que os negros entendessem que não eram inferiores, que eles poderiam sim ocupar cargos importantes na terra onde nasceram. O que se tornou realidade apenas após o fim do apartheid…

A sul-africana Thefubi Mshane acredita que as ideias de Biko transformaram a percepção dos negros em relação às suas capacidades. As profissões de seus ancestrais sempre estiveram ligadas às atividades secundárias, cuja maior exigência não era a técnica ou a intelectual. Eles, raramente, conheciam um professor, médico, e principalmente um engenheiro negro.

Cena do cotidiano em Soweto - Natalia da Luz
Cena do cotidiano em Soweto – Natalia da Luz

– Nós não tínhamos nem a possibilidade de sonhar em seguir algumas carreiras. Poucos conseguiam. Hoje, os jovens negros tem chances maiores – disse a moradora de Soweto.

Poucos negros chegavam à universidade, e menos ainda saíam do país para estudar no exterior. Havia um abismo entre o potencial intelectual explorado entre brancos e negros.

Sistema de ensino para os negros era limitado

Vale ressaltar que, desde 1955, o governo havia implantado um sistema de ensino específico para os negros, que tinha como lição principal “ensinar” que os mesmos eram inferiores. As aulas e todo o sistema orientavam os sul-africanos de pele escura para um mercado de trabalho não-qualificado. Muitas matérias foram excluídas, já que não eram necessárias à formação de um aluno negro.

Os investimentos no ensino da população negra foram reduzidos drasticamente e os salários dos professores também. Milhões de negros protagonizaram esse abismo na educação do próprio país, que gastava com os negros um décimo do que era gasto com os brancos. As escolas dos negros eram muito precárias. Muitas não tinham eletricidade, nem água corrente.

Como Mandela seduziu seus detratores

Mandela nos muros de Soweto - Natalia da Luz
Mandela nos muros de Soweto – Natalia da Luz

Conforme os movimentos de repressão ao apartheid foram se intensificando e as retaliações ficando mais agressivas, Nelson Mandela pensou que o melhor caminho para a África do Sul seria dar dignidade aos negros de forma pacífica, fazendo alianças e conquistando, aos poucos, seus maiores inimigos. Mesmo atrás das grades, ele exercia grande influência sobre o mar negro que se formava a cada protesto. Naquele momento, Mandela queria influenciar os brancos.

O jogo de sedução que durou duas décadas levou o primeiro presidente sul-africano negro a estudar afrikaans. Além da língua, ele aprendeu sobre seus gostos, costumes, medos e paixões. De opositor, ele tornou-se admirador de rúgbi, um conhecedor que intrigava até mesmo os brancos mais especialistas! Conhecendo a cultura do “inimigo” e tratando os policiais com gentileza e seriedade, ele acabou criando muitos amigos desta forma e levou o sonho da democracia para seu povo.

Foi uma estratégia lenta que ofereceu um novo caminho para o banho de sangue que era esperado. Mas enquanto Mandela aprendia a língua dos afrikaaners, encarcerado na Robben Island, os jovens de Soweto repudiavam a sua obrigatoriedade iniciando uma série de confrontos que começaram no dia 16 de junho de 1976, deixaram mais de 700 estudantes mortos e milhares de feridos durante o ano.

Ídolo dos jovens, Biko era contra as lições de inferioridade dada aos negros por ordem do governo branco.

– Ele queria que os negros tivessem a consciência de sua capacidade e que ocupassem importantes postos na sociedade – destacou Thebo. Mesmo exilado e vigiado 24 horas pela polícia, Biko influenciava, inspirava e conspirava a favor de uma África do Sul justa.

Complexo de casas em Soweto - Foto; Divulgação
Complexo de casas em Soweto – Foto; Divulgação

Em uma de suas escapadas, especificamente no dia 6 de setembro de 1977, Biko foi reconhecido em uma blitz e levado para a prisão. Durante dias consecutivos, ele sofreu inúmeras agressões. Em 11 de setembro, foi diagnosticado com uma lesão cerebral. Os policiais não o levaram para o hospital mais próximo optando pelo de Pretoria, que ficava a quase mil quilômetros da prisão na Cidade do Cabo. Biko morreu a caminho e o governo alegou que o motivo da tragédia teria sido a greve de fome. Uma inverdade que logo ganhou o mundo graças a um branco: Donald Woods.

A favor da juventude negra

Donald Woods era descendente britânico e sua família estava há cinco gerações na África do Sul, especificamente em Eastern Cape, que o ajudou na fluência em afrikaans e xhosa, já que a província reúne muitas fazendas de afrikâaners e a concentração do povo xhosa. Desde que o Partido Nacional assumiu o poder, o editor-chefe do jornal  Daily Dispach, veículo que seguia uma política anti-apartheid, começou a questionar as regras separatistas. Ele rejeitou até mesmo a política de assentos na redação do jornal, permitindo que negros, brancos e coloureds sentassem lado a lado.

Porém, mesmo em desacordo com o regime, ele tinha receio  sobre as idéias de Biko, que aos olhos do governo, eram revolucionárias e perigosas. Woods foi conhecer Biko e ficou extremamente tocado. Com exceção dos policiais, os brancos não conheciam de perto a realidade de seus conterrâneos, que viviam a margem de sua comodidade. Woods passou a experimentar esse lado sul-africano na companhia do líder negro.

E por isso ele tomou para si a responsabilidade de contar ao mundo o que, de fato, tinha acontecido ao amigo. Foi ele quem ordenou que seu fotógrafo registrasse o corpo de Biko ainda no necrotério provando que ele havia sido brutalmente agredido e que a causa de sua morte não era um suicídio por enforcamento, mas sim um terrível espancamento. Woods desmascarou a justiça sul-africana tornando-se consequentemente um grande inimigo do governo.

Vista de Soweto - Divulgação
Vista de Soweto – Divulgação

O jornalista foi para Londres onde conseguiu asilo político tornando-se um porta-voz do ativismo anti-apartheid. Espalhou pela imprensa mundial as fotos com as marcas no corpo de Biko e publicou um livro com a sua história, uma biografia do grande líder da Consciência Negra que leva o nome do próprio personagem.

O retorno à África do Sul antecedeu as primeiras eleições democráticas do seu país. Nas eleições do dia 27 de abril, reconhecendo os seus esforços, a multidão que aguardava para votar, deu a ele um lugar de honra para que ele pudesse ser o primeiro a votar. Mas mesmo com as provas de Woods, o Ministério Público anunciou em 2003 (dois anos após a morte de Woods em decorrência de um câncer) que os policiais envolvidos não seriam processados. O Estado não se responsabilizava.

artigo original publicado no Jornal do Brasil, em 2010)

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