Ademir Barros dos Santos, Por dentro da África
“Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã”, sugere Alfredo Bosi, logo ao iniciar seu Dialética da colonização; assim continua ele: “As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem.”
Ora, tendo em vista que o termo “linguagem” é perfeitamente substituível por “código informativo”, a palavra “charge”, neste texto, refere-se ao desenho enquanto código que, utilizando distorções e exageros, satiriza situações relevantes no contexto em que ocorrem; portanto, é a marca deste momento no corpo da história.
Isto posto, crê-se que, ao utilizar-se destas distorções e exageros, as charges produzem duplo resultado: se, por um lado, pontuam a realidade e formam opiniões, por outro, perenizam o momento, o que lhes garante a utilização como registro histórico.
Além disto, é de se admitir: a charge recolhe, condensa, digere, altera e devolve, a quem a ela tem acesso, fatos e concepções sociais já presentes na sociedade; assim, pode exibir e criticar conceitos que comicamente reflete, utilizando-se do humor, ácido ou não.
É neste sentido que ela, se não cria, reforça identidades que, nem sempre, correspondem ao que ali vai mostrado: afinal, nem todo judeu é avaro e usurário, e nem todo muçulmano é terrorista, como quer fazer crer a imprensa ocidental. Por último: nem todo negro é bandido, favelado, ladrão, como é voz corrente, desde os tempos da escravidão.
Fontes e recortes
Este estudo nada mais pretende que permanecer nos limites do simples artigo; dado seu caráter meramente especulativo, pouco se aventura a outras charges e desenhos que não os disponíveis na Internet; isto porque, para os objetivos aqui propostos, a abrangência temporal e o amplo espectro que a via eletrônica possibilita, são mais que suficientes.
Para a análise, serão abordadas – supérflua e brevemente, insista-se – as estigmatizações que atingem, na sociedade cristã ocidental, aos judeus, que o são quer por ascendência, quer por religião; também aos muçulmanos e, por extensão, aos árabes, assim como aos negros[1], descendentes de escravos ou não.
Judeus
Já a palavra “judeu” remete, no imaginário popular, à figura que a charge abaixo representa: um homem, provavelmente baixo, acorcundado como um rato; nariz enorme, típico, deformado; olhar sorrateiro, dissimulado; sorriso que revela quem produz – e se diverte produzindo – o mal alheio; como caráter, a impiedade, a frieza, a avareza, a ganância, a desfaçatez e a esperteza fina, fatores marcantes, infalivelmente presentes em sua personalidade; na mão, o dinheiro: deus, motor e objeto único de sua vida.
Por outro lado, quem quer que se pareça com esta figura, será visto, pelo menos no primeiro momento, como judeu; o que ativará aqueles conceitos, cuja metáfora poderá produzir aversões – ou mesmo a exclusão social – do portador desta aparência.Como decorrência, quem quer que veja tal representação, mas não conheça judeus reais, imaginará que não deve conviver com qualquer deles, visto que é da personalidade deste estranho beijar traindo e matar sorrindo.
. Árabes e muçulmanos
Da charge abaixo, não se pode deixar de contextualizar o ambiente sócio-político e intelectual em que foi produzida: vem ela precedida de intensa campanha ocidental contra o chamado “terrorismo islâmico”, o que justifica a bomba colocada na cabeça do pretenso Maomé.
Além disto, nenhum muçulmano tem o dever de ser terrorista; porém, como resultado e em caso de dúvida, “terrorista” é sempre o árabe mais próximo. Ou quem com árabe se pareça. É relevante ressaltar que a imprensa ocidental vem chamando “terroristas” aos árabes em geral, mesmo sabendo que nem todo árabe é muçulmano, e que nem todo muçulmano é árabe; que, subliminarmente, o texto “terrorista muçulmano”, tão corrente nos textos dos telejornais, formam subtextos mentais no ouvinte, levando-o a associar, mesmo que inconscientemente, a religião de Maomé ao terrorismo cruel, frio e exacerbado.
