Democracia e desenvolvimento na África: um olhar sobre a República Democrática do Congo

0
1587

Bas ́Ilele Malomalo, Por dentro da  África

Tema do artigo: Desafios da democracia e do desenvolvimento na África:um olhar sobre a República Democrática do Congo a partir da Diáspora negra brasileira

Esse artigo discute os desafios da democracia e do desenvolvimento no continente africano tendo a República Democrática do Congo como o foco principal. Analisa, assim, a situação do subdesenvolvimento desse país a partir da sua história marcada pela colonização, neocolonização e as guerras motivadas pelas disputas do poder e do capital em que são envolvidos vários agentes nacionais, regionais e internacionais. Discute as condições de possibilidades do desenvolvimento desse país, propondo, entre outras coisas, a educação para a democracia e para a solidariedade como estratégias.

O texto que apresento nesse livro foi discutido pela primeira vez na I Conferência Internacional do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra(CLADIN)e GT-NUPE-FCLAR, promovida pela Faculdade de Ciências e Letras da UNESP-Ar, Departamento de Antropologia Política e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, SESC e Centro de Referência Afro, nos dias 15, 16 e 17 de maio de 2007.

As reflexões decorrentes dele situam-se no contexto dos acontecimentos que ocorreram na África e na República Democrática do Congo (RD Congo) até 2007. A minha comunicação fez parte do seminário temático do CLADIN: “Lugar político e estado da cultura africana e afro-diaspórica no século XXI”. Sugiro o tema seguinte para nossa reflexão: “Desafios da democracia e do desenvolvimento na África: um olhar sobre a República Democrática do Congo a partir da Diáspora negra brasileira”. A minha intenção não é abordar a realidade social, cultural, política e econômica do continente africano na sua generalidade, que pode ser encontrada no relatório 2006 da União Africana(UA)(2006),mas destacar uma de suas realidades, tendo a RDC como um caso particular por dois motivos.

Primeiro: foi nesse país que nasci e comecei a alimentar a minha consciência crítica sobre a negritude/africanidade. Segundo: o advento da III República, nessa parte da África, é um belo exemplo, para discutirmos, nós intelectuais africanos, negros da diáspora, africanistas e os simpatizantes da nossa luta sobre o nosso futuro e o dos nossos filhos.

Desenvolverei a minha reflexão a partir dos instrumentos teóricos que fazem parte da minha realidade intelectual na atualidade: os estudos do desenvolvimento, especificamente a sociologia do desenvolvimento e das relações raciais/multiculturalismo. Articularei o meu discurso a partir de três pontos:1)o campo dos estudos do desenvolvimento: dos velhos aos novos temas;2) o paradoxo do subdesenvolvimento africano: o caso da RD Congo; 3)os desafios da democracia e do desenvolvimento na África a partir da República Democrática do Congo. Finalizo o meu texto com uma nota de esperança para o Congo, tendo por pano de fundo a epígrafe do meu poema “Exílio”.

UNICEF DRC/2016/Jones

Os estudos do desenvolvimento são um campo multidisciplinar que faz uso dos conceitos da sociologia, da antropologia, da economia e da ciência política para pensar a realidade social. Nasceram após a Segunda Guerra mundial, num contexto histórico que Gunnar Myrdal caracterizou de guerra fria, da descolonização e de aspiração dos países em desenvolvimento em ocupar um melhor lugar na ordem política e econômica mundial e as condições de vida mais digna para o conjunto de suas populações (FORSTER, 2007).

Na atualidade existem duas correntes desse campo do conhecimento. O pensamento dominante do desenvolvimento que tem a economia como o núcleo duro. Essa primeira abordagem tende a pecar pelo seu economicismo. As grandes instituições financeiras tais como FMI, Banco Mundial são as defensoras dessa linha de pensamento. De outro lado, existe o pensamento crítico do desenvolvimento, conhecido também como o pensamento alternativo (FAVREAU, 2004; MÉSZÁROS, 2002,2003,2004). Perante a crise atual, a primeira corrente considera que não há outra saída. A própria lei do mercado irá corrigindo as desigualdades sociais criadas pelo próprio mercado. Os defensores do pensamento alternativo pensam o contrário.

