Susan de Oliveira, Por dentro da África
Lisboa – O mundo está consternado com o massacre de Paris cometido pelo Estado Islâmico e muitas pessoas se manifestaram mudando as fotos de perfil nas redes sociais. De imediato, outras tantas reclamaram que o mesmo sentimento deveria ter sido expressado em relação às vítimas nigerianas e quenianas do Boko Haram, para ficarmos perto das correlações possíveis evocadas, pois ainda houve quem fizesse a comparação entre outros acontecimentos igualmente brutais produzindo ad infinitum um fenômeno de entrincheiramento da solidariedade, ou seja, defendo alguns contra outros e nos tornando reféns de particularismos de percepção.
Veja o especial sobre o caso dos ativistas angolanos presos desde junho
Nessa guerrilha, não ganham as vítimas, os solidários e a ética que se esvazia do seu sentido e complexidade, pois no comparatismo e na tentativa de universalizar a distribuição da solidariedade ocorre uma simplificação moral que, a seguir, passa a servir ao constrangimento das escolhas.
O filósofo ganês Anthony Appiah, contra tal simplificação moral e seus constrangimentos, ensina que “o que nós devemos aos outros deve ter em conta muitos valores; nenhuma história plausível das nossas obrigações para com estranhos pode ignorar a diversidade das coisas importantes para a vida humana.” Isso significa que todas as formas de solidariedade são bem-vindas e em todas as situações que possamos intervir. Entretanto, não podemos com isso sanar as falhas cometidas por outros dos quais dependem as consequências da reivindicação expressada em nossa solidariedade.
O que queremos e a quem nos dirigimos quando somos solidários a uma causa? Às vítimas em primeiro lugar queremos conforto e reparação, mas também àquelas pessoas que podem efetivamente atuar por elas onde quer que estejam nós enviamos uma mensagem. Assim, de pouco adianta, segundo Appiah, manifestarmos um sentimento (menos ainda nos adianta a disputa moral) se não fortalecermos as lutas locais e cobrarmos as responsabilidades a quem é de dever cumpri-las, pois, é óbvio que mudando a foto de perfil não conseguimos salvar vidas.
Ser solidário com todos é bom, mas em alguma medida as causas que nos comovem requerem outras formas de engajamento que nos levam a optar pelo que nos parece estar mais adequado às nossas possibilidades de ação ou, infelizmente para alguns, pelo que lhes parece liberar mais rapidamente do compromisso.
Desde a prisão dos ativistas angolanos, em junho passado, começamos uma campanha de solidariedade internacional nas redes sociais pela liberdade dos jovens e que se intensificou durante os 36 dias de greve de fome de Luaty Beirão, em face da constatação de que as detenções provisórias que se prolongavam bem como as acusações que lhes deram origem foram arbitrárias, absurdas e, sobretudo, mantiveram-se ao longo destes cinco meses contrariando diversos princípios defendidos pela Constituição da República de Angola.
Nesse período, foram feitas vigílias, Atos públicos, manifestações, concertos musicais, graffitis, gravuras, raps, debates, entrevistas, foram escritas cartas, artigos de opinião e petições acompanhadas de grande circulação de imagens e vídeos que conseguiram ocupar os espaços da imprensa alternativa e também fazer com que a imprensa oficial de Angola cedesse em sua pauta para replicar os nossos argumentos e o governo angolano começasse a expor publicamente suas fraquezas e medos.
Contudo, se fomos consequentes nas ações com a mudança da nossa foto de perfil e disseminando a hashtag #LiberdadeJá das mais variadas formas, a solidariedade que nos move em relação aos jovens angolanos não é apenas advinda do sentimento flagrante de injustiça e pesar diante das violências contra eles cometidas, inclusive pelas torturas que têm sofrido no cárcere e que não são exclusivas, ao contrário, as condições prisionais angolanas são as piores possíveis para todos os detentos e isso também ficou evidente.
A liberdade destes jovens é parte da luta pelos direitos humanos em Angola que precisa dos seus defensores livres. Em outras palavras, defendendo a liberdade dos ativistas ajudamos a todos os angolanos que eles próprios defendem e que figuram nos índices absurdos de desumanidade e precarização em Angola como a fome, falta de escolas, hospitais, saneamento básico, mortalidade infantil, desemprego, violência policial, entre outras, tudo aquilo que não queremos para ninguém e contra o que combatemos em cada lugar onde vivemos fazendo o que nos é possível sem deixar de mandar a conta aos responsáveis.
O maior crime ambiental ocorrido no Brasil e que, além das mortes e calamidades já anunciadas, põe em risco presente e futuro incontável número de vidas humanas e não humanas – trata-se aqui do rompimento da barragem de dejetos químicos oriundos da extração mineral em Mariana, Minas gerais, que soterrou uma cidade sob a lama e decretou a morte do Rio Doce por contaminação de metais pesados na semana passada – tem como uma das responsáveis a empresa BHP Billiton que fez fortuna na extração de diamantes em Angola antes de se associar à Vale através da joint venture Samarco, administradora da barragem em questão.
É impossível não considerar que governos e grandes empresas multinacionais como as de diamantes, ferro, petróleo, agrotóxicos e armas, entre outros, estão associadas aos piores crimes cometidos contra os direitos humanos e contra as condições de vida no planeta e que quando estes mesmos governos e empresas se sentem ameaçados pelas consequências do que provocaram, produzem os inimigos a quem proclamam combater fortalecendo-sediante da opinião pública como “salvadores” ou usam a máquina estatal para reprimirem os protestos dos ofendidos e humilhados.
Vamos observar as retaliações xenófobas e racistas aos imigrantes sírios e demais africanos na atual “guerra ao terror” depois do Ocidente ter participado do armamento do monstro EI e destruído a Síria.
Vamos observar por quais crimes serão responsabilizadas as empresas BHP e Vale, sobretudo esta que tem financiado as campanhas dos políticos que devem agora lhe cobrar as responsabilidades. Vamos observar se, mais uma vez, ativistas angolanos serão condenados, a exemplo de Rafael Marques e Marcos Mavungo, por criticarem e denunciarem as consequências de um governo cuja opção ao longo de 36 anos tem sido “produzir ricos”, como diz Mia Couto, injetando fortunas nas contas bancárias de mineradores e empreiteiros sem preocupar-se com a vida degradada da população e que agora, com a crise do petróleo e o escândalo dos bilhões em créditos chineses, começam a ficar difíceis de esconder.
Se as grandes corporações capitalistas e seus compromissos com os governos subordinam as populações em acordos econômicos e militares transnacionais que produzem a miséria mundial, as nossas causas não têm fronteiras. O direito à liberdade de expressão e manifestação em Angola nos interpela pelo que defendemos para todos os povos.
A Constituição angolana pode ser deitada para o lixo no julgamento que se pretende iniciar neste dia 16 de novembro, mas a construção da solidariedade com Angola e a defesa dos direitos humanos e civis constitucionais é uma conquista dos bravos 15 ativistas presos – e das +2, Laurinda Gouveia e Rosa Conde – que este julgamento consolidará qualquer que seja a sentença. A intensidade e as condições da luta futura são imprevisíveis, entretanto, é certo que dependerá do grau de justiça aplicado no resultado deste julgamento para o qual a solidariedade conquistada e por vir será sempre – como tem sido – o fator determinante da equação.