“A partir de certo ponto não há mais retorno. Esse é ponto que deve ser alcançado.” (Franz Kafka)
Por Susan de Oliveira, Por dentro da África
Luaty Beirão faz greve de fome. Este fato é tudo menos privar-se simplesmente de comida. Pode-se, inclusive, fazer greve de fome por melhor alimentação, mas já ai é a condição humana que a motiva e não o estômago. E Luaty Beirão faz greve de fome porque pensa na falta de comida para 3,9 milhões de pessoas em situação de miséria em Angola. Esta fome é correlata à ausência de justiça social no país que consegue ter a capital mais cara e também a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo. Por perceberem isso, ele e outros 14 ativistas estão presos. E podemos dizer, portanto, que a fome maior por consciência e justiça social é a razão mesma do seu ativismo político que os levou a serem considerados inimigos do Estado angolano.
Luaty Beirão faz greve de fome. Este fato é tudo menos procurar a morte embora ele possa a qualquer momento encontrá-la. Ele tem fome é de sua vida engolida a seco numa batida policial no dia 20 de junho de 2015. Levado com vários companheiros de uma reunião diretamente para uma prisão dita provisória que se estenderia ilegalmente por mais de cem dias.
O rap e o ativismo em Angola, por Susan de Oliveira
Levado “sem culpa e sem chance”, como diz a canção do rapper brasileiro Mano Brown, ele esteve, como os outros também estiveram, numa cela solitária e por cerca de 30 dias lá viveu com todas as restrições possíveis e imagináveis no diminuto espaço sem luz até que uma decisão coletiva dos quinze ativistas de lutarem pela liberdade provisória a que têm direito os levou à greve de fome da qual só Luaty Beirão não recuou. Outros podem voltar a ela, como já fizeram Nelson Dibango, Benedito Jeremias, Mbanza Hamza e Albano Bingobingo, mas Luaty talvez já não retorne dela. E o tempo de Luaty escorre rápido na ampulheta que outro homem manipula.
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Luaty Beirão faz greve de fome. A greve de fome é um paradoxo precedido pelo alcance do limite de uma ou várias privações a que pode suportar o indivíduo e isto o leva a privar-se também daquele mínimo que lhe resta e o sustém em nome de algo que o transcende. Um ser humano em greve de fome faz de sua precariedade a sua força. Faz da sua luta perdida um ato de bravura. O paradoxo se multiplica, mas até certo ponto.
E, como diz Kafka, “a partir de certo ponto não há mais retorno”. Perguntamos, ainda com Kafka: “Esse é o ponto que deve ser alcançado?”. Na verdade, Kafka afirma. Conhecendo a inflexibilidade ética de Luaty Beirão diríamos que a essa altura é inevitável chegar a esse ponto do não retorno. Mas, a pergunta nós não dirigimos a ele, dirigimos ao governante máximo de Angola, Sr. José Eduardo dos Santos: O ponto do não retorno deve ser alcançado, Sr. Presidente?
E porque a pergunta deve ser dirigida a ele? Porque a ele, como figura do poder que se estabelece pesadamente como punição sobre Luaty Beirão e os outros 14 ativistas, também recai um paradoxo: O de fazer justiça para tentar preservar alguma coisa de sua imagem que não seja a de um tirano desprezível e cruel. Luaty, aquele jovem que acusam de conspirar para derrubar o governo, lá mesmo na cama onde se encontra, pode ajudar o Sr. Presidente a erguer-se um pouco do buraco fétido onde se meteu. Ou não haverá retorno para nenhum dos dois?
A comunidade internacional olha com perplexidade a negligência com a vida dos detidos, especialmente a de Luaty Beirão, bem como a arbitrariedade da condução do caso em que foi preso o grupo dos quinze ativistas pelos direitos humanos sob a acusação torpe e descabida de golpe de Estado. E o caso bem poderia seguir assim, juridicamente cambaleante, sem notícias nos jornais e com algum pequeno desconforto temporário ao governo, uma sequeência prevista no conhecido histórico de casos semelhantes de violação de direitos humanos começados pela repressão à liberdade de expressão e outras violências sob a alegação de ameaça ao governo.
Vencida a fase inicial, à custa de uma prisão preventiva ilegal de mais de cem dias, tudo caminharia para o desfecho também previsto da condenação dos jovens e seu esquecimento ao serem banidos da vida social. Daí, então, Angola se resignaria inteira à inexorabilidade do regime. Entretanto, a condenação que se anuncia nessa ritualística já estaria dada de antemão e Luaty Beirão e os demais companheiros sabem-se julgados e condenados desde o dia em que foram presos. Portanto, querem – é só o que querem – a liberdade provisória que cabe a eles para estarem com suas famílias. Esta tem sido negada. A luta pela liberdade provisória seria a única que possivelmente lhes restaria e por ela tiveram os “frustrados” que fazer uma greve de fome.
Mas, descobriu-se nesta última semana, afinal de contas, que a fome de liberdade de Luaty não é só dele e dos outros ativistas que foram presos. É uma fome solidária que está corroendo as entranhas de muita gente. Muitos angolanos percebem agora que estão também em greve de fome, privados de direitos básicos desde que nasceram, e que são alimentados por uma sonda pela qual o “regime” lhes oferta gota a gota uma existência precária sem nunca deixar que se levantem. Luaty conseguiu dar uma expressão visível a isto. A greve de fome de Luaty Beirão deflagrou nos angolanos o ímpeto de abrirem os olhos, questionarem e reclamarem os abusos de poder.
Incrível como um só homem fragilizado covardemente fez o que os seus algozes mais temiam nos últimos anos. Fez com que a fraqueza da fome se transformasse na força da fome. E é não só paradoxal, mas contraditório que queira José Eduardo dos Santos testar a fibra moral destes jovens, contestado que está frontalmente pela própria coerência do movimento que construíram pela horizontalidade da luta comum e pela verticalidade do caráter individual deles que têm sido alvo das mais duras medidas de repressão alcançadas pelo governo em tempos de paz contra pessoas em exercício constitucional de suas liberdades.
Luaty Beirão faz greve de fome, não de consciência. Não a faz por desespero, mas pela lucidez de estar imerso no fosso das mais brutais violências. E alegam alguns hipócritas que não ofertar recursos médicos ao debilitado Luaty Beirão é um respeito à escolha individual, mas tardiamente bradam o respeito à liberdade de escolha quando deveriam tê-lo feito quando os policiais executaram as prisões à revelia da Lei ferindo esta mesma liberdade. É uma decisão consciente, lúcida, mas tomada sob incessante tortura física e psicológica. Que não se tire, portanto, a responsabilidade do Estado em relação a isso legitimando a injustiça, a violação dos direitos humanos pela tortura como se fosse apenas escolha “livre” da vítima.
Por Susan de Oliveira, publicado em buala.org e cedido ao Por dentro da África. Susan é pesquisadora de literaturas africanas, culturas de periferias e professora na UFSC.
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