Fazem parte da nova sociologia econômica, da teoria da economia social e solidária, do desenvolvimento humano, do desenvolvimento local, do desenvolvimento econômico comunitário ou do desenvolvimento sustentável. Para eles, é preciso introduzir um novo olhar sobre o conceito econômico (GENDRON, 2004). A economia, o mercado e suas transações são vistos como construções sociais. Nessa ordem de raciocínio, a superação das desigualdades sociais contemporâneas, da pobreza e da agressão ao meio ambiente causadas pela manipulação política do sistema econômico capitalista só é possível definindo-se novas leis, normas e regras no jeito de se pensar e construir a economia e sociedade.

Veja também: “A luta é pela paz, liberdade e democracia na República Democrática do Congo”, diz ativista 

Em outras palavras, isto significa que o desenvolvimento é um conceito que vai para além do simples crescimento econômico;diz respeito à qualidade de vida das populações e do seu meio ambiente (FAVREAU, 2004; GENDRON, 2004).Fundamento minha reflexão sobre o novo paradigma do desenvolvimento que surgiu nos anos de 1990. O seu surgimento tem muito a ver com a gênese das ciências do desenvolvimento que, conforme Forster (2007), tinham por velho tema o Sul.

MONUSCO/Sylvain Liechti

Buscava entender a situação de subdesenvolvimento em que se encontravam a maioria dos países da Ásia, da América Latina e da África após suas independências. Se de um lado, as teorias do subdesenvolvimento e da dependência nos ajudaram a entender, nos anos de 1960 a 1980, as relações de assimetria, de dominação existentes nas relações diplomáticas, econômicas e nas cooperações internacionais entre o centro e a periferia, do outro lado, somente a partir dos anos de 1990 é que o novo paradigma do desenvolvimento vai nos possibilitar apreender a complexidade da lógica de dominação dos impérios ocidentais em relação aos países do Sul no contexto da globalização (MÉSZÁROS, 2004; COMELIAU, 2007).

Como se poder ver, essa reflexão se alicerça sobre tudo nas abordagens que têm usado o método genético-estrutural ou sistêmico (BOURDIEU, 1979; COMELIAU, 2004). Pode se afirmar que as mudanças trazidas pela globalização no Norte como no Sul fizeram emergir novos temas para a agenda dos estudos de desenvolvimento. Forster (2007) qualifica esses temas de “problemas globais”.

São problemas que afetam toda a humanidade: a problemática do acesso aos recursos e a repartição da riqueza ligada à problemática de desigualdades sociais, de pobreza e de distribuição de poder nas instâncias locais e globais; a questão de comercio equitativo e a ética nos negócios; a problemática de construção de sociedades multiculturais que valorizam as diferenças; a problemática de elaboração de uma política regional e internacional que atenda aos direitos dos trabalhadores migrantes; a problemática da preservação do meio ambiente; a problemática da segurança que foi definida durante a última década a partir de três dimensões: a da segurança humana, a prevenção dos conflitos e a luta contra o “terrorismo”.

Todos esses temas, na perspectiva desse trabalho, constituem os desafios da democracia e do desenvolvimento. O tratamento adequado desses novos temas dos estudos do desenvolvimento exige um novo olhar teórico sobre um desenvolvimento que vai além do econômico. O desenvolvimento como conceito científico é ao mesmo tempo um projeto social, cultural, político e econômico cuja construção implica as negociações entre vários agentes sociais: o Estado, o Mercado e a Sociedade civil (LÉVESQUE, 2002).

Trata-se de uma teoria e prática que dizem respeito à sustentabilidade das populações locais, do (seu) meio ambiente e do planeta. A avaliação crítica do desenvolvimento, nesse sentido, conforme Comeliau (2007), passa pelas considerações das competências técnicas e éticas presentes nos projetos de desenvolvimento. Além disso, os ativistas e intelectuais que lidam com o novo paradigma do desenvolvimento acreditam que a discussão em torno desse assunto requer também uma nova cultura, uma nova ética baseada nos valores como democracia, autonomia, cooperação, solidariedade, justiça,nas transações econômicas, políticas e culturais que acontecem em vários níveis sociais, locais, regionais, nacionais e internacionais. É nesse contexto, que os intelectuais e ativistas do Sul têm interpretado o conceito desenvolvimento em termos de deslocamento do centro de decisão dos países centrais para os países periféricos (FERNANDES, 1968; FURTADO, 1992); de desenvolvimento como caminho da liberdade (SEN, 2000), ou seja,ter a capacidade e as condições necessárias para realizar o destino de suas nações.

Eles entendem também que há uma inter-relação entre os problemas ligados ao desenvolvimento dos Estado-nações, das localidades e das populações. Os problemas econômicos presentes no destino desses agentes são ao mesmo tempo problemas sociais (políticos, culturais e ambientais). A compreensão dessa problemática passa pela mudança teórica e política de se estudar e enfrentar o problema das desigualdades, da pobreza e do subdesenvolvimento. Trata-se ali de uma problemática política e epistemológica. Em relação a essa última, gostaríamos de acrescentar mais um elemento típico desse campo de conhecimento: a valorização da particularidade de cada sociedade sem perder de vista a complexidade do assunto do desenvolvimento (FORSTER, 2007).

Os paradoxos do subdesenvolvimento africano: o caso da República Democrática do Congo

Acho melhor fazer uso do conceito de subdesenvolvimento para descrever a situação da África a partir da realidade da RD Congo. Subdesenvolvimento parece ser um conceito velho e esquecido, mas ao meu ver, tem ainda a sua força explicativa. Remete à privação de liberdades, de violação da cidadania, de impedimento de ter acesso e de exercer os direitos econômicos, sociais, culturais de um indivíduo ou de uma coletividade(SEN, 2000). Não falarei da situação do subdesenvolvimento do continente africano. Para isso bastaria ler os Relatórios de Desenvolvimento Humano de PNUD e outros documentos como Relatório da UA sobre o estado das populações africanas (2006).

Interessa-me a situação da RD Congo.Os indicadores econômicos apresentados pela Revista Jeune Afrique ilustra a situação de precariedade em que se encontrava a RD Congo em 2007. Esta nação africana rica em recursos naturais e humanos, contado entre os dez países do mundo em termos de potencial, é ao mesmo tempo classificada entre os dez países mais pobres do planeta (MALEKERA. Disponível em: http://www.congovision.com). “Pois, a história econômica do país resume-se numa longa descida aos “infernos”. Em 1960, o PIB do ex-Zaire(entenda-se Congo)era superior ao do Canadá”, escreve Laurence Tovi

Só que em 2007, esse país passava por grandes dificuldades. A reflexão a ser feita é que ninguém desce ao inferno sozinho. No caso do Congo, só existe inferno porque houve “diabos” que o construíram. O inferno é a sua situação de subdesenvolvimento.Para entendermos o processo de subdesenvolvimento da RD Congo, precisamos entender a sua história nacional, regional e internacional.

Nossos pressupostos para análise são esses: desde o tempo colonial até a III República,em 2007,esse país sempre foi vítima da cobiça do poder e do capital internacional, continental e regional e o sucesso dessa dominação só se justifica pela cumplicidade de uma parte da sua liderança política seduzida pelo poder e pela ganância material(MOYROUD eKATYNGA, 2002).

A seguir explicarei essa afirmação dividindo a história do Congo em três fases: antes de 1493 ou período pré-colonial, período colonial (1493-1960) e período pós-colonial (1960 aos nossos dias). Antes de 1493, o território congolês era composto de reinos tais como Kongo, Luba, M ́siri, Zande, Mangbetu, Mongo, etc. Essas instituições políticas contribuíram durante séculos pela coesão social. Como diria Tshamalenga Ntumba (1996-1997), o poder tradicional africano era colocado à serviço da comunidade, pois entendia-se que “o chefe era o chefe da comunidade e a comunidade era comunidade do chefe”.

A vida comunitária, a solidariedade, o respeito pelo mais velho, as alianças entre grupos étnicos, o respeito para com o outro, as divindades, a comunidade e a natureza eram valores que constituíam a cosmovisão, o ethos africano pré-colonial. Mesmo que as culturas africanas, que eram praticadas nos diversos espaços civilizatórios de seus povos, não eram perfeitos, deve se reconhecer que conseguiam manter o equilíbrio e o bem-estar das populações. É dessa forma que os primeiros missionários europeus que chegaram nas terras dos Bakongo se admiravam pelo fato de não encontrar crianças órfãs abandonadas nas ruas, fenômeno corriqueiro na Europa do século XV.

Leia mais: O Kongo vivia em democracia quando os portugueses chegaram

Com a chegada dos portugueses, em 1493, no reino do Kongo, essa parte da África central entrara na rota do tráfico negreiro e assim se iniciara o processo de saque da RD Congo e da desestruturação de suas instituições sociais. Se por um lado,os portugueses ocuparam-sedo comércio negreiro na parte oeste da RD Congo abastecendo o mercado do Brasil, por outro lado sabemos que os árabes entraram pela parte leste,comercializado os escravos nos mercados de Zanzibar, de Quelimane e Oriente Médio.O tráfico transatlântico dos escravos africanos marcara a primeira fase da espoliação do continente africano e da RD Congo durante quatro séculos (XV-XIX)(NZIEM, 2009).

A abolição da escravidão, no final do século XIX, não significou o início de um “novo” projeto de desenvolvimento nacional, pelo contrário, o início de um novo ciclo de saque e dominação dos territórios congoleses, de suas populações e de seus descendentes pelos europeus e euro-descendentes. Na conferência de Berlim (15 de novembro de 1884 -26 de fevereiro de 1885), a atual RD Congo foi objeto de disputa política entre as coroas portuguesa e belga. Desta conferência, ela foi constituída em um país que foi batizado de Estado Independente do Congo (EIC, 1 de julho de 1885 -1908), propriedade privada da família do Rei Leopoldo II. O mesmo país será assumido pelo governo belga anos após, tornando-se sua colônia de 15 de novembro de 1908 até 30 de junho de 1960 (NZIEM, 2009).

Saiba mais: A independência do país que viveu um dos regimes mais cruéis de colonização

Não seria necessário lembrar que o sistema colonial foi um sistema de dominação dos povos africanos e de exploração de seus recursos naturais. Todo aparato cultural, administrativo, político, econômico, montado pelo colonizador com uso da mão de obra escrava ou assalariada dos nativos africanos visava servir seus próprios interesses econômicos e políticos. Sendo assim, contribuíram para o desenvolvimento, a prosperidade das nações colonizadoras e para o processo de subdesenvolvimento dos povos das nações dominadas.

Numa palavra, a colonização foi um projeto de dominação cultural, político, econômico que beneficiou mais o colonizador que o colonizado(RODNEY, 2010; KIZERBO, 2006). Entre 1950 e 1960, a humanidade assistira ao processo de descolonização das nações africanas. O Congo Belga foi independente em 30 de junho 1960, tendo Joseph Kasa-Vubu como presidente e Patrice Lumumba, como Primeiro Ministro. Vale ressaltar duas dinâmicas sociais nesse contexto de libertação.

A primeira é o movimento de resistência, de luta contra o colonialismo, que só foi possível graças a solidariedade existente entre as diásporas negras das Américas e da Europa com as lideranças locais africanas determinadas a elaborar um projeto de desenvolvimento alternativo para o seu continente a partir da sua realidade cultural. Na figura de uma personalidade como Lumumba podemos encontrar os germes de um pensamento do desenvolvimento local africano: o nacionalismo africano que entendia que a cultura, a política e a economia deviam se colocar a serviço das populações(NZIEM, 2009)

Leia o artigo completo aqui  

Bas ́Ilele Malomalo  é Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquista/UNESP (2010), é docente de graduação nos cursos das Relações Internacionais, Ciências sociais e Mestrado Interdisciplinar em Humanidades (MIH) do Instituto de Humanidades e Letras (IHL) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), coordenador do Grupo de Pesquisa África-Brasil