É importante saber, ainda, que o rosto de Maomé é desconhecido, mesmo como representação e ideologia, já que o islamismo original condena o culto à personalidade…
Mas, como assim é, é possível que a aparência de Jean Charles, o brasileiro morto em Londres como terrorista, se encontre entre as causas prováveis de seu frio assassinato…
. Negros
Dentre as principais populações vistas como desviantes, estão os negros, o que, possivelmente, encontre justificação na Igreja, cujo poder, à época dos Descobrimentos, era transportado pelas caravelas, em suas travessias; a partir de então, a escravização de africanos passa a ser vista como obra pia, transformando em missão da Igreja a retirada de africanos de seu continente de origem, onde o Demônio, para ela e naquele momento, estava em seu próprio reino!
Como decorrência e exemplo, ainda hoje as estampas de São Miguel derrotando definitivamente o Demônio, conforme exposto em Apocalipse 12:7-9, apresentam:
. o arcanjo, com características tipicamente européias: pele muito branca, vestimenta similar à dos legionários romanos; a balança da Justiça ostentada à mão esquerda; na direita, a espada do Divino;
. quanto ao demônio, traz a pele negra e o cabelo carapinha, remetendo ao africano típico; as asas lembram as dos vampiros e morcegos.
Quando muito, é comparado a subumano, animal de transição entre o símio e o homem branco. Por isto, a este mal acabado protótipo de gente, o mundo ainda atira bananas…Isto porque o grupo negro, especialmente pós conquista do continente africano, passou a ser visto pejorativamente, quer em seu continente, quer em qualquer ponto da diáspora; em decorrência, em praticamente todos os formatos de linguagem adotados após o séc. XVI, incluídas aí as charges, este povo é visto como beiçudo, feio, imbecil, próximo, muitas vezes, dos animais irracionais.
Quanto ao caráter do negro, à vista de sua postura enquanto revolta perante a escravização, é visto como refratário ao progresso, insubordinado, avesso às leis, dado a vícios, traiçoeiro e vagabundo.
No resumo: imbecilizado, animalizado, incógnita social.
Dos resultados de tais posturas dão conta, farta, tanto o IDH – que apresenta mais de noventa por cento dos países africanos entre os de pior desempenho neste índice – quanto os mais diversos censos que, tanto vistos por série histórica, quanto pelos espaços onde a diáspora se espraia, apresentam, consistente e recorrentemente, escravodescendentes concentrados nos níveis ocupados pela base social.
Daí o fato histórico provocador das diversas ações inclusivas – ou discriminações positivas, ou ações afirmativas – como, intercambiavelmente, políticos e cientistas sociais denominam as tentativas de eliminar tais desigualdades. Que as charges abordam; humorística, embora causticamente. Veja:se:
Conclusão
Parece certo que os desenhos de humor carregam, consigo, as marcas do tempo em que foram produzidos; e por isto conservam, como subproduto, resíduos do pensamento sociopolítico de seu tempo.
Como conseqüência, parece natural a utilidade deste tipo de desenho como documento histórico-social válido; mesmo que, apenas, de caráter indiciário: afinal, se esta produção depende do contexto para ser entendida, é evidente que remete a fatos e posturas que, de alguma forma, suportam a análise do momento de sua produção.
Assim sendo, já que é certo que grupos sociais como os aqui enfocados, mesmo quando transitando pela sociedade ampla, sofrem restrições sociais, quando não legais e explícitas, também é certo que desenvolvem estratégias de resistência e sobrevivência, escrevendo a própria história – sub-história – que o discurso oficial não registra.
Por fim, é relevante mencionar que a busca de conhecimento sobre os formatos e justificativas que levaram à estigmatização de grupos, mesmo quando esta, nos dias atuais, já se encontre mais amena – tais como com os ciganos e os comunistas – talvez só se possa socorrer das charges.
Isto porque, por estigmatizada, a história destes grupos talvez não se encontre entre as fontes costumeiras; mas pode estar nas charges, preservada para estudo, e é por lá que podem estar escondidas as mazelas – talvez entrelaçadas nas entrelinhas do humor.
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[1] Aqui, significando os africanos e seus descendentes fora da África ou não, desde que tenham a evolução social marcada por esta ascendência.